Acesso à hierarquia superior.

N.º 29

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Novembro de 1981 

A abolição da pena de morte por crimes políticos, e o seu paladino aveirense

– O ÚLTIMO ENFORCAMENTO EM AVEIRO

Por Eduardo Cerqueira

 

Suponho que pela pecha velha – irreprimível e, já agora incurável – de reduzir todos os temas a um denominador aveirense e de misturar, pelo menos aparentemente, «alhos com bugalhos» para alcançar esse objectivo obsessivo, incluirei neste modesto trabalho mais de relato objectivo que de preconização de princípios, três assuntos distintos, embora ligados, mais efectiva ou indirectamente por um comum motivo de feição política. Imediata ou remota. Positiva ou conjunturalmente.

Desse modo, farei uma natural alusão aos justiçados da temerária revolução anti-miguelista de 16 de Maio de 1828 – cujos crânios são inspiradora e venerandamente, numa das aras aveirenses mais exalçantes, guardados no centro geométrico do nosso mais antigo e rico de valores «campo santo», nesse como que relicário chamado tradicionalmente o «monumento das cabeças».

E recordarei, lógica e consequentemente, num preito de justiça – a que em nosso desabono de aveirenses, nados ou de adopção, ou de mera presunção enganosa, nos temos degradadamente furtado – a que não quero perder o ensejo, à eminente figura de aveirense que foi – e na nossa memória preiteante permanece – Manuel José Mendes Leite. Lembrá-lo-ei especialmente, porque foi o liberal de uma vida inteira, a múltiplos títulos insigne e impoluto, que apostolizou generosa e calorosamente, e denodadamente conseguiu fazer incluir em adicional à Carta Constitucional a abolição da pena de morte por crimes políticos – ou como tal considerados pelas parcialidades detentoras do poder e as leis em vigência.

*  *  *

E depois de aludir resumidamente à sessão parlamentar, agitada, polémica e cheia de dignidade, em que foi votada essa pioneira disposição – que deixou imorredoiro o nome daquele aveirense tão mal e escassamente relembrado, recordarei, porque me parece oportuno, já que desse negregado acto julgo não estar de todo alheio a malquerença política – e ainda que restrita a um só indivíduo de personalidade cúpida, maleável e odienta, quiçá com prenúncios de anormalidade – à última execução capital que se registou em Aveiro.

(Em Aveiro, nos subúrbios da qual subsiste – diga-se, no ensejo, num breve parêntesis – mesmo ao revés dos sentimentos da gente cordata, moderada e tolerante, e da tradição dos autóctones da cidade e seu redor, consabidamente avessos à violência e a toda a casta de excessos, uma pequena localidade suburbana, maculativa e paradoxalmente com a designação toponimicamente macabra de a Forca).

E já que a ocasião se proporciona não me esquivarei a observar que Aveiro nunca prestou, no bronze perpetuador a homenagem que deve ao principal autor, grande aglutinador de adesões e propulsionador dessa honrosíssima iniciativa da inclusão no diploma fundamental do país da rasgada e humaníssima disposição. Estamos em dívida. Havemos de reconhecê-la colectivamente. E de tentar animosamente liquidá-la.

Ao aveirense de tão numerosos, relevantes e prestimosos predicados de carácter e ilustração, e de homem público isento e aplicado aos deveres cívicos, cumpridos com exacção e largueza, tão estreita e persistentemente ligado à sua terra natal – mero cidadão participante, respeitado e esclarecido, presidente da Municipalidade, governador civil, e antes secretário-geral dessa delegação distrital do executivo governamental, deputado, homem desprezador de honrarias, títulos e veneras, que foi uma alta figura paradigmática. Combatente e pioneiro esforçado e constante das mais ardentes aspirações aveirenses, foi o mais respeitado durante bem um quarto de século, desde que José Estêvão morrera, prematuramente, em 1862, de todos os grandes vultos de Aveiro, onde nascera, como o grande tribuno, em 1809, e viria a falecer, abrindo um sentido vazio entre os seus conterrâneos, em 1887. / 47 /

Conhece-se-lhe – embora não lembrada com a merecida assiduidade – uma participação sumamente operosa e prestante na vida pública agitada do segundo quarto do século passado. E nos campos mais diversos; na luta armada e nos riscos que durante ela enfrentou intrepidamente, nas pugnas da palavra escrita e falada, na actividade administrativa, zelosa e impoluta e, repito, na repetida e vitaliciamente testificada devoção aos mais altos, lídimos e indeclináveis interesses da terra onde nascera e, que alcançadas as condições ressurgidoras, ansiava pela reentrada nos caminhos ascendentes da prosperidade e do desenvolvimento.

Sempre se aponta como o mais fiel companheiro de José Estêvão, o mais fraterno de quantos seguiram na sua órbita, satelizados e ofuscados pelas suas fulgurações, desde a idade moça em que se radicam, inquebrantáveis as vitalícias amizades irmanadoras.

Ambos, apertados em Aveiro os laços de estima juvenil, frequentando as mesmas escolas e os mesmos logradoiros de traquinices de crianças, coabitaram no mesmo velho prédio, de que ficou a recordação de irreverências estudantis famosas, durante os tempos universitários conimbricenses – em que se fortaleceram nos ideais do liberalismo e que a revolta contra a opressão personificada em D. Miguel interromperia por dilatados anos.

Um e outro, seguiram similares caminhos, frequentes vezes incómodos e arriscados – na dianteira do combate pelos princípios perfilhados, e no exílio, a mais abonada bolsa de Mendes Leite, abrindo-se largamente, com liberalidade talvez imprevidente, aos caprichos e aos irreprimíveis apetites de guloseimas do vinculador amigo. Logo em 1828, ao chegar a terras galegas, para incógnitos e incertos destinos. E depois, já quando se lhe abriam os novos itinerários do homísio, nas brumosas, alongadas e árduas paragens britânicas, ou, sequentemente, em mais acolhedores ambientes açorianos. Ou ainda, furtando-se à vindicta cabralista, de má sanha e ínvios tramas, em Paris e noutros chãos franceses.

Clicar para ampliar.

Associados, como já sentimentalmente vinham sendo numa aliança de afecto indestrutível, partilharam a fundação da depois famosa «Revolução de Setembro», que seria a mais perduradoura das tribunas impressas do empolgante orador, e aquela onde se forjou o maior jornalista português da segunda metade de oitocentos – o insigne António Rodrigues Sampaio, que era mesmo mais correntemente designado pelo «Sampaio da Revolução».

Secundá-lo-ia, ocupando, aliás, a sua vaga parlamentar como representante dos eleitores seus conterrâneos, mesmo após o seu passamento prematuro e imprevisto, com o mesmo vibrante vigor, no combate atento e decidido pelos anelos aveirenses, para um progresso que potencial e promissoramente se prenunciava – e agora, passado um século e dois decénios, se concretiza, desbordando das dimensões então ambicionados, para nossa fruição, e dos que nos sucedam, sobretudo.

Joaquim de Melo Freitas, que em múltiplas circunstâncias foi um eloquente, fiel e potencializador intérprete do mais lídimo e estreme sentimento aveirense, relevando-lhe o «carácter honestíssimo», (1) testemunhava que «o seu nome é acatado por todos, amigos e inimigos». E inimigos seria uma força de expressão. O termo terá sido empregado na menos acerba acepção de adversário. E, de certo, apenas de parcialidade política. Porque só nesse âmbito alguém deixaria em Aveiro de lhe consagrar a mais desembaciada simpatia. Em Aveiro e no país.

Assim se deduz das referências encomiásticas que, por exemplo, entre muitas personalidades ilustres do tempo, lhe consagrou o pouco lisonjeiro Camilo Castelo Branco, (2) mencionadamente nestas elogiosas passagens: «Este homem foi muito querido e respeitado por tantos que o viram sem o prisma insidioso da política. Parece que ele, se a teve, robusta e indomável, foi exclusivamente a política do sacrifício pessoal ao bem da colectividade. Egoísmo, se o teve foi o da primazia na honra inflexível. E, contudo, depois de haver arrostado bravamente os adversários nas pugnas do braço e do espírito, nas batalhas e nos parlamentos, morreu (dir-se-á um dia, quando morrer) sem inimigos.»

De uma lisura exemplar na conduta pessoal e política, sabendo encarar as derrotas eleitorais – em que era medularmente, e coerentemente incapaz de exercer a sua influência pessoal directa para pedir um voto, mesmo àqueles que de algum modo estivessem na sua dependência – só se lhe terão conhecido irresistíveis pecadilhos amorosos. Não só, pessoalmente, por dotes másculos, apuro de apresentação e legendárias, talvez avolumadas, narrativas de conquistas, mais fáceis ou mais difíceis, a que era naturalmente propenso, mas que cativantes predicados de atracção, viril e distinta, e que tanto desabrolhavam em qualquer esfera, na terra natal – onde ficou conhecida especialmente a romântica paixão mortal que incendeu em D. Ana Libânia de Queirós, sua vizinha, e tia paterna de Eça de Queirós –, como em Lisboa. Aqui viveu, do mesmo passo nos meandros e nos palcos da acção política e nas altas rodas mundanas, neste aspecto também não havendo desmerecido dos atractivos e indesvendadas aventuras de que deixou fama o seu companheiro mais constante, o seu como que gémeo José Estêvão. E nem só na capital portuguesa, mas no exílio, mencionadamente em Paris, de onde traria, raptada a um nobre francês, a distinta senhora que foi mãe do único filho que teve. / 48 /

Mendes Leite tornara-se, especialmente em Aveiro, uma veneranda personalidade, uma relíquia sobrevivente dos tempos das temerosas lutas pela Liberdade, respeitada pelos adeptos de todos os quadrantes ideológicos, mesmo aqueles que mais manifesta e veementemente discordavam dos seus actos de administração pública ou de quaisquer atitudes políticas.

Quando no cemitério local foi negada campa a um primeiro aveirense incréu que, fiel às ideias perfilhadas, dispôs que lhe efectuassem um funeral civil, o aguerrido «Povo de Aveiro» abriu contra Mendes Leite, ao tempo governador civil – e contra, simultaneamente, o bisavô materno do signatário destas dissaboridas linhas memorativas, o administrador do concelho de então Francisco António do Vale Guimarães – uma ardorosa e azeda campanha, violenta e desarvorada como seria sempre timbre do contundente semanário aveirense. Acoimaram-no de senil, amolecido e tergiversante, de incoerente com os princípios de liberdade e tolerância que ao longo de uma vida, sem desânimos nem cedências, de luta ininterrompida e alevantada, a múltiplos títulos exemplar, haviam sido o seu mais enobrecedor apanágio. Trataram-no com acritude, irreverente e implacável, como se a velha relíquia dos heróicos e inspiradores tempos das lutas liberais, se renegasse e as renegasse.

Não muito tempo volvido, o mesmo combativo e impiedoso periódico aveirense – onde se fazia doutrina mesmo no auge do mais agreste combate – noticiava o falecimento da insigne figura de Aveiro, e do país, num comovido artigo, (3) justo, de certo modo reconsiderador, em que todas as divergências se apagam, e quase empolgante ao incender os sentimentos dos conterrâneos, quiçá dos republicanos aveirenses, no momento de luto profundo que a sua terra atravessava.

Aí se proclamava, repetidas vezes, como um «Ieitmotiv», incitando as mais expressivas e simbólicas demonstrações de preito: «Armas em funeral, bandeiras para o chão, que Manuel José Mendes Leite morreu.»

Acrescentava-se, nesse impulsionador necrológico, reparador, justíssima e fidelissimamente intérprete do colectivo sentimento aveirense, no momento em que sensibilizadamente perdia a sua mais representativa e respeitada figura: «Bandeiras para o chão, não por conciliação, não por transigência, porque a nossa bandeira é nova, é bela, é altiva e limpa para que caia na lama. Não porque a morte de um homem, por maior que seja, nos faça pensar o contrário do que pensamos em sua vida (...). Mas porque na nossa bandeira republicana está bem o nome desse valente, desse audaz democrata, que jaz enfim caído por terra.»

E repetia-se: «Armas em funeral, bandeiras para o chão, orvalhadas de lágrimas, em sentimento e luto pela morte de um benemérito.»

Prosseguiria, insistindo nessas razões preiteantes: «Nem um ressentimento neste momento solene. Manuel José Mendes Leite fez-nos um dia algum mal. Mas que importa isso, espírito imaculado que fugiste há uma hora do mundo, se na tua vida há páginas de abnegação que apagam todas as ofensas pessoais, páginas gloriosas de serviços relevantes à sociedade portuguesa, que façam calar míseros despeitos, páginas de trabalho, de desprendimento, de justiça que te dão lugar de honra no rol dos obreiros úteis da humanidade?»

E na sequência acentuava – talvez pela pena, com mais preocupados propósitos estilísticos do futuro Barão de Cadoro, então redactor efectivo do semanário, do que pela do grande inspirador do jornal, inclemente desde o início, o singular e medular plumitivo de combate Homem Cristo, de estilo tão despido de arrebiques e tão meridianamente límpido e acessível – a espontaneidade sinceríssima das justas e profundamente sentidas palavras de póstumo elogio:

...«nos corações dos rapazes que procuram neste jornal e nas lutas da política imitar, de longe, o denodo com que lutaste pela civilização da tua pátria e pelo bem da humanidade, só há dor, e justiça para o teu grande carácter.»

E, depois de convidar o povo aveirense, a «raça forte de Aveiro», a ir até junto do cadáver, ainda não de todo arrefecido, do inseparável companheiro de José Estêvão, para melhor sentir como se luta desprendidamente, modestamente, grandemente pelo bem da Pátria, e pelo bem dos outros» repete uma derradeira vez a frase reiterada como um brado plangente ao longo do eloquente artigo necrológico, que apetece ler alto, declamando contristadamente como uma comovedora oração fúnebre; «Armas em funeral, bandeiras para o chão.»

Como evidenciava nas celebradas «bodas de diamante» de Mendes Leite, no opúsculo em que por iniciativa do aveirógrafo Marques Gomes, tantos vultos aveirenses e estranhos de destaque lhe renderam o seu preito, Joaquim de Melo Freitas, salientou: (4) «É velho, é liberal, é honrado. E tão velho que pertence à época em que havia crenças políticas (...). Como liberal emigrou, padeceu e combateu. As batalhas, a tribuna e a imprensa conheciam-no na primeira fila. Finalmente carácter honestíssimo...» – como aliás já num passo anterior referimos.

Não é menos significativo o depoimento cheio de independência, incluído numa publicação similar, no ano seguinte, do eminente jurista anadiense Alexandre Seabra (5), que põe em realce entre os predicados de Mendes Leite, as suas naturais e evidentes propensões para o bem e as suas aprumadíssimas acções «próprias de um cavalheiro». E, frisando que nunca a amizade o havendo impedido de apreciar como entendia os actos de administração ou de significado político do seu velho parceiro / 49 / de ideais e lutas, também em momento nenhum deixou de fazer justiça à sua incontestável probidade, observa mesmo, ao concluir as suas laudas de preito, o que representava o velho lutador liberal na cidade em que nascera: «Creio que Mendes Leite, quando morrer deixará mais um lugar vago em Aveiro.»

*  *  *

A cronologia induz, se não impõe, que este modesto trabalho busque uma ordem e uma sucessão.

E, se não recuo a tempos como os resultantes dos seiscentistas apoios aveirenses às malogradas pretensões régias do Prior do Crato, não me parece que, na circunstância possa omitir os justiçados na portuense Praça Nova, em 1829 – por conivência ou efectiva participação armada, comprovadas, na revolução frustrada de 16 de Maio de 1828, não escapos à vindicta de um poder tirânico e desumano.

Lembro essas inolvidáveis vítimas do seu idealismo nessa ara de inexaurível inspiração, que os mantém, acendrada ou em latente brasido nunca extinto, na veneração suscitadora e constante das gerações subsequentes, que neles buscam, e encontram, alentadores estímulos de efectiva solidariedade humana, de generosidade e devoção até ao último sacrifício num ideal – e que são essencialmente um grande apanágio aveirense, assimilado no mais escorreito espírito da comunidade, e tanto nos filhos de raiz como de coração.

Recordo-lhes, venerandamente, o exemplo – porque em todos os propícios ensejos como este o considero uma obrigação indeclinável de muito grato e merecido preito – e os nomes inesquecíveis, e que nos compete continuamente incender, de mártires dos altos ideais de que somos agora como que os usufrutuários – e por eles imolados pela malquerença, cega e crua, inclemente e ínvia na repressão e na vindicta dos antagonistas, ainda os mais nobres, e dignos, e respeitáveis.

Relembro-lhes os nomes, desses de quem nos ficaram os crânios como que num relicário que é perpétua fonte inspiradora para nosso fortalecimento de ânimo quando este se entibia, e de afervoramento, e simultaneamente de condenação dos meios, evidentes ou ocultos de que serve a prepotência impune.

Relembro-os reiterada, contumazmente, em mais esta oportunidade: Francisco Manuel Gravito da Veiga e Lima, Manuel Luís Nogueira, Clemente de Melo Soares de Freitas, Francisco Silvério de Carvalho de Magalhães Serrão, enforcados em 7 de Maio de 1829, e Clemente de Morais Sarmento e João Henriques Ferreira, que sofreram também a pena capital, com a mesma sanha torva, cinco meses depois, em 9 de Outubro do mesmo ano. Relembro-os reverentemente.

Salientemos nestas linhas de mal concatenada evocação o nome do aveirense e cidadão, a que talvez apenas a idade alquebrou na defesa ardorosa dos princípios, que foi a figura maior, a glória viva mais paradigmática e eminente, durante um bom quarto de século antes da sua morte unanimemente sentida – o egrégio Manuel José Mendes Leite, que Aveiro subestima nas suas memórias concretizadas de preito aos conterrâneos de mais fundo vinco nos seus anais.

Com a população aveirense, praticamente sem excepção, a tomá-lo como um seu expoente de grandeza raramente alcançada, e a ele vinculada pelas suas consabidas inclinações de solidariedade e consideração fraternas, e os ideais comuns à maioria e condicentes com o espírito colectivo manifestado desde há pelo menos alguns decénios. E, ao mesmo tempo, os evitados riscos em que bravamente incorreu e o espectro que se lhe antepôs no horizonte do enforcamento na memória de todos, ele foi o liberal sem jaça, rasgado e íntegro, marcado indelevelmente pelas moças impressões de horror, e de repulsa, e de afinidades sentimentais e de idealismo com a cordata e independente comunidade aveirense.

Clicar para ampliar.

Mendes Leite

Aberto e tolerante, despido de malignidade e do espírito de reivindicativa, Mendes Leite, que perdia eleições com espírito desportivo (sem afrouxamento, mas sem malquerença) em toda a sua longa existência de quase oito décadas de anos, soube sempre inquebrantavelmente divergir sem vislumbre de animadversão. / 50 /

Nessa honrosíssima iniciativa – quiçá imortalizadora – testifica, evidente e magnânima, a sua coerente e larga grandeza de ânimo o liberal que partilhou inveteradamente convicto os sentimentos latentes nos mais desprotegidos, e os compreendeu e perfilhou com fraterna humanidade, nas pérfidas mancomunações e influências.

*  *  *

Aflorei, sem concretizar dados biográficos, honrosíssimos e numerosos, uma apreciação do eminente vulto aveirense que emparceirou dedicadissimamente com José Estêvão, e lhe deu com um afecto indefectível, os mais amistosos alentos, tanto, nas penosas vicissitudes de alguns períodos de exílio, como no acamaradar, em plena partilha, nas mais diversas iniciativas, e na sintonia dos momentos mais acerbos ou na euforia do triunfo – o tão despicientemente esquecido dos seus conterrâneos Manuel José Mendes Leite.

Volvamos, porém, ao título que mais o impõe, e mais perenemente, à veneração dos aveirenses – nessa qualidade e como cidadãos – a sua acção persistente e animosa, convincente e aglutinadora a favor da abolição da pena de morte por crimes políticos, que seria um primeiro passo decisivo para que ela fosse banida também da nossa legislação penal nos crimes comuns.

Relembremos como o grande título de glória de um aveirense ilustre e devotado, a inclusão no Acto Adicional à Carta Constitucional desse rasgado e percursor princípio.

A Câmara electiva, não sem divergências e lutas, viria a aprová-lo na memorável sessão de 29 de Março de 1852.

A proposta foi apresentada à Câmara electiva, na sessão de 10 de Março. Curtíssima, mas bastante para consagrar um princípio, que afinal estaria no sentimento colectivo.

O deputado Mendes Leite, o homem generoso que lembramos, indestrutivelmente ligado aos humanitários ideais, por que desde a mocidade intrepidamente lutava, mandou para a mesa, e justificou, um aditamento ao Acto Adicional, com o seguinte teor:

«É abolida a pena de morte nos crimes políticos». «Fica, assim, ampliado o § 8.º do artigo 145 da Carta.»

Esta proposta foi admitida pela mesa, mas, porque tanto a decorrente como as imediatas sessões se encontravam densamente preenchidas, ficou a aguardar propícia oportunidade.

Viria, assim – e aumentando o interesse pelo debate paralelamente com a demora – a ser apresentada à consideração da Câmara, em 29 de Março, na ordem do dia. Deu ensejo a um debate vivo, participado por algumas das mais destacadas figuras políticas do tempo, e em que uma parcela dos oradores manifestando-se pela proposta inserção e, assim, contra os porta-vozes da opinião governamental – que, aliás, apoiava o princípio, julgando que a abolição não devia inserir-se na Carta – viu sair vitoriosa, mesmo sem propósitos hostis ao executivo, essa forma de consagrar e firmar esse terminante banimento dessa já quase anacrónica gradação penal máxima. Todos dela manifestamente discordavam, apenas divergiam, por motivos de especulativa dialéctica de oportunidade.

Os apoiantes dos pontos de vista de Mendes Leite, eram, todavia, impelidos pela magnanimidade que era apanágio inquebrantável do grupo de homens fortes e rectos para quem a circunstância de ocuparem politicamente a posição dominante representava como dobrada razão e obrigação para serem rasgada e decididamente clementes. Não desejavam, nem em consciência podiam admitir, que se submetessem mesmo os seus mais contumazes e mais despidos de sensibilidade entre os seus adversários, ao que haviam vivido como um atroz espectro – que os perseguira em momentos de perigo, e atingira implacavelmente alguns companheiros de ideal e de luta.

A memorável sessão, a que presidia Silva Sanches – e foi secretariada por Rebelo de Carvalho – segundo diria o próprio presidente, seria preenchida em todo o / 51 / período da ordem do dia, dado o número de intervenientes e a controvérsia que se prenunciavam, com o «aditamento do Sr. Mendes Leite, para que se consigne no acto adicional a pena de morte para os crimes políticos.»

O aditamento do Sr. Mendes Leite, sublinhe-se, diz o relato oficial da sessão. E como tal indisputavelmente foi então geralmente designado e ficou consagrado. Claro que tinha outros subscritores. Entre eles, por exemplo, António Xavier Rodrigues Cordeiro, que desse plenário inolvidável do Parlamento viria a escrever trinta e dois anos mais tarde (6)... «hoje seria objecto de admiração que, em matéria controvertida, na qual três ministros, tantos quantos estavam na sala, se terem pela palavra, e mais que uma vez, manifestado contra ela, houvesse uma câmara de deputados que, (...) sem nenhuns intuitos de oposição, votasse, em votação nominal, contra o que o governo queria.»

E acrescentava ainda, ufano desse triunfo parlamentar, que partilhara, ao relembrá-lo, passado um terço de século: «É que a Câmara era um dos parlamentos mais independentes, mais inteiros, de maior ombridade que temos tido. Não são esses os mais duradouros, infelizmente.»

Um parlamento com esse livre espírito de independência não agradaria, de certo, ao governo, já que mesmo alguns daqueles de quem habitualmente lhe viria apoio, se lhe furtavam, e se desirmanavam dos mais fiéis e disciplinados, para exprimirem, em algumas circunstâncias, claro e firme, o seu voto antagónico.

Por isso – ou pelo menos por parcelar influência do caso – após a sessão do dia imediato, já que o governo, apesar do seu «fair-play», terá ficado ressentido com o toque, acaso um tanto inesperado, as reuniões parlamentares sofreram sucessivos adiamentos.

Os deputados, aliás, haveriam tomado o gosto na reincidência de contrariar o executivo, e já, quando com ele não estavam de acordo não hesitariam em evidenciá-lo nas votações. E, claro. o governo, como tantas vezes tem sucedido em casos similares, acabou por promover a dissolução da câmara electiva, tão pouco submissa.

António Xavier Rodrigues Cordeiro, nas mesmas páginas de preito a Mendes Leite, e em remate delas, escreveria: (7)

«O combate começara em 29 de Março, com o princípio da abolição da pena de morte nos crimes políticos inserto no Acto Adicional. Teve então (8) o seu desenlace.»

 

Feita a chamada, disseram – approvo – os Srs. Braamcamp, Cardozo Avelino, Corrêa de Mendonça, Dias de Oliveira, Barjona, Duarte de Campos, Holtreman, Pequito, Pinheiro Ozorio, Sampayo, Rodrigues Cordeiro, Balthazar Machado, Barão de Almeirim, Bento de Castro, Seixas e VasconceIlos, Marques Baptista, Conde de Villa Real (D. Fernando), Rebello de Carvalho, Martins da Costa, E. da Cunha Pessoa, Faustino da Gama, Barroso, AIves Vicente, F. M. de Carvalho, Soares de Azevedo, Loureiro, Mello Soares, Carlos da Silva, Soure, Almeida e Silva, Benevidas, J. C. de Campos, Sousa Pinto Basto, Pestana, José Ferreira Pinto Basto, J. J. de Mattos, J. M. Ferreira, Casal Ribeiro, MelIo Giraldes, Sousa Caldeira, Passos (José) Justino Ferreira Pinto Basto, Leonel Tavares, Trindade Leitão, e Moreira Maya, Mendes Leite, Passos (Manoel), Fernandes Thomaz, Coelho de Carvalho, Sebastião Manoel de Gouvêa.

Disseram rejeito os Srs. Agostinho Albano, Avila, Lousada, Fontes Pereira de Mello, Sousa Menezes, Saraiva de Carvalho, Sarmento, Vaz da Fonseca, Aristides, Barão das Lages, Barão de PaIme, Carlos Bento, Conde da Ponte (D. João), D. Francisco de Assis, Gomes de Carvalho, Lobo de Moura, Vaz Preto Giraldes, Gomei Lima, Honorato Ferreira, Abreu CastelIo Branco, Ferreira Pontes, Ferreira de Castro, J. M. Grande, Ribeiro de Almeida, Silva Sanches, Justino de Freitas, Placido de Abreu, Nogueira Soares, Thomás de Aquino, Ferrer, Visconde de Azevedo, e Visconde de Fornos de AIgodres.

Ficou portanto approvado o additamento por 50 votos contra 32.

Reprodução, do relato da sessão de 29 de Março de 1852

Mas o que importa para aqui é a sessão de 29 de Março.

O primeiro dos oradores a intervir no debate – e com pensamento coincidente com o do governo, foi o Sr. Ferrer. Não renegava o que havia escrito sobre o princípio que motivou a proposta. Julgou conveniente, todavia, que ele não fosse inserido no Acto Adicional, uma vez que na lei fundamental só devem ser consignados princípios orgânicos e esse o não era.

Ripostou imediatamente Mendes Leite, que era o grande patrono da proposta, e, nos termos textuais do relato oficial da sessão, «observou que o Sr. Ferrer, concordando com o princípio, opõe-se a que ele seja consignado no acto adicional; porém, pela sua parte, não pode deixar de insistir pela sua aprovação, porque não é um favor que se pede para os partidos, é uma garantia para todos eles, e é um princípio, cuja consignação nas leis fundamentais já tem um precedente, por isso que a França o inseriu na constituição de 1848, e não há inconveniente algum em que seja inserido também no acto adicional, porque uma lei regulamentar desenvolverá o mesmo princípio, assim como leis regulamentares têm de desenvolver alguns outros princípios que estão consignados no acto adicional.»

 

Intervieram no debate, com razões semelhantes às aduzidas, e contestando a validade do caso francês, pois este se verificara numa oportunidade que nada teria de semelhante ao momento português, e, defendendo o ponto de vista governamental – que viria a ser vencido por larga maioria na votação a que depois se procedeu – além do referido deputado, que sustentaria a sua posição, individualidades como: Rodrigo da Fonseca 

/ 52 / Magalhães, à data Ministro do Reino; António Luís Seabra que era o Ministro da Justiça, e Carlos Bento. E apoiava-os entre outros. Fontes Pereira de Melo.

Pronunciaram-se a favor da proposta além de Mendes Leite, seu primeiro signatário e seu mais entusiasta defensor, figuras igualmente destacadas desse período e das lutas que o antecederam, nomeadamente Casal Ribeiro, Leonel Tavares, Barão de Almeirim e o citado Rodrigues Cordeiro.

O considerado proponente, que requereu a votação nominal, veria triunfar a sua proposta – ainda que depois se verificassem inconsistentes controvérsias de pormenor, inteiramente supérfluas – por 50 votos contra 32.

Estava, assim, até hoje, e cremos que por largo tempo ainda, abolida a pena de morte por crimes políticos – os crimes que só o são quando são vitoriosos os adversários.

*  *  *

Aos aveirenses causará talvez estranheza que entre os votos de aprovação – em que figuram grandes nomes como os dos irmãos Passos – e entre as vozes que se ergueram para a defender, não figure José Estêvão. Este grande amigo de Mendes Leite adoecera gravemente com uma febre tifóide e esteve quase cinco meses sem frequentar a Câmara. Só, por isso, se não associou à defesa, com o ardor, o brilho e a capacidade de convicção que lhe eram peculiares, da proposta.

Regressaria às lides parlamentares em Julho, sendo em 21 desse mês, a primeira sessão a que assistiu e em que usou da palavra. E com as comovidas e comovedoras expressões de cativado reconhecimento pelas demonstrações de interesse pelo seu estado – «raríssimas vezes tem presenciado a capital manifestação idêntica; o nome de José Estêvão andava na boca de todos» (9) – e, então afirmou que (10): «sentia muito não ter podido associar o seu voto ao daqueles que tinham votado pela abolição da pena de morte nos crimes políticos, porque, além de ser um grande princípio, era o sentimento nacional, e mesmo nos crimes civis a desejava ver abolida, para que o homem não pudesse ter mais força que Deus.»

*  *  *

«COSPE-FORA» – O ÚLTIMO ENFORCADO EM AVEIRO, EM 1841

Crime comum, ou pelo menos assim considerado – embora não seja totalmente de excluir, como já dissemos, a hipótese de na sua génese haver torvos desígnios de política odienta e, assim, indirectos, mas insidiosamente determinativos na pertinácia do tecer de um estado de espírito de cegueira cúpida e vindicativa, lembremos aquele que motivou a última execução capital, por enforcamento na cidade e na comarca de Aveiro.

A execução efectuou-se no Rossio. No Rossio de S. João, como nesses tempos se chamava, por nele se erguer a capela – demolida em 1911 – que tinha por orago o Santo Percursor, e para o distinguir do Rossio, ou Terreiro, das Carmelitas. E verificou-se há mais já de cento e quarenta anos. Precisamente a 3 de Setembro de 1841.

Foi efectivamente o último condenado à pena capital na comarca aveirense e o último – por isso recordado, digamos, como um marco histórico nos anais de Aveiro, mormente numa terra onde raramente se regista um homicídio – consequentemente, a ser levado à execranda forca; Abominanda, sem dúvida, banida dos princípios e códigos penais que desde então se foram humanizando e recorrendo à modernização mecanizada de métodos mas que, não sabemos porquê, se mantém, numa região que se ufana de gentes de humana tolerância e benignidade sentimental, num topónimo do aro citadino, talvez de fundamento histórico, mas de degradante lembrança.

Chamava-se esse derradeiro supliciado em Aveiro Jerónimo dos Santos Brandão. E, acaso por um inveterado vício desprezador das regras higiénicas e da suscitada repugnância alheia, era geralmente conhecido – nesses antigos tempos em que as alcunhas abundavam em Aveiro e eram talhados, identificadores, para cada qual as características de mais evidência – pelo apodo, com o seu quê de repulsivo de o «Cospe-Fora.»

Sapateiro de profissão, morador, suponho, para as bandas do S. Gonçalinho, este deita-tombas ávido e talvez canhestro. viveria, provavelmente com aperto de uma economia doméstica sem folgas. Ele na sua arte, que não dava talvez para mais que um modesto, aperreado dia a dia, e a mulher na absorvente lida da casa. A labutarem sem descanso, acaso sem sequer amealharem para «receber o ramo», como tantos vizinhos das redondezas, e sem forrarem para constituir o pecúlio que uma velhice descansada requeria.

Passava por ter umas vagas simpatias pelo opressivo, ainda que não de todos malquisto, miguelismo, já então banido de vez mas de que, bruxuleantes, algumas simpatias persistiam.

Esse facto – aliás contestado por um dos exumadores desse triste acontecimento – não o impediu de acolher no seu aperreado lar, um tio, António José Gomes Guimarães, também vulgarmente denominado por uma expressiva alcunha, a de «António, ou Antoninho das Más Horas», que faz lembrar um celibatário, ou viúvo, sorumbático, ensimesmado, a quem a sorte adversa ou algumas nefastas circunstâncias da existência, atormentara. Era liberal convicto o triste velho, no qual o luzeiro do idealismo nunca se terá extinguido. Por esse facto sofreu nos / 53 / calabouços da praça de Almeida, largo tempo de soturna e depressora prisão. E uma vez restituído à liberdade, veio definitivamente para Aveiro, para casa do sobrinho – em cujos sentimentos de parentesco acolhedor confiou.

E com alguma correspondência afectiva, ou já com interesseiro cálculo, o facto é que o «Cospe-Fora» e a mulher, Ana Rosa, nos primeiros tempos o acarinharam a ponto de o levar a fazer testamento dos seus haveres em proveito do casal.

Daí em diante, si vera est fama, os sobrinhos cúpidos, sentindo-se servidos, tiraram a máscara de dedicada afeição fingida e passaram a tratar o benfeitor agrestemente, com crescente azedume e sobranceria amargurando-lhe uma vida de precária saúde, melancolicamente arrastada.

Numa ocasião em que descarregaria as suas mágoas, um amigo, considerando a razão dos queixumes que lhe confiava do casal que o acolhera por cobiça, aconselhou o infeliz velho a fazer novo testamento deserdando os sobrinhos.

Ora essa disposição do António das Más Horas transpirou e, casual ou mal intencionadamente, chegou aos ouvidos do interesseiro casal, que se viu em risco eminente de perder alguns cobiçados bens – modestos, mas que para a sua pobreza constituíam uma fortuna apetecível e confortável.

Assim, segundo a versão que correu pela imprensa do tempo (v. g. “O Constitucional”, n.º 52, de 1841, e o “Periódico dos Pobres”, n.º 207), na madrugada de 11 para 12 de Setembro de 1938, sem rumores que os denunciassem, entraram no quarto do velho tio, que dormia sossegadamente com a cabeça coberta com o lençol, e vibraram-lhe, certeira e mortal, uma machadada, que logo o liquidou. E, ao que parece, para consumar o homicídio bárbaro e se assegurar dele, haveria repetido o violento golpe por duas vezes, segundo então se divulgou. E é muito plausível, mais por ardor de sanha assassina, para arrumar o caso definitiva e prontamente, do que no intuito, com vagos vislumbres de humanitarismo, de lhe aplicar o abreviador golpe de misericórdia.

Socorrendo-me de abundantes e escrupulosos apontamentos que sobre o macabro caso reuniu o Dr. Joaquim de Melo Freitas que, além de muitos outros méritos, anotava com a regularidade, a minúcia e a exactidão que lhe eram possíveis, e não só nos acontecimentos quotidianos de interesse geral, mas dos factos mais salientes, de toda a feição, dos anais aveirenses – relembramos alguns aspectos de pormenor desse crime, que tanto abalou a pacatez da população aveirense, mormente da zona da Beira-Mar.

Homem Cristo vê neste cruel assassinato (11) uma maquinação de cariz político, vesga e satanicamente concebida e perpetrada para reduzir o número dos adeptos da parcialidade adversa. E, embora nas notas coligidas por Melo Freitas não se exclua e antes se sugira a hipótese de intolerância, não se apresenta o ódio político tão peremptoriamente na origem do impressionante crime. E, afinal, essa admissível causa nos conduziu a juntar a exaltação da alta e simpática figura aveirense oitocentista que fez incluir no diploma basilar da vida do país, a percursora disposição que aboliu a pena de morte para crimes caracterizadamente políticos, com a recordação deste hediondo episódio do patrazanal dia a dia da sociedade aveirense de há perto de século e meio.

Reatemos, no entanto, o relato dos factos de acordo com as narrações dos periódicos citados e das Memórias do Tempo Passado para Lição dos Vindouros, (12) do Dr. António Luís de Sousa Henriques Secco e as duas mencionadas fontes aveirenses.

Com o horror que se calcula (especialmente numa terra ainda não refeita dos abalos causados pelas execuções daqueles que ficaram considerados como os aveirenses Mártires da Liberdade, e cujos crânios são conservados, para alento e inspiração dos aveirenses, como que num relicário ou numa ara dos nossos Lares, ao centro, geométrico e de maior significado para a nossa cultuação, do mais antigo dos cemitérios citadinos, (então único) o cadáver do António das Más Horas, com as marcas evidentes das machadadas brutais, junto ao que sucintamente na altura se designava apenas pelo Cais.

E ignoramos, assim, se do lado do Canal das Pirâmides – ao tempo recente – se já do Canal Central que, por essas alturas, se chamava ainda, sobriamente, a Ribeira – a pequena distância da Capela de S. João, que só viria a desaparecer já no século que corre. Concretamente em 1911.

Clicar para ampliar.
Aveiro – Ria e Campo do Rossio, onde se efectuou o último enforcamento na cidade, em 1841.

A partir daquele local, as autoridades, que logo acorreram, e os populares curiosos, que não resistiram ao impulso mórbido de ir contemplar o macabro espectáculo, foram encontrando, a par de cabelos, dispersos de onde a onde, um rasto intermitente de sangue, até à casa do suspeito «Cospe-Fora», o que avolumava os motivos da sua culpabilização. E, mesmo dentro do prédio, no pequeno quintal dele e na escada de acesso ao primeiro andar, as manchas de sangue continuavam com acrescida densidade.

Aliás, os degraus mais elevados, onde acaso se haveria derramado maior quantidade do sangue do assassinado, mostravam haver sido lavados há pouco. Prosseguindo na sua investigação, os representantes da autoridade, não obstante terem sido já também submetidos a uma lavadela, não tiveram dúvidas também de que houvera o propósito de apagar alguns / 54 / comprometedores vestígios do sangue vertido, no quarto contíguo àquele em que dormia a vítima.

No próprio quarto do desventurado velho, aliás, havia evidentes marcas de sangue coagulado, tanto na cama, à cabeceira dela, como na parede a que encostava, numa fiada praticamente ininterrupta.

No exame minucioso efectuado à cama, em que houvera o cuidado de colocar lençóis lavados, verificou-se que o enxergão fora cortado, de forma regular e cuidadosa, na parte central, e remendado, com serapilheira. Ora sob esse recente remendo, no fundo de duas camadas de palha fresca, encontrava-se uma terceira mais antiga. E nesta observavam-se manchas idênticas, não apagadas, que tudo fazia crer serem do sangue derramado pela vítima.

A palha ensanguentada que houvera o cuidado de retirar do enxergão viria a ser encontrada, na continuação do exame feito à casa, numa latrina, e num outro quarto apareceria o lençol tirado da cama, ainda enodoado, e com três rasgões, que coincidiam exactamente com os golpes marcados no crânio assassinado.

Claro que, com estas provas evidentes, e a ajuntar os zunzuns que há um certo tempo se cochichavam acerca dos propósitos cúpidos e desumanos do «Cospe-Fora», este foi imediatamente preso. Sobre ele recaíam, aparentemente indubitáveis, as culpas do cruel homicídio.

O sapateiro, estribado talvez em ilusórias promessas de um oculto instigador do crime, terá reagido com relativa serenidade à determinação de captura, alegando que ninguém podia ser preso sem culpa formada. E, agarrado a essa pretensa tábua de salvação, interrogado acerca dos vestígios de sangue encontrados, calmamente retorquiu que eram devidos à aplicação de sanguessugas que o desventurado Antoninho das Más Horas usava amiudadamente.

De seguida, foi levado até ao cais, e colocado defronte do maltratado cadáver do tio. Pelo caminho, repetidas vezes, houve quem notasse que procurava apagar, com as solas das botas, os vestígios já secos dos pingos de sangue. E, na presença do corpo, cinicamente, declarou que o desventuroso António das Más Horas, não pernoitara em casa. Teria estado durante a noite, provavelmente, com algumas mulheres da vida fácil, que acaso o houvessem roubado, e depois assassinado.

O desprendido à-vontade e a insensibilidade com que engendrava fictícias razões para um crime que à generalidade das pessoas, horrorizadas e indignadas não deixava dúvidas da autoria e do móbil, indispusera as ânimos a ponto de os populares, desbordantes de ira castigadora, mostrarem disposição de desejar fazer «justiça» por suas próprias mãos, imediata e decisiva. Só a prudência e os suasórios argumentos das autoridades o terão evitado.

O julgamento, a que presidiu o Juiz José Maria da Silva Pinto, terminou a 8 de Março de 1839. O «Cospe-Fora», não obstante a sua persistência em negar a autoria do crime, tão evidentes lhe pareceram as provas, condenou-o à pena capital por enforcamento.

A mulher, a seu turno, condenou-a a degredo por toda a vida, em Cabo Verde – zona ultramarina para onde normalmente estava impedida a imposição de degredo a mulheres, pelo expresso na Ord. L.º 5, tit.º 14.º § 2.º, mas que, em casos de muita gravidade, como o que estava em causa, fora consentida, por um decreto de 27 de Junho de 1795. Solidariamente, aliás, o tribunal condenou também o casal, e, pois, «ambos os condenados, no pagamento das custas» do processo.

A Ana Maria, que teria agido em conivência com o marido, na mesma mira da herança que via em perigo / 55 / de fugir-lhe, mas que teria desempenhado um segundo papel, de comparsa apenas, apelou da sentença. Vê-la-ia comutada em apenas quatro anos de degredo, na ilha de S. Vicente, também do arquipélago cabo-verdiano.

O enforcamento do «Cospe-Fora» verificar-se-ia a 3 de Setembro de 1841 – uma data negra da história de Aveiro, que só se recorda pela circunstância de a aplicação da pena capital haver sido a última na cidade e na comarca. E a forca foi erguida no Rossio, o logradoiro em cujo entrada se ergueu, durante vários séculos, o pelourinho, que os liberais não resistiram a derrubar, já que de algum modo lhes lembrava um regime banido. E no Rossio ainda não ampliado com a expropriação da velha marinha Rossia, de que há já notícia dos fins do século XIV, nem com a demolição já novecentista, como já referimos, da mal estimada capela de S. João, o malquisto condenado chegou do Porto, onde estivera a aguardar o cumprimento da sentença, e de onde partira na sua última segunda-feira, para chegar a Aveiro, na terça imediata, ao princípio da tarde. E no moroso, fastidioso percurso – com uma parcela feita por terra, e outra, do Carregal de Ovar à cidade, por via fluvial, a remos ou à vela – nunca deu sinais de abatimento. Talvez, e até aos derradeiros momentos, confiado em qualquer poderosa intervenção protectora enganosamente prometida.

Ao contrário, mostrava-se, sereno, confiado, bem humorado. Apodava pejorativamente de «malhados» os soldados que o custodiavam, o que faz crer nas suas simpatias miguelistas. E asseverava-lhes, convicto, que a sua morte, se se verificasse, a curto trecho seria vingada.

Inseguro, todavia, da sorte que lhe estava destinada, inconfiado na efectivação de frustes prometimentos que lhe hajam feito, perdeu, porém, o apetite. Salvo uma pequena porção de marmelada que mal saboreou por alturas de Ovar, nada terá comido na demorada viagem, que, afinal, efectivamente o trouxe para a fatídica forca.

Com a antecedência de três dias, para cuidarem, em pormenor, de todos os preliminares, já haviam chegado, para procederem à execução, dois algozes oficiais e experimentados.

Em Aveiro, já que a pena de morte, em consonância com o sentimento das populações, estava já caindo em desuso, não os havia, e ninguém se disporia a desempenhar essa macabra, nefanda função.

Nessa altura, segundo as notas recheadas de dados, os mais mínimos, de que me venho servindo, os execrandos algozes envergavam uma indumentária negra – negra como a tarefa de que se encarregavam –, com botas também negras, e uma espécie de gabão amarelo – como o desespero dos penitentes executados.

Ficou na tradição – e tanto Melo Freitas como Homem Cristo o registam – que o «Cospe-Fora» teria relatado com minúcia e sem esconder o mínimo pormenor, como se dera o crime e quem realmente o praticara ao sacerdote que o ouviu de confissão antes de subir à forca, o conhecido e conceituado Padre Possante – ou melhor o Prior Possante, o bondoso e ilustrado murtoseiro Padre João José Marques da Silva Valente.

Este respeitado sacerdote talvez não desse inteira credibilidade aquela última confissão e tê-lo-á dissuadido de declarar a pouco verosímil versão que lhe apresentava e que comprometia o conhecido Capitão Joaquim, pertencente a uma conceituada família. Antigo «assentista da tropa», chamava-se Joaquim António Coelho de Almeida, e, alvo da pecha local de crismar com as mais diversas alcunhas os habitantes da cidade, foi durante largo tempo apodado de Joaquim dos Burros. Só mais tarde, e já quando desempenhava aquela rendosa função, passou a ser geralmente designado por o Capitão Joaquim – porventura capitão de milícias como sugere Homem Cristo.

O veemente panfletário aveirense refere-se-lhe nos seguintes termos: (13)

«Esse nome ficou ligado a uma tragédia que teve o seu epílogo na forca, erguido no Rossio (...). O Capitão Joaquim era ferozmente miguelista. Como o Fernando da Estalagem, (14) como toda a família.

«Enquanto D. Miguel esteve no poder, os miguelistas em geral – havia excepções como em tudo – andavam à caça dos liberais como quem anda à caça de codornizes. Destruí-los pela mais extrema violência, a prisão em condições horrorosas, o cacete, a forca, eram todo o seu objectivo. Caído D. Miguel recorreram, para o mesmo fim, à calúnia, à intriga, a todos os expedientes, por mais vis.»

E concretiza: «Em Aveiro houve um qualquer dissentimento entre dois liberais (15), que viviam juntos, o António das Más Horas e o Cospe-Fora, tio e sobrinho. Capitão Joaquim procurou meios de os perder. E começou a andar à roda do sobrinho, a envenenar-lhe a alma, a perturbar-lhe o espírito, dizendo-lhe: – Vai refazer o testamento e deserda-te, se, antes, não deres cabo dele.

«Ao Cospe-Fora, a ideia de o tio o deserdar endoidecia-o. O Capitão Joaquim foi-o percebendo, e foi insistindo: – Se não deres cabo dele estás perdido.

O Cospe-Fora acabou por aceitar a ideia de dar cabo dele, Mas, confessava, não se sentir com ânimo para ser assassino. – «Tens coração de pombo! Mas não tem dúvida. Isso arranja-se. Eu forneço um homem de pulso.»

O crime consumou-se nas circunstâncias que vimos.

E, depois de perpetrado, diz ainda o castigador polemista:

«Quando raiou o dia, o Capitão Joaquim dirigiu-se a casa do Manuel Maria Ferraz (...) com uma loja de / 56 / mercearia (16) no ainda hoje chamado Largo do Manuel Maria, alegre e sorridente: – Manuel, já lá vai mais um.»

E, depois de acrescentar que o Manuel Maria também era adepto do miguelismo, odiento e opressor, adianta:

«O Cospe-Fora, preso e julgado, negou sempre que houvesse sido ele o assassino. E tudo o mais ocultou, convencido de que o salvariam as influências que tinha na terra o Capitão Joaquim. Enganou-se. (...)

«Conta-se – e neste particular, como vimos há coincidência manifesta com o referido nas notas do Dr. Joaquim de Melo Freitas – que, no oratório, disse tudo ao confessor. Era tarde.»

E, antes de recordar o terror que as várias facetas do caso lhe causavam, quando em menino o ouvia relatar, rematava a sua alusão a uma última fase, de incontidas manifestações alucinadas, do hediondo crime: «Capitão Joaquim, mais tarde, endoideceu (17). E foi ele quem, nos desvarios da loucura, veio a lançar a melhor luz sobre a tragédia. Tinha visões horríveis. Ora sentia estalar os ossos do António das Más Horas sob os golpes da machada, ora via o Cospe-Fora, com meio palmo de língua saída, a baloiçar na forca. Aos gritos, tapava os olhos com as mãos, e caía de joelhos, pedindo perdão aos homens e a Deus. Às vezes fugia, de olhos esgazeados e mãos crispadas, de corpo vergado para o chão, como se alguma coisa horrenda o perseguisse. E clamava: – Deixa-me, deixa-me, perdão. Quem mandou matar o António das Más Horas fui eu». (18)

Admite-se, pois, que este último enforcamento, efectuado no amplo logradoiro, junto ao qual foi encontrado o cadáver do velho indivíduo assassinado, tivesse na origem um vesgo ódio político. É apenas uma suposição, uma conjectura talvez infundada, ainda que com aparências sugerentes de uma confirmação e de uma credibilidade com largos pontos de verosimilhança.

Lembrar esse episódio, com aspectos, aliás, antagónicos com a anterior evocação, conjuntamente com o relevamento de significado humano da abolição de pena de morte por crimes políticos, ao mesmo tempo que um ilogismo, parece-me perfeitamente justificado e oportuno. E julgo que constitui mais uma demonstração incontrovertível da grandeza de espírito do inspirador e propugnador dessa humanitária disposição constitucional – que, mesmo na lembrança relativamente fresca do crime hediondo que deu motivo à última execução capital efectuada na sua terra, não deixou de apostolizar, vibrante, generosa, aglutinadoramente, para os próprios adversários mais intransigentes e torvos.(19)

__________________________________

(1)Parabens, 1884, pg. 25.

(2)Parabens, 1885, pg. 6.

(3)O Povo de Aveiro, n.º 288 (7.º ano), de 21-8-1887.

(4)Parabens, 1884, pg. 25.

(5)Parabens, 1885, pg. 13.

(6)Um combate sem sangue, in Parabens, 1885, pg. 8.

(7)Parabéns, 1885, pg. 9.

(8)Um combate sem sangue, in Parabens, 1885, pg. 8.

(9) – A Constituição da República Portuguesa, actualmente em vigência, e aprovada em 2 de Abril de 1975, diz, textualmente, no Artigo 25.º – 2 – no Título lI: «Em caso algum haverá pena de morte». Mais: no n.º 2 da Artigo 26.º ficou expressamente disposto que «Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanas».

(10)Marques Gomes, «José Estêvão», 1889, pg. 119.

(11)José Estêvão –«Estudo e Colectânea», 1962, pg. 121.

(12)Notas da Minha Vida e do Meu Tempo, VpI. 1, pg. 67.

(13) – Fasc. 2.º, pg. 226.

(14) – Ob. cit., pgs. 67 a 69.

(15) – Pai do Capitão Joaquim, de seu nome completo Fernando António de Almeida.

(16) – É duvidoso que fossem.

(17) – Que mais tarde pertenceria a Albino Pinto de Miranda, cujo nome preteriria o do antecessor, na toponímia popular, espontânea.

(18) – O Dr. Joaquim de Melo Freitas, nas suas notas apontou: «O Capitão Joaquim endoideceu depois e dizia: «Quem o matou fui eu. Dei-lhe com um pau de campeche».

(19) – Não há, em diversas particularidades, inteira concordância nas duas versões do caso que citei, o que, aliás, é natural acerca de um facto ocorrido multo tempo antes, e que se transmitira em relatos orais deturpadores.

 

páginas 46 a 56

Menu de opções

Página anterior

Página seguinte