Aspectos do Ambiente Natural da Ria de Aveiro

 

Para a compreensão das manifestações culturais das populações de urna região é fundamental a caracterização do seu ambiente natural.

Este deve ser entendido como resultado da interacção entre as características naturais da região e a acção da população que a habita e utiliza os recursos disponíveis para realizar as suas aspirações materiais e sociais.

Daí que quando se fala em ambiente natural se deva ter presente que ela é o resultado de um equilíbrio entre Homem e Natureza.

O substracto natural que moldou a cultura regional é o resultado de uma evolução natural recente, que deu forma à costa e laguna, tal como hoje as conhecemos, diferentes da costa e laguna sobre as quais se desenrolava a vida dos homens de algumas gerações atrás.  

No entanto, a cultura adaptou-se à constante evolução natural da região, modificando-a em alguns aspectos, mantendo em equilíbrio homem e natureza.

Diferentes etapas da evolução do litoral da região correspondente à Ria de Aveiro. (HJCO)

Sempre que este equilíbrio foi rompido, surgiram períodos de decadência, interrompendo as épocas de prosperidade verificadas enquanto o homem foi capaz de se adaptar à constante evolução natural da região.

Recentemente, técnicas poderosas vêm pôr em perigo alguns equilíbrios naturais de que dependem actividades das populações, nomeadamente as que se desenrolam na laguna e costa em favor de actividades caracteristicamente terrestres.

Neste artigo, poremos em evidência a interacção homem-natureza, mostrando como se tem feito a evolução dos sistemas costa e laguna, quais os processos dinâmicos que os trouxeram à sua presente forma e que mantendo-se activos devem ser entendidos como condicionantes às actividades humanas. Deste modo, mantêm-se os equilíbrios de que dependem, a curto prazo, as actividades lagunares, e a mais longo prazo a totalidade das actividades humanas tradicionais na região.

Como exemplo de unidades ambientais, em que os processos activos são fortemente condicionantes de algumas actividades humanas, focaremos o cordão litoral e dunas, assim como as ilhas da Ria e zonas de salgadiço.

 

EVOLUÇÃO RECENTE DA RIA DE AVEIRO

Há cerca de 20 000 anos antes do presente (B.P.), o mar encontrava-se a cerca de 130 metros abaixo do nível actual, deixando a descoberto a maior parte da plataforma continental que formava uma extensa zona plana, cortada pelos vales dos rios. Estes, na área da Ria, formavam entalhes de cerca de 30 metros.

Entre 20000 e 15000 B.P., começou uma rápida subida do nível do mar (cerca de 8 mm por ano), até cerca de 7000 B.P. Então a subida foi-se tornando mais lenta e há 4000 anos o nível do mar já se encontrava próximo do actual.

Durante os 15000 anos de rápida transgressão, a linha de costa recuou sobre a plataforma continental cerca de 40 km, o que dá em média um avanço do mar de 2,6 metros por ano. A velocidade de fornecimento de areia pelos rios não foi suficiente para a formação de depósitos de praia e, possivelmente, ela foi sendo arrastada. Mais tarde, quando a subida abrandou, aqueles sedimentos tornaram possível o desenvolvimento de um equilíbrio na posição da linha de costa.

A linha de costa, cerca de 4 000 B. P., formava uma baía entre Espinho e o Cabo Mondego, abrindo-se num largo estuário entre Angeja e Cacia, onde desaguavam independentemente os rios Vouga, Águeda e Cértima. (Vd. Imagem animada). Os processos que levariam a costa a uma configuração de equilíbrio relativamente ao novo nível do mar começaram então a operar. Como Paul D. Komar refere: «In the past 4000 years of mean stable sea level, the coastal processes have been trying to re-establish some sort of equilibrium by cutting back portions of the coast that project too far seaward, blocking bays with spits and other beach forms, and in general working to straighten the coastline. At the same time estuaries formed by the drowning of river valleys by the risen sea level are now progressively being filled with muds and sand.»

Os primeiros documentos que referem esta zona costeira são do século X. Por eles pode ver-se que a costa ainda mantinha a forma de uma larga baía, onde se abria um estuário, que dava fácil entrada  à água do mar, como se deduz da existência de marinhas nas suas margens, como as que são referidas por esses documentos em Alquerubim e Eixo.

É, pois, possível que a linha de costa tenha mantido uma posição média constante, entre 4000 e 1000 B.P. Contudo, no perfil do fundo dessa baía, grandes modificações devem ter ocorrido.

Estavam em formação dois grandes cabedelos: um a norte do estuário, onde hoje é a Murtosa, e outro a sul, que se estende da Gafanha ao Cabo Mondego. O fluxo das águas de maré, juntamente com as dos rios, através do estuário, não permitiu a ligação destes dois cabedelos. À diminuição de fundos descrita sucede a emergência gradual do cabedelo, a norte e a sul do estuário, nos quais se formam dunas de origem eólica.

Posteriormente, começa a desenvolver-se, de norte para suI, um cordão litoral, que viria a tornar rectilínea a costa entre Espinho e o Cabo Mondego. A corrente ao longo da costa, de norte para sul, transporta areias que fazem crescer o cordão litoral na mesma direcção.

Formam-se também bancos de areia na baía, que virão a originar as ilhas Monte Farinha, dos Ovos e Testada.

Cerca do ano 1200, o cordão litoral atingiu a Torreira na sua progressão para sul. O seu posterior crescimento vai favorecer o desenvolvimento das ilhas do delta.

No século XlV, as ilhas da Testada, dos Ovos e Monte Farinha emergem. Os primeiros documentos que as referem são do princípio do século XV. Em meados deste século, todas as ilhas do deIta já existiam, sendo separadas por canais profundos, por onde podiam navegar navios de alto bordo.

Provavelmente não existiriam ainda as áreas lodosas, que viriam a aumentar a área destas ilhas, quando o cordão litoral as protegeu da acção directa do mar, tornando possível a deposição de sedimentos finos.

Em meados do século XV, o cordão litoral tinha progredido até S. Jacinto (capela da Senhora das Areias).

Na laguna ainda se fazia sentir a influência saneadora do mar, dando a barra (entre S. Jacinto e a Gafanha) fácil entrada às marés, não ocasionando a retenção das águas do Vouga, que só inundavam os campos aluviais no período das cheias anuais. A agricultura era próspera e, ao mesmo tempo, a laguna propiciava as fainas marítimas, tendo a região atravessado um período ide máxima prosperidade.

Até meados do século XVI, O cordão litoral progrediu lentamente para sul, tendo então atingido a Barra. No fim daquele século (1598), já tinha ultrapassado a Costa Nova. Em meados do século XVII (1643) a barra situava-se na Vagueira. Em meados do século XVIII (1756), o cordão litoral atingia Mira, fechando a comunicação da laguna para o mar. Terminou então o período seis séculos de formação do cordão litoral.

No interior da laguna continua a sedimentação de vasas e a deposição de areias eólicas, nos canais próximos do mar. As vasas vão aumentando a área das ilhas do deIta. Em consequência, diminui a profundidade dos canais e a capacidade da laguna.

À medida que o cordão litoral progredia paira sul, a ligação da laguna com o mar tomava-se mais estreita, dificultando a navegação e ocasionando a retenção de água doce que, diminuindo a salinidade, prejudicava a pesca e a produção do sal. Até a agricultura era prejudicada, porque as cheias alagavam os campos por largos períodos. Além disso, a retenção de água doce tornava a região insalubre.

Para dar solução a esta crise, o homem começou a intervir na evolução natural da Ria de uma maneira mais acentuada. Durante os séculos XVII e XVIII, fizeram-se várias tentativas para estabilizar a ligação da laguna com o mar, que culminaram com a abertura da barra no local actual, em 1808.

Mas os processos activos na costa tendiam a fechar a barra, pelo que foram necessárias obras constantes para a manter aberta.

 

PROCESSOS ACTIVOS E OCUPAÇÃO PELO HOMEM

Vamo-nos agora referir aos processos determinantes da evolução da Ria e que, mantendo-se activos, condicionam a ocupação que dela pode fazer o homem.

— O mar mantém urna subida absoluta, muito lenta e irregular.

— Originada pela direcção oblíqua de incidência das ondas mais frequentes (NW), existe uma corrente ao longo da costa, que transporta areia de norte para sul.

— No interior da laguna, dá-se a sedimentação de partículas finas, que formam vasas ricas em materiais orgânicos.

Consideremos agora os efeitos destes processos.

A subida lenta do nível do mar leva a uma migração para terra do cordão litoral, como forma de se manter em equilíbrio com o nível crescente do mar. Este facto condiciona, a longo prazo, toda a ocupação desta área feita pelo homem.

Qualquer construção fixa, que entrave o processo de migração, impede o equilíbrio e leva à destruição do cordão litoral.

A mais curto prazo, fazem-se sentir os efeitos de interferência na corrente ao longo da costa. Qualquer obstáculo a esta corrente (um bom exemplo são os molhes da barra), ocasiona a retenção de areias a norte, dando-se a erosão a sul pela movimentação idas areias, que ali constituem a praia. A única solução para o desequilíbrio causado por obstáculos deste tipo consiste em fornecer às praias, a sul, a areia que perderam, e fixá-la por meio de pequenas estruturas perpendiculares à costa (Groin).

Directamente relacionado com o problema da erosão da praia está a ocupação e destruição das dunas.

A duna avançada constitui um reservatório de areia, acumulada durante o período do ano mais calmo, e utilizado no período de maior agitação do mar. Este, ao atacar a berma da praia, remove areia para a zona de rebentação, modificando o perfil do fundo da costa, que passa a dissipar mais a energia das ondas, antes que estas atinjam a praia. Deste modo são minorados os efeitos da tempestade sobre a zona costeira.

Os processos a que até agora nos referimos são nitidamente determinados pelo mar. Vamos agora referir-nos a um processo em que as componentes terrestres também são muito importantes: a sedimentação em curso no interior da laguna.

As fontes destes sedimentos são de dois tipos: marinhas e terrestres. Do mar provêm essencialmente areias, transportadas pelas correntes de maré e pelo vento.

O material mais fino — silte, argila e mesmo areia muito fina, é principalmente proveniente de fontes terrestres. Nestas temos a considerar a carga sólida transportada pelos cursos de água mais importantes (Vouga e Antuã), principalmente nos períodos de cheia, e também o material que chega à laguna a partir de pequenas linhas de água ou transportado pelas águas de escorrência das margens da Ria. Este material provoca o assoreamento dos canais.

O controle das fontes terrestres de sedimento implicaria uma gestão adequada das margens da Ria e das bacias hidrográficas dos principais rios, por forma a diminuir a erosão causada pela escorrência superficial, o que, além de provocar o assoreamento da laguna, destrói os solos erodidos.

Esta gestão deveria impedir formas de ocupação do solo nas áreas críticas (zonas de maior declive das bacias hidrográficas e margens da Ria), que levam ao aumento da escorrência superficial (pela criação de áreas impermeáveis, estradas ou urbanizações) ou à destruição do coberto vegetal natural (algumas formas de agricultura, movimentos do terreno para construção ou para a indústria). Só deste modo se poderá conservar, a longo prazo, a laguna e os solos da região.

A mais curto prazo, torna-se necessário o recurso a soluções parciais, tais como dragagens.

Mas neste ponto é preciso que se considerem não só os benefícios daí advindos como os problemas que levantarão e que considerados à partida poderão ser minimizados.

As dragagens devem ser planeadas de modo a não destruírem as áreas vitais do estuário, nomeadamente, zonas entre marés, áreas cobertas por moliço (especialmente por zostera) e sapais salgados. Tal poderá ser conseguido distribuindo as dragagens no espaço e no tempo de modo a manterem-se zonas tampão, que impeçam uma destruição irreversível do ecossistema estuarino. O controle do assoreamento por meio de dragagens deverá, pois, ser feito a um ritmo lento mas persistente.

 

ÁREAS VITAIS PARA A LAGUNA

As três unidades ambientais indicadas são fundamentais devido às funções que desempenham.

— As zonas entre marés têm elevada importância ecológica, por fornecerem alimento a diversas espécies, tanto aquáticas como a aves; podem ter importância económica quando abrigam populações de moluscos. Além disso, estas zonas baixas nas margens dos canais diminuem a sua erosão por retirar energia à ondulação originada pelo vento dentro da laguna e à corrente das marés.

— As zonas cobertas por moliço têm elevada importância ecológica por constituírem abrigo para formas jovens de espécies piscícolas, por serem uma fonte importante de produção primária e servirem como acumuladores de energia e nutrientes. Além disso, a vegetação estabiliza os sedimentos do fundo, retira energia às correntes de maré e diminui a turbidez da água.

— Zonas de sapal salgado: estas zonas não são directamente destruídas pelas dragagens, mas poderão sê-lo pelos dragados se não for convenientemente escolhido o local onde serão depositados. Como estas zonas de sapal salgado são vitais para o estuário, vamo-nos referir mais em pormenor à caracterização da sua importância e ao impacto que outras formas da sua ocupação poderão ter nos recursos naturais da laguna.

 

O SAPAL SALGADO COMO ÁREA VITAL

As áreas de sapal salgado, designadas na região por praias de junco, constituem comunidades altamente produtivas e essenciais no controle da circulação de materiais nos estuários e zonas costeiras. Mais precisamente, elas podem ser definidas como as comunidades que ocorrem entre o limite máximo das preia-mar vivas e o limite máximo das preia-mar mortas. Podem ainda considerar-se como sapal salgado baixo as comunidades que ocorrem entre o nível das preia-mar mortas e o nível médio da maré.

As plantas superiores são dos mais importantes produtores primários destas comunidades, sendo as espécies dominantes na Ria de Aveiro: Juncus maritimus, Phragmites communis, Scirpus maritimus e Aster tripolium. Formam uma cobertura densa do solo, capaz de aproveitar eficientemente a luz solar incidente e a água salgada para a fotossíntese.

A matéria orgânica que produzem é depois passada a outros componentes da comunidade, sendo os mais importantes as bactérias e os fungos. Entre os consumidores encontram-se também caranguejos, anelídeos, nemátodes e gastrópodes. Por outro lado, estas áreas abrigam e alimentam numerosas populações de aves.

A produtividade primária não é unicamente devida às plantas superiores. As algas bênticas e o fitoplâncton, que vivem à superfície da vasa, podem contribuir substancialmente para a produtividade líquida anual, com valores na ordem dos 20% do produzido pelas plantas superiores.

A contribuição dos sapais salgados para a produtividade dos estuários é grande. As águas estuarinas são normalmente túrbidas, o que afecta a produção de fitoplâncton. A abundância de animais nos estuários é, em grande parte, devida à exportação de material proveniente dos sapais salgados, e logo as modificações que neles se operarem podem limitar o crescimento dos consumidores em locais afastados desses mesmos sapais salgados.

Além de produzirem matéria orgânica, os sapais salgados servem de habitat essencial, de unidade de acumulação de energia e nutrientes, de armadilha para o sedimento e de purificadores da água.

O homem tem tradicionalmente aproveitado os recursos destas áreas, ceifando a vegetação que usa como fertilizante natural, depois de fermentado nos currais.

O corte periódico da vegetação, bem como a abertura de valas para melhor drenagem do terreno e para uma maior penetração da água salgada, estabiliza esta vegetação, que naturalmente tende a evoluir para uma comunidade dominada pela canízia, com menor interesse para a agricultura.

A acção do homem sobre estas áreas tem, assim, até hoje, contribuído para que se mantenham os equilíbrios naturais, de que dependiam a agricultura tradicional e mesmo a pesca lagunar.

Neste momento, pensa-se reconverter a utilização de algumas destas áreas, em conjunto com os campos do baixo Vouga, através da construção de um dique, que impeça a entrada da maré, possibilitando a cultura de forragens.

Este projecto, no que respeita às áreas de sapal salgado, levanta à partida algumas objecções, dado o impacto que poderá ter sobre:

— A produtividade animal da laguna, com repercussão na pesca;

— Algumas espécies de aves, que perdem o seu habitat natural;

— A qualidade da água da laguna e o assoreamento dos canais, porque, destruindo estas áreas, elimina-se a função de controle da transferência de materiais entre a terra e a laguna. A carga sólida, bem como os poluentes transportados pelos caudais doces, transitarão na totalidade para a laguna.

Além disso, a montante do dique, os caudais doces, severamente poluídos, passariam a constituir massas de água desoxigenadas, em virtude do seu oxigénio ser consumido na decomposição dos poluentes que aquelas águas transportam.

Como provaram medições de oxigénio dissolvido e salinidade feitas no Rio Novo do Príncipe, a principal fonte de oxigénio naquele local é a circulação provocada pela maré, que mantém teores aceitáveis de oxigénio dissolvido na água abaixo de 1 metro de profundidade.

Pelo contrário, a construção de uma estrada de modo que permitisse a circulação da maré teria sobre os aspectos referidos um impacto mínimo, desde que se evitasse a todo o custo a ocupação futura destas áreas com construções ou indústria, o que se tornará aliciante a partir de facilitado o acesso.

Depois de termos posto em evidência alguns aspectos da repercussão de actividades humanas em áreas vitais para a laguna, concluiremos apontando a necessidade de que o desenvolvimento da região seja orientado por estudos conducentes ao conhecimento das limitações desse desenvolvimento, permitindo que ele seja harmonioso e que leve, de facto, a uma melhoria da qualidade de vida das populações.

Aveiro, Março de 1980.

José Figueiredo da Silva


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