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Nunca o Ánhuca pensou...

Ánhuca, ilustração de António Galvão.

Primeiro era só muita gente, anónima, circulando na belíssima Praça da Republica em todas as direcções, e, por concomitância, a agitação. Depois, lentamente, começou a observação mais atenta. O meu subconsciente estava recebendo estímulos de algo não condicente com a racional beleza habitual. Sem perturbações interiores de qualquer tipo, continuei usufruindo da pouca paz nocturna habitual nesta terra, nesta altura do ano. Mas continuava sentindo que algo de pouco usual estava presente, e, certamente, não era nenhum milagre da Senhora da Agonia.

No dia seguinte, durante a manhã, sentado numa esplanada da Avenida dos Combatentes (conspurcada com as monstruosas bancadas metálicas), a mesma sensação e o mesmo leviano desapego sobre o assunto.

E isto repetiu-se por vários vezes, durante aqueles escassos dias de permanência em Viana do Castelo, até que, sem nada fazer por isso, detectei a anomalia, a mancha na beleza: era a estranha vestimenta usada por gente a mais, de idades diversas, de ambos os sexos e de todas as volumetrias.

Sobressaíam do conjunto dos atavios, fundamentalmente, duas peças: a) as berrantes camisolas (aculturados, nós agora quase só lhe chamamos T-Shirts) cobertas dos mais abstrusos desenhos e dizeres, alguns, uma esmagadora maioria, sem qualquer nexo, simplesmente alguém “estranho” os pôs lá e outros seus iguais os acharam “ o máximo”; b) as peças de formatos, cores e desenhos algo esquisitos, que os vestiam da cintura para baixo.    

Sinceramente, foram aquelas coisas que lhes cobriam as partes baixas, que não eram bem calças e muito menos calções, não chegavam a baixo mas também não ficavam em cima, andando mais-ou-menos pela barriga das pernas. Largas ou estreitas, com riscas verticais e/ou horizontais, com bolas e outros desenhos de modo vago parecidos com objectos geométricos, de todas as cores e tecidos, com borlinhas do lado exterior das pernas, mas também sem borlas..., que mais chamaram a minha atenção.

E depois estas peças de roupa (peço perdão pelo atrevimento de assim as chamar), de per si esquisitas, assentam de forma diversa, como é lógico, de acordo com a configuração do corpo de cada um que as usa. É evidente, que nos jovens de corpo vigoroso (bem ou mal feito) a quem tudo se vai tolerando, ainda-vá-que-não-vá, muito embora mantenham o seu ar apalhaçado. É claro que as coisas se tornam mais flagrantes, quando o utente, cinquentão/sexagenário(a) ou coisa que o valha, tem umas perninhas do tipo agulha, fibrosas e cabeludas, uns ombros descaídos, de braços pendurados mais parecendo peças de marioneta. Ou então, e igualmente muitíssimo mau, quando tudo é redondo, ás vezes pelhrancudo, e de ar balofo, cabeludo ou depilado, fazendo-nos perceber onde a Michelin se inspirou, para além de nos próprios pneus, para criar o seu tão famoso símbolo/emblema.

E é aqui, subitamente, nesta altura do displicente raciocínio, que todas as peças/ideias/pensamentos à solta no meu cérebro se juntam...: Isto é uma homenagem ao Grande Ánhuca! E vi, súbita e nitidamente, a sua fabulosa, desforme e colorida imagem, onde tudo era demais ou de menos, estudado ao pormenor, visando um só e nobre objectivo, que a todos, hoje e sempre, devia ser imposto: Fazer rir as crianças.

Bem-haja, por isso, o Grande Ánhuca. Mas, esteja lá onde estiver (se é que está em algum lado onde possa ver ouvir e tomar atitudes), que me perdoe, pois não me vou juntar a esta manifestação de “títeres”, uma vez que a minha pobre capacidade de obediência e tolerância ao ridículo, não chega a tanto.

Embora contente (se é por isso que tanta gente resolveu andar neste apalhaçado aparato), não percebo porquê agora? Porquê aqui? Se calhar é em todos os sítios, eu é que, distraído com coisas tão banais/comezinhas como sobreviver nesta apocalíptica selva, ainda não tinha reparado...

Quem diria?! Nunca o Ánhuca pensou!...

 

Meados de Agosto/2007

Luís Jordão

 
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