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A ESCRITA DO SUDOESTE

 

Fernanda Frazão e Gabriela Morais

 

O Alentejo tem cromeleques, o Alentejo tem antas, o Alentejo tem menires, o Alentejo tem o vaso campaniforme. E tem uma das escritas alfabéticas mais antigas da Europa, patente em Almodôvar, no Museu da Escrita do Sudoeste.

Segundo um recente estudo de John T. Koch, Tartessian. Celtic in the South-West at the Dawn of History, a escrita do Sudoeste, escrita tartéssica ou sul-lusitana, será, segundo uns, um desenvolvimento da escrita grega, segundo outros, o desenvolvimento de uma versão fenícia de 825 a. C. A maioria dos achados relaciona-se com necrópoles datadas de entre 800-550 a. C., situando-se pouco mais de 75 exemplares no sul de Portugal e uns 15 no sudoeste de Espanha. Se no Algarve abrange toda a região, desde a fronteira até ao Atlântico, no Alentejo encontramo-los em Mértola, em Aljustrel, em Castro Verde, em Ourique, em Almodôvar e em Odemira.

J. Koch decifra este tipo de escrita a partir das semelhanças encontradas com o irlandês, o bretão, o galês e o britânico antigos, reconhecidos como línguas célticas e, ainda hoje, como últimos vestígios de uma língua que, no dizer de um outro historiador e arqueólogo britânico, Barry Cunliffe (Facing the Ocean, the Atlantic and his Peoples – 8000 B. C. – A. D. 1500, Oxford University Press, New York, 2001) teria sido a língua franca de toda a costa ocidental atlântica, durante, pelo menos, a Idade do Bronze, iniciada há cerca de cinco mil anos. E Koch, tal como Cunliffe, entra assim em contradição com a História tradicional, que defende que os povos celtas, provenientes do centro da Europa, teriam chegado à Península Ibérica apenas na Idade do Ferro, ou seja, cerca do séc. VII ou VI a. C. A verdade, no entanto, é que não são estes investigadores quem contradiz a História tradicional, mas sim os resultados obtidos nos últimos anos pela Arqueologia, pela Genética, pela Linguística, pela Paleoclimatologia, etc.

Baseando-se não só em achados arqueológicos, mas também em dados paleoclimáticos e geomorfológicos, Cunliffe, para além da afirmação da existência de uma língua franca, céltica e atlântica, datada da Idade do Bronze, recua ainda mais no tempo e estabelece uma longa história de relações entre todo o arco atlântico, do norte de África às Ilhas Britânicas. Na sua opinião, para isso teriam contribuído as capacidades de navegação oceânica das populações dos concheiros mesolíticos (datados de entre 10 000 e 6 000 a. C.) da costa portuguesa e galega, destacando, entre estes, os concheiros de Mira e do Sado do litoral alentejano. E a essas capacidades, aos seus conhecimentos das marés, das correntes e dos ventos oceânicos, ter-se-á adicionado o saber da astronomia, patenteado nos recintos megalíticos alentejanos, de que é caso exemplar o recinto dos Almendres.

Datado já do VI milénio a. C., este terá sido muito provavelmente construído, como adianta Manuel Calado, pelas populações mesolíticas que, com a subida das águas provocada pelos últimos degelos glaciares – a mesma que, na mesma altura, deu origem às Ilhas Britânicas –, terão caminhado para o interior alentejano, levando consigo crenças e saberes ancestrais.

Em conjugação com estas hipóteses, está ainda a Teoria da Continuidade Paleolítica (divulgada na colecção com o mesmo nome da Apenas Livros, Lisboa, 2008/2009, e ainda em A Genética e a TCP..., Apenas Livros, Lisboa, 2008) que, em consonância com os resultados obtidos, sobretudo pela genética, nos leva a poder dizer que os alentejanos são descendentes dos mais antigos celtas, a gente que povoou esta parte do mundo ininterruptamente desde o Paleolítico, isto é, desde há cerca de 40 mil anos.

Ora, retomando o que dissemos no início a propósito da existência da escrita do Sudoeste – até agora considerada a mais antiga da Europa, depois da grega e da fenícia –, é à luz de toda esta sequência histórica que o último estudo apresentado por John Koch faz mais sentido, trazendo uma outra preciosa achega para a compreensão da História e para o reconhecimento da grande riqueza cultural respeitante ao Alentejo. Este autor, ao inscrever a escrita do Sudoeste na tradição do céltico antigo, afirma que tal tradição terá atingido o seu apogeu na florescente época do Bronze Final (II milénio a. C.) – época em que as paragens alentejanas foram um importante cenário –, e nela radica as origens dessa escrita, vendo-a como fruto de uma forte e persistente tradição autóctone, oral e milenar. Na sua opinião, o conhecimento náutico fenício, habituado ao mar Mediterrâneo, no vasto mar Atlântico teria ficado claramente diminuído perante o saber milenar das populações autóctones, sendo estas as difusoras, não só da língua, como da nova escrita, em todo o arco atlântico. A escrita tartéssica, sul-lusitana ou escrita do Sudoeste terá, assim, nascido de uma espécie de síntese local entre a escrita semita, trazida pelos comerciantes fenícios, e a língua original céltica que, para isso, teve de acrescentar novos sinais alfabéticos, dado possuir sons inexistentes na escrita e na língua fenícia. E Koch acrescenta que essa sonorização seria a utilizada pelos poetas, os kerdos ou bardos celtas, os possíveis inventores de tal escrita, propondo até que o céltico possa ter atingido a Irlanda pelas suas mãos e não pela acção de uma classe aristocrática de guerreiros. Esses mesmos poetas – pertencentes ao povo culto referido pelo grego Estrabão e relacionado com a região que hoje constitui Portugal –, que há muito eram detentores de leis, história, literatura e medicina em verso. Os mesmos poetas, em suma, que terão dado origem aos poetas populares que, ainda hoje, se manifestam por todo o Alentejo.
 

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