Glosa de algumas alusões de Júlio Dinis a Aveiro

 

Unânime e consabidamente, contamos entre os nossos conhecimentos biográficos de escritores com evidência na nossa história literária, o nome de Júlio Dinis, ou antes, o real homem de carne e osso, que estava por detrás e no âmago desse pseudónimo, e que estanciou larga temporada retemperadora em Ovar. Descera da pouco mais setentrional terra do nascimento, para se refazer das consequências debilitadoras de esforços intensos e persistentes de uma das etapas da sua carreira profissional, que mais lhos requeria. E lá colheu, sempre atento em toda a sua acuidade penetrante de artista, que começava a levedar, ambientes e figuras para os seus cativantes romances, tão sugestivos de alguns tipos inesquecíveis.

Agora, numa hora vazia em que, por imperativo temperamental, eu buscava preencher com algum motivo uma recente edição das chamadas «Obras Completas de Júlio Dinis», propiciou-se-me o ensejo de reler talvez a mais de meio século do primeiro ávido contacto —, alguns dos seus atraentíssimos trechos. Revivi gente da minha intimidade de jovem sorvedor — ia dizer acotovelador — de heróis e comparsas de obras de ficção, sucessivamente consumidas com glutonaria não isenta do aprazimento de lhe esgotar todas as potencialidades emocionais.

Essa colecção tem o propósito, e não apenas a veleidade, de nos facultar, em paralelo com o romancista sedutor e o contista sem dramas também suscitadores de ansiedades sombrias, o autor de peças de teatro, com diálogos que parecem colhidos pelos gravadores, e ainda o articulista colaborador de folhas periódicas, em regra também subscritas por pseudónimos, e, igualmente, acaso, em último lugar de valorização, o epistológrafo. E nesta feição reencontrei, com a alvoroçada satisfação que sempre, em circunstâncias similares, me invade, desbordantemente, as suas breves — mas de modo algum despiciendas para um pesquisador insaciável de alusões, proposições ou meras molas de sugestão aveirenses, que, relapso, persisto em me conservar vitaliciamente — referências circunstanciais ou de incidência deliberada a esta cidade de Aveiro, num século e poucos lustros alastrada pelos vazios internos, e à área circundante e tão transformada nos traços caracterológicos de urbe em contínuo crescimento.

Lembro-me que, talvez há mais de quatro decénios, se a memória para que no momento não tenho ocasião de procurar confirmação me não trai, e porventura por alturas do centenário do nascimento do autor inolvidável de «Uma Família Inglesa», lembro-me que esse venerando e estimado Mestre, que ensinou tão frutuosamente na docência liceal e na vida quotidiana, o Dr. José Pereira Tavares (que agora festejou o nonagésimo terceiro aniversário), aproveitou, comemorativamente, esses trechos. Trasladou-os e glosou-os com correspondente relevo, no «Arquivo do Distrito de Aveiro», nas passagens mais significativas desses tão reveladores, felizmente conservados, espécimes epistolográficos.  


A beleza da mulher de Aveiro sempre foi notória, dando origem a diversos episódios que permaneceram na história da região.

Acaso essa sedimentada recordação, devida a uma discência voluntária e aprazida, insculpida na memória receptiva do aprendiz de múltiplas matérias e de estilo de comportamento que para sempre fiquei, restara pelos estratos de há mais de meio século. Reavivou-se, numa exumação mnésica, tão pronta como grata, suscitada pelo folhear dessas cartas, trasladadas à letra de forma impressa, do romancista tão cativantemente simpático das « Pupilas do Senhor Reitor».

Para mim, o topónimo Aveiro, e o que em torno dele se derrama escrito por Júlio Dinis, tenha-o embora, nas suas alusões, breves ou mais extensas, subscrito com o nome real de cidadão, de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, e não com o aureolado pseudónimo literário, reveste-se, no meu apegado, quase obsessivo aveirismo repleto de minudências, radicado e militante, de um sabor e uma importância pronunciadíssimos  e de um desencadeante impuIsionamento.

Essas alusões e as impressões pessoais que revelam, e as menções repetidas, inclusivamente a um aveirense de temperamento complexamente amargo, de doentia intransigência incomplacente, hirto e frio e cáustico no julgamento dos próprios que mais o alentaram, tão sapiente, estudioso e trabalhador, como amargo, farisaico e atormentado, que se chamou Augusto Soromenho — mais precisamente Augusto Pereira de Vabo e Anhaya Soromenho (1804-1878).

Reli, pois, essas tão reveladoras cartas, que haviam sido redigidas sem qualquer intenção de saírem à luz da publicidade, com o alvoroçado aprazimento que me infunde a referência espontânea a Aveiro. Nesta circunstância, o contentamento redobrava, naturalmente, por ter a proveniência num dos escritores que saboreei com mais regalado encantamento, em toda esta minha existência já mais que septuagenária.

Não me levam esses espécimes de epistolografia tão francamente privada (acaso com datas erroneamente trasladadas para os caracteres tipográficos) a concluir se Júlio Dinis visitou Aveiro em mais que um ensejo. As datas que se oferecem à nossa apreciação não apenas se cingem a 1863, e mesmo ao ano subsequente, mas também a 1866. E, pelo que pode concluir­-se com segurança plausível, não se suscitam dúvidas de que o ficcionista, então ainda em potência, que em Júlio Dinis começara a fermentar, ao partir para os ambientes da ascendência ovarense, tinha programada, com algum pormenor, uma suplementar digressão até Aveiro, e mesmo até à serra do Buçaco, pois a planura que separava a laguna aveirense do mar esse «cantochão da paisagem», como  já um dia lhe chamei, raso como a palma traçada de uma mão — o chegou a enfastiar. Ele o escreve, num desabafo incontido, ao seu dilecto Custódio Passos, que deixou o mais abundante acervo de epistolografia dionisíaca (1):

«...chego a sentir desejos de exclamar, quando me mostram qualquer subúrbio da vila:

— Uma montanha, pelo amor de Deus!

Aveiro julgo que é a mesma coisa! Se for ao Buçaco, o contraste deve fazer-mo apreciar ainda mais» (11-5-1863).

No auge da Primavera, prevalecia a intenção de reatar o itinerário programado e partir para Aveiro, onde estava domiciliado um parente, com desafogado estilo de vida, e que mostrara disposição de acolhê-lo por alguns dias. A sua propensão temperamental (acaso acentuada pelos efeitos de uma fase mais fadigosa dos que-fazeres profissionais) para uma quietude sedentária, e a verificação de que em Ovar, onde sentia robustecer-se, havia «mais que notar quanto a homens que quanto a coisas», isto é, mais biografias-modelos excelentes e sugestivas, do que pontos de vista para desfrute pessoal, foi protelando a digressão a Aveiro. Aliás, os facultativos ovarenses, entre os quais colheria o espécime acabado e vincadíssimo que lhe proporcionou um dos tipos mais vivos e caracterizados de toda a sua rica galeria de figuras, desalentavam-no. Pintavam-lhe a cidade com as cores negras e amedrontadoras, que propendiam a fazer desistir dessa descontraidora viagem de recreio. Sentia-se «intimidado pelas descrições tétricas que os facultativos daqui me faziam em Aveiro», terra de febres sezonáticas, endémicas ainda não muitos anos atrás.

Por outro lado, ser-lhe-ia mais cómodo e rápido, em vez de empreender o passeio no moroso e anacrónico barco da carreira, entre o Carregai e a Ribeira de Aveiro, fazer a viagem mais célere e confortável, apesar de tudo, pela via férrea, em vésperas de encetar o funcionamento.

A verdade, todavia, é que, volvido um ano, numa carta recheada de menções a Aveiro para o mesmo Custódio Passos, ainda confessa os receios de que vinha possuído. Quanto às condições aveirenses de salubridade: «Cheguei a Aveiro um pouco dominado pela apreensão de que talvez viesse ser infeccionado pelos eflúvios pantanosos da terra e cair atacado pelas sezões, circunstância que, não obstante o colorido local, (...) nem por isso me havia de ser muito agradável.»

Ora, se não se manifestava uma emulação ínvia, de mau conselho, com intuitos reservados dos causadores da prevenção levada ao exagero, como se verificava, na presença da realidade de cores bastante menos carregadas, não havia dúvida de que eram, como se costuma dizer, mais as vozes que as nozes. Pintavam-lhe os riscos hipotéticos como a Juno inteira, em toda a sua potencialidade, onde apenas se vislumbrava a nuvem com cariz de duvidoso prenúncio, porque acrescenta:

«Nada, porém, de novo me tem por enquanto sucedido, e continuo passando bem e o que é mais, engordando» (2).

Se é mesmo certo que o viajante débil em busca de terapêuticos lazeres retemperadores já se não arreceara de voltar para casa tisnado do sol intenso, de raios sem poluições atmosféricas que lhe roubassem os predicados salutíferos, que fruíra em Ovar (28/8/1863), e de se apresentar com a fealdade própria de «uma cor semelhante à de uma batata assada na fornalha», mais tarde, acaso a uns três anos cumpri os dessa data, evidenciava idêntica despreocupação estética. Numa carta para a sobrinha Aninhas, tão dilecta e acarinhada, mostra-­se mais marcado pelos raios solares, porventura ainda mais intensos, como o espectro mais claramente definido e de radiações mais penetrantes. Verosimilmente, numa segunda digressão, sente Aveiro na pele tostada como a dos marnotos e a dos pescadores, na tez enegrecida, após a fase de enrubescimento inicial, em toda a superfície epidérmica desprovida de roupa protectora:

«Eu por aqui tenho andado e passeado, com o fim de me curar como um presunto.  O certo é que, graças ao vento, sol e ar do mar que tenho apanhado, estou negro, vermelho e feio de meter dó. Quando aí chegar (ao Porto é bem de calcular) ninguém me há-de conhecer» (3).

Regressemos à carta, datada de Setembro de 1864, para Custódio Passos. Aí declara, reveladoramente, ao fraterno amigo portuense, ao escrever-lhe, logo ao alvorecer, recém-acordado já pelo silvo estridente da locomotiva, desimpedido numa extensa zona ainda despida de construções: «Aveiro causou-me uma impressão agradável ao sair da estação... » E nessa época o novel edifício, ainda sem preocupações estéticas consideradas despiciendas, não apresentava os embelezamentos que agora ostenta já um tanto anacronizados e que datam de 1917 e por aí à roda. E em torno do largo fronteiro ao edifício, ou não os havia, ou havia prédios muito mais modestos que os actuais. E continuava a sua descrição, não escondendo um certo desencanto subsequente:

«...menos agradável ao internar-­me no coração da cidade.» o que acaso não corresponde ao sentimento comum perante o aspecto desabafado resultante do canal que o desafoga «horrível vendo chover a cântaros na manhã de ontem, e imensas nuvens cor de chumbo a amontoar-se sobre a minha cabeça.» Aquele espelho de água que dilata o centro citadino e lhe multiplica a luminosidade superlativa, já devia encontrar-se sob um céu escuro e pesado, a prenunciar a enfadonha precipitação pluviométrica, roubadora dos aspectos aprazíveis que a luz, reflectida nas águas apenas enrugadas de todas as parcelas lagunares, inunda, perdulariamente derramada, e realça desmesuradamente.

Efectuaria, todavia, uma vi­sita a uma vivenda rústica, que o primo, em casa de quem se hospedara na cidade, possuía a bastante menos de uma légua, na Gafanha, a da Nazaré, então nas primícias do povoamento, num caso dos mais frisantes de colonização espontânea, que no nosso país se tem verificado. A paisagem, dilatada pela planura a rasar o nível das águas pro­vindas do mar que se desfruta ao longo de um itinerário mal imerso da Ria que marginava e das salinas com seus cones de alvos cristais a erguer-se nas eiras, tomaria um cariz propi­ciador de uma reconciliação de­cidida acaso irresistível de insinuação estética para a sua fina, susceptibiIíssima sen­sibilidade de artista, na fase de gestação final. Ele o exprime, sem deixar margem a dúvidas, ao qualificar esse trecho do sin­gular acidente geográfico da nossa costa, que é a Rua, como «imensamente aprazível, quan­do, depois da estiar, subi pela margem do rio e atravessei a ponte da Gafanha. (...) Imagi­nei-me transportado à Holanda, onde (...) nunca fui, mas que suponho deve ser assim uma coisa, nos sítios em que for bela. »

Nesse princípio de Outono que costuma ser a estação mais serena, com céu de mais puro azul desta cidade ainda hoje de carácter anfíbio, empapada de água salgada, e onde a luz se derrama até ao desper­dício — Júlio Dinis sentia que duas romagens eram de obriga­ção inalienável, nesta visita su­ficientemente detida e compa­tível com os pormenores de maior exigência: « Proponho-me — informava visitar hoje os túmulos de Santa Joana e de José Estêvão, duas peregrina­ções que não podia deixar de fazer desde que aqui vim» (4). Corresponderia, no seu modo de ver de pessoa informada e culta — no dele e, naturalmente, no meu, de «cagaréu» da mais in­veterada irreversibilidade — a «ir a Roma a não ver o Papa.»

>>>


Página anterior   Página inicial   Página seguinte