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BOLORES

E.I.C.A. – 02

Com a transição para o Curso Geral de Comércio, dissemos adeus à casa da Rua Direita. Agora, a nossa Escola era mesmo ao lado da Igreja da Misericórdia, num conjunto edificado muito envelhecido. Mas foi lá que começaram a funcionar os cursos profissionalizantes. Ainda hoje me pergunto como foi possível convivermos todos, os do Comércio, da Formação Feminina e dos vários cursos da Indústria nesse mesmo espaço.

Mas lá nos arrumaram. E não foi por causa da vetustez das instalações que nós deixámos de ter excelentes professores a propiciar-nos aulas aliciantes que nos foram enriquecendo na nossa formação. Lembro o Dr. Rocha e Cunha que só falou alguma coisa em Português na primeira aula. Exactamente para nos dizer que, desde aquele dia, na aula de Inglês, só se falaria na língua inglesa. Sei que cheguei ao fim do primeiro ano lectivo com 1216 vocábulos. Isso permitia-me já desenvencilhar-me para resolver em Inglês a minha vida diária.

O mesmo aconteceu com o nosso professor de Francês, o “meia-leca”, alcunha que resultava da sua pequena estatura. Era o Dr. Marino, que se licenciara em Românicas como estudante “voluntário”, tendo sido carpinteiro de profissão. Quer um quer outro transmitiram a todos nós um gosto enorme pelas línguas que ensinavam, sendo inexcedíveis no cuidado posto no aperfeiçoamento das respectivas pronúncias. Ao fim de três anos de aprendizagem todos nós, seus alunos, éramos fluentes quer no Inglês, quer no Francês. E, deixai-me repetir, a minha querida professora Dra. Cecília Sacramento, que adorávamos, fazia de todos nós verdadeiros amantes da Língua Pátria. Era sob a orientação destes professores que fazíamos jornais de parede em cada uma das línguas por eles ensinadas. Os arranjos gráficos eram apelativos e os conteúdos versavam as várias matérias que nos eram ensinadas: Noções Gerais de Comércio, Técnica de Vendas, Noções de Direito Comercial, Geografia, etc., etc..

Lembro o Dr. Araújo, o professor de Contabilidade que fez de mim um profissional ágil no mundo da actividade própria dum escritório.

Jamais poderei esquecer o nosso professor de dactilografia, o senhor Armando Madail. As máquinas de escrever mais pareciam peças de museu, mas as teclas HCESAR permitiam-nos transformar o teclado em autêntico piano. Até havia quem escrevesse com os olhos vendados. Mas este professor também geria o serviço de assistência aos alunos mais carenciados. Eram sapatos de couro amarelo, eram calças, camisolas, camisas e meias de lã que ele ia distribuindo consoante as necessidades que ele parecia adivinhar. Eram os livros que não sei de onde vinham, de edições de anos anteriores, mas que ele facultava aos que nada tinham. Tudo isso era feito dentro de um espírito de camaradagem que só visto e sentido.

Houve outros professores, como a Dr.ª Nereida, professora de Francês, a Dr.ª Ondina Leite, que sendo de românicas nos dava Geografia, o Dr. David Cristo que nos ensinava Direito Comercial e outros cujos nomes imperdoavelmente esqueci.

Tínhamos também uma cadeira muito curiosa: Mercadorias. Era um misto da Química e da Física dada no 2º. Ciclo dos Liceus; só que o seu objectivo era facultar-nos a aprendizagem dos rudimentos essenciais da Química e da Física para compreendermos os processos de fabrico da pasta de papel, do cimento, da pasta cerâmica, do vidro e de outros produtos. Não tínhamos livro adoptado; era uma cadeira que visava um ensino eminentemente prático que nos facilitava a abordagem de produtos que poderíamos vir a encontrar na vida prática. Quem dava a cadeira era o célebre Dr. Damas, ágil na transmissão de saberes e no uso de castigos corporais. Fui seu sebenteiro. Tomava os apontamentos nas aulas e, no fim de semana, dactilografava a matéria que ia sendo dada, mercê da utilização da máquina de escrever que me era facultada pelo Senhor Vieira, dono duma drogaria que ficava na rua Direita.

Na exiguidade do edifício da Misericórdia, os espaços para a Modelação, onde pontificava o escultor Mário Truta e para a Pintura Cerâmica, onde mandava o professor Hernâni Moreira da Silva, eram “invadidos” pelos alunos do Comércio que também eram “tolerados” na assistência às aulas que não eram dos seus currículos, mas de que eles gostavam. Os serralheiros e os carpinteiros-marceneiros ocupavam espaços onde hoje ficam as casas mortuárias

A “pobreza” do espaço sem dúvida que favorecia uma convivência excepcional, transformando a comunidade escolar numa autêntica família.

A frequência do nosso 5º Ano já não foi na Misericórdia. Para gáudio nosso e dos nossos Professores, fomos ocupar as instalações do velho Liceu de José Estêvão, do lado de lá do largo da Câmara. É que, entretanto, o edifício novo do Liceu Nacional de Aveiro ficou apto a receber os seus alunos que para lá foram logo no início do ano escolar.

Para nós, os da Escola Técnica como os do Liceu nos chamavam, ter recreio coberto, ter cantina, ter casas de banho para as raparigas e para os rapazes, ter campo para volei e basquete, ter um amplo ginásio com palco e tudo, era um luxo. As salas de aula eram amplas. Tínhamos uma secretaria, uma biblioteca, os professores tinham a sua sala e o Director Cachim tinha  o seu gabinete.

Esta reforma do ensino técnico continha em si mesma uma visão diferente dos métodos pedagógicos até aí seguidos: todos os alunos eram sempre submetidos a provas orais. As provas escritas não dispensavam ninguém das provas orais.

A maior parte dos professores não nos tratava por tu. E, por regra, éramos chamados pelo nome de família. Era a preparação para uma vida de responsabilidade. Eram os próprios professores que nos aconselhavam a prosseguir nos estudos, indicando as formas mais expeditas para atingirmos o ensino superior nas áreas para que tínhamos revelado mais apetências.

Chegados ao fim do curso, tivemos uma festa de encerramento com pompa e circunstância.

A mim coube-me falar em nome de todos os colegas, lá do alto do palco do ginásio. Como estava nervoso! Como me pesava essa responsabilidade. A boca ficou-me seca, mas consegui dominar-me e chegar ao fim do texto que laboriosamente escrevera. No palco estava um senhor que eu não conhecia. Foi-me sussurrado que era o senhor João Ferreira de Macedo, Presidente do Grémio do Comércio de Aveiro, e que tinha um prémio pecuniário para o melhor aluno da Escola. Chamou-me no fim do Director ter proferido as suas palavras de circunstância. E, do alto do seu charuto, sem mais rodeios, entregando-me o sobrescrito que iria dar um jeitão à minha mãe, perguntou-me: “Queres vir trabalhar comigo?” Era uma sexta-feira, no fim da tarde. “Que sim senhor”, respondi eu em murmúrio. “Então toma lá estas chaves. São do escritório. É o número 53 do Largo do Rossio. A minha secretária é a última do lado esquerdo. Tens lá uma rima de correio para ordenar. Algumas respostas são só de agradecimento. Responde conforme julgares melhor. Segunda-feira verei o que foste capaz de fazer.”

Os meus professores vieram-me felicitar. Eu já estava empregado, já tinha trabalho.

Mal cheguei a casa, dei a notícia à minha mãe e entreguei-lhe o sobrescrito: lá dentro estava um nota novinha de 500$00.

Chorámos de alegria. No dia seguinte, ainda não eram 9 horas da manhã, lá estava eu a abrir a porta do meu escritório. Era uma vida nova que se me abria, mercê da minha querida EICA.

Eu até levava vestida uma camisa branca e uma gravata a preceito. O pulôver azul escuro jogava bem com as únicas calças que eu tinha: cinzentas.

Gaspar Albino
19 de Novembro de 2014

 

20-11-2014