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DOIS MIL E OITO, ANO I DE UMA NOVA ERA?

 

Guilherme Alves Coelho

Dois mil e oito ficará decerto para a história como um marco. O ano I da primeira grande crise sistémica global do modelo político-económico dominante no mundo. Marcará também certamente o início da tomada de consciência colectiva de que algo terá que mudar no estilo de vida de todos nós. Uma mudança dos hábitos de consumismo e desperdício, para uma nova era de racionalidade e poupança.

Tal mudança terá certamente reflexos em matéria de ambiente, da utilização dos recursos estratégicos naturais e do ordenamento do território. Mas tal não será fácil. Os poderes instituídos tudo farão para manter os modelos que tão bons resultados lhes trouxeram, mesmo que à custa de uma ainda maior degradação da vida sobre a Terra. As soluções que trazem para resolver os problemas que criaram acabam por ser mais do mesmo. Não fazem portanto parte da solução porque eles são parte do problema.

Compete a todos nós obrigar à verdadeira mudança. Sob pena de assistirmos ao liquidar definitivo do que resta deste já tão acanhado e semi-destruído planeta. 

Em questões de ambiente, o ano passado ficou marcado pelas polémicas declarações do Sr. Al Gore, reduzindo as causas do aquecimento global ao excesso de produção de CO2. Naturalmente que as soluções que propõe, apenas destinadas a combater este excesso, se resumem a soluções de carácter tecnológico.

Nem por uma só vez, se refere às causas profundas: o sistema politico e / 32 / económico dominante. Mais cedo do que muitos esperavam a realidade encarregou-se de corrigir o Sr. Al Gore. O sistema rebenta pelas costuras e revela-nos as manchas negras do enriquecimento fácil obtido à custa do roubo e esbanjamento dos recursos de todos por uma minoria.

Quando no artigo do ano passado chamámos a atenção para estes factos, já alguns especialistas pressentiam a crise que se aproximava. Já vinham alertando para que as suas causas eram estruturais e duradouras e não conjunturais e passageiras como nas crises anteriores. 

Os poderes públicos, implicados nessas causas até ao âmago pelas nas suas opções de décadas, tudo fizeram e continuam a fazer para as desvalorizar e contornar. Dois mil e oito começou com a grande maioria das pessoas pelo mundo fora totalmente desprevenida e longe de imaginar que estes assuntos também lhes diziam respeito.

Primeiro foram as notícias sobre o rebentamento de uma tal "bolha imobiliária" norte-americana, lançando milhares de famílias para o número dos sem abrigo. Depois, mais bolhas começaram a estoirar em várias partes do mundo, como Portugal, onde a produção de casas nunca poderia ser absorvida pelas famílias endividadas, como resultante natural da política dominante de baixos salários e deslocalização de empresas.

Logo em seguida com a cavalgada descontrolada e especulativa do preço do petróleo, surgiram os brutais aumentos dos preços dos combustíveis a meio do ano, mexendo directamente na bolsa do consumidor. A visão inédita dos bens de consumo básico a desaparecerem das prateleiras dos hipermercados, veio assustar ainda mais o cidadão comum e confirmar que algo de muito grave estava a acontecer.

Finalmente, com o reconhecimento do pico petrolífero, ou seja, de que a partir de agora as reservas de petróleo conhecidas estão em decrescimento, a procura de soluções energéticas alternativas tornou-se um assunto de debate alargado e obrigatório mesmo para aqueles a quem não interessava.

Mas naturalmente as divergências entre os poderes instituídos e os administrados tornaram-se mais notórias.

As soluções para a crise energética, na perspectiva dos senhores da indústria, apenas poderiam ser novos produtos tecnológicos, novamente gastadores de energia e de dinheiro. Enquanto que no lado oposto, muitos especialistas afirmavam que tal não constituía solução, antes levaria ao agravamento da situação.

As verdadeiras soluções passariam por poupar, reduzir os desperdícios e procurar alternativas baratas nas fontes inesgotáveis (à escala humana) de energia como o sol e os seus derivados: o vento, as ondas, as marés, etc. Como não poderia deixar de ser os / 33 / governantes de Portugal alinharam de imediato ao lado destes "inovadores" e o governo pôs em marcha algumas das suas orientações. Pesem embora as piedosas intenções e promessas ao pequeno consumidor, apenas as grandes empresas privadas foram até agora beneficiadas. Prosseguiu a estratégia de cedência à iniciativa privada dos recursos naturais do país, alienando ainda mais o poder político e económico.

A sanha privatizadora é tanta que se prevê que a própria gestão das áreas protegidas se passe a fazer por privados.

É o caso da captação e distribuição de água e do tratamento das águas residuais e do saneamento básico, com a anunciada privatização das Águas de Portugal e o novo Plano Estratégico de Abastecimento de Água e Saneamento.

A nível da política de novas energias, é o caso a instalação e produção dos novos parques eólicos, espalhados um pouco por todo o país, que apenas beneficia os grandes empresários, mantendo-se a micro-produção a níveis muito reduzidos. É o caso da central fotovoltaica de Serpa, considerada a maior da Europa, construída (e explorada?) por norte-americanos. É o caso da proposta da CIP (Confederação da Indústria Portuguesa) afirmando que há que substituir o petróleo, mas pelo nuclear. É o caso da encomenda de automóveis eléctricos a empresas japonesas, ainda que a nossa energia eléctrica seja maioritariamente importada.

Ou seja, um leque de soluções das mais complexas e exigentes de capitais e financiadores. As medidas relativas ao ordenamento do território não foram em geral de melhor sentido, continuando também aí a política de entrega das decisões aos grandes interesses privados. Cedendo aos grandes proprietários e empresários da especulação imobiliária, o governo elaborou uma lei que, na prática, permite construir dentro das áreas de reserva, desde que demonstrado o interesse público (?) do empreendimento. São os chamados PIN, Projectos de Interesse Nacional. Será certamente o que irá acontecer á Costa Alentejana até hoje relativamente preservada, que fica assim aberta à especulação imobiliária.

Também a fuga sistemática ao planeamento urbanístico e a opção por loteamentos privados, complementados pela privatização e alienação de solos e equipamentos públicos, continuam bem firmes no pensamento dos responsáveis políticos. A densificação desordenada parece ainda ser uma linha de rumo dos empreendedores, acarinhada pelos mesmos responsáveis, indiferentes aos fenómenos de superprodução do imobiliário.

Sem mostrar ter aprendido o que quer que seja com a crise actual prefere-se continuar a crescer, tendo em vista o negócio, em lugar de reabilitar e requalificar para satisfazer as necessidades / 34 / constitucionais de habitação.

Outro exemplo dessa subserviência está nas grandes obras públicas, bem ilustrado na alteração da localização do novo aeroporto de Lisboa, apenas concedida quando as associações patronais "falaram grosso". E isto apesar de, neste momento, em muitas partes do mundo, se começar a ponderar seriamente a conveniência de novos grandes aeroportos. É também o caso da duvidosa insistência em construir uma nova ponte no estuário do Tejo, seja lá onde for, mesmo que esse gesto implique pagar indemnizações aos exploradores das actuais pontes. É finalmente a teimosia na construção do elefante branco chamado TGV.

A crise que se abateu sobre o chamado mundo global parece não ser mais uma das habituais crises cíclicas do sistema capitalista. Para muitos ela já é a mãe de todas as crises. Ela representa o início notório da falência de um sistema que vem há muito arruinando e esgotando os recursos do planeta, numa mistura explosiva de ganância, arrogância e ignorância por parte de uma minoria. Tudo aponta para que os próximos anos sejam de viragem radical.

As soluções futuras passarão sem dúvida pela utilização de alternativas energéticas mais baratas e menos dependentes dos combustíveis fósseis, incluindo provavelmente a nuclear. Passarão também e muito, pela redução drástica dos consumos e do desperdício.

Mas terão de passar sobretudo pela alteração das mentalidades, e pela mudança radical do modelo político-económico dominante no mundo, substituindo o consumo desenfreado, predador e irracional, assente no lucro, pela racionalidade e por uma maior atenção ao homem e ao planeta.

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