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BOLORES

Esta terra que me viu nascer 2

Lembro com saudade o bulício que se sentia no canal de São Roque, nos meus tempos de menino. Ir, pela mão do meu avô Luís, até lá, até à praia como então se designava o canal, com as margens de areia escura onde se varavam as caçadeiras, as bateiras, os mercantéis; onde se punham de carena essas embarcações  para as beneficiar: dava gosto ver os calafates a encher as frinchas dos costados, o piche, a ferver nos bidons, pronto para cobrir os cascos para enfrentar novas safras, o estaleiro do Tobias onde se construíam e reparavam os vários tipos de embarcações da ria, a ponte de madeira dos Carcavelos, não esta de cimento que lá está hoje, que levava às pocilgas do lado norte do canal. Lembro o serrilhado dos montes de sal saído das marinhas que se perdiam no horizonte. Lembro os comboios ajoujados de mercadorias que vinham de nascente, do lado da Mina, até aos armazéns da CUF e da Mobil.

Lembro o canal das Pirâmides, cheio de traineiras que descarregavam no Rossio e lá faziam lota, no local onde existiu a capela de São João, destruída, assim se pretextou então, para “aformosear” o espaço, desculpa tola para justificar sanha persecutória da fé das gentes de Aveiro.

Lembro as portas no trinco e a total ausência de vigilância policial.

Esta era a Vila Nova, a Beira-mar, a freguesia da Vera Cruz, toda para Norte. A Vera Cruz de São Gonçalinho, de São Gonçalo, de São Bartolomeu, da Senhora das Febres, do Carmo, do Quartel de Cavalaria, de Sá, das Barrocas, dos Arcos com a sua feira dos moços, dos cafés antigos desde o Gato Preto até ao Avenida e ao Trianon, passando pelo Arcada, local de ponto obrigatório para magistrados e funcionários superiores. A Capitania escondia a entrada do canal do Cojo que ia até à fábrica Campos. Hoje é o canal da Fonte Nova e a Ponte de Pau desapareceu para dar lugar a um viaduto. No largo de Maia Magalhães, que foi adro da igreja da Vera-cruz, está o Quartel dos Bombeiros Novos, construído sob a minha presidência.

Passadas as pontes, para Sul, entrava-se na Vila Velha, na Glória, com assomos de nobreza, com os funcionários dos serviços públicos, da Câmara, do Tribunal, do Governo Civil, com a Polícia. As pontes deram lugar à ponte Praça e a “Selva” transformou-se no Fórum de Aveiro.

Quando se subia a Costeira logo se dava com a Câmara Municipal, com o largo da cadeia onde, em tempos, tivemos a igreja matriz de São Miguel que deu nome à primeira Freguesia de Aveiro, única até 1572, demolida para dar espaço à estátua do nosso tribuno maior, José Estêvão. De um lado, a Igreja da Misericórdia; do outro o Teatro Aveirense, entretanto renovado, e o Liceu, hoje Escola Secundária de Homem Cristo. Ao lado, ficava o Alboi que também foi mudando, mas continuando a ser um bairro da freguesia da Glória com características muito próprias. Por lá, tempos idos, quando do apogeu do porto de Aveiro, terá sido zona cosmopolita onde se cruzavam gentes de várias nacionalidades. Há nos arquivos do nosso Museu uma perspectiva da vila de Aveiro onde se assinala uma torre do Cônsul da Holanda que por lá quedava. O largo do Alboi ainda o conheci de terra batida onde os miúdos jogavam hóquei em campo com troços de hortos e bolas feitas de meias de vidro. E, pelo lado sul da rua de Magalhães Serrão, havia o muro alto da quinta do Catão, onde, no consulado  de Girão Pereira, se veio a desenvolver a agradável baixa de Santo António que se prolongava até ao Parque. A Capela dos Santos Mártires continua a ser lugar de devoção do nosso povo. A Moagem deu lugar à Fábrica da Ciência. As obras, provocadas pelo tão badalado parque da sustentabilidade, ainda não acabaram. Aguardemos o fim desse reboliço todo para ver como tudo ficará no seu conjunto, sem esquecer a ponte elevada, jardim suspenso ainda em construção na Avenida de Artur Ravara, Tenho bem presente que todas as obras de vulto realizadas na cidade, ao longo dos tempos, sempre deram origem a controvérsias que não mais acabavam. Eu vi nascer o Bairro da Gulbenkian e o Conservatório, a nova Cadeia, e o Hospital Distrital. Vi transformar os campos agrícolas de São Tiago no Seminário tão desejado por D. João Evangelista de Lima Vidal, primeiro bispo da nossa refundada Diocese, no Bairro Social do mesmo nome e no Campus Universitário de Aveiro, este autêntico e bem representativo catálogo da moderna arquitectura portuguesa.

Seguindo, quer pela rua Direita quer pela rua de Gustavo Ferreira Pinto Basto chegávamos ao largo do Governo Civil, muito diferente, então, do que é hoje. Lá tínhamos o quartel da Polícia de Segurança Pública a ocupar parte do convento das Carmelitas, a Igreja do mesmo nome que se viu decepada do seu coro alto por conta desse mesmo largo, a casa das Zitas, num extremo, o edifício do Governo Civil que já não é, no outro, o Colégio de Nossa Senhora de Fátima, que deu lugar ao Tribunal que eu vi, pequeno, ser construído por mão de obra prisional. A Praça Marquês de Pombal era um largo muito bonito, bem ajardinado, com uma rotunda que no meio tinha uma palmeira. Lá ficava o quiosque da senhora Raposinha que vendia aos garotos da escola primária, logo ali à frente, os rebuçados de colecção e, à socapa, cigarros avulso, mesmo nas barbas da polícia. Continuando para Sul, chegávamos às Cinco Bicas, em cujo chão existiu a Igreja do Espírito Santo, demolida por razões que a minha razão não quer entender. As pedras em que ela se transformou permitiram construir a torre sineira da que é hoje a nossa Sé Catedral, a Igreja de São Domingos, como lhe chamávamos quando eu andei lá na catequese. Onde hoje se encontra a maravilhosa estátua de Santa Joana, da autoria do grande artista aveirense Hélder Bandarra, havia um quarteirão de casas, onde ainda era descortinável parte das destruídas muralhas de Aveiro cujas pedras serviram para refazer a Barra do nosso porto de mar. Lembro o Quartel de Infantaria, bem próximo do nosso Jardim do Infante D. Pedro, cheio de vida que era garantida pela soldadesca jovem. A cerca do Museu de Aveiro desapareceu para dar lugar a um agradável jardim e a novos arruamentos airosos. O próprio Museu sofreu obras que quase fizeram esquecer que aquele lugar fora casa de recolhimento da Princesa Santa Joana, nesta sua Lisboa, a pequena. Os campos agrícolas que designávamos por “carreiros” deram lugar ao Bairro de Álvaro Sampaio, onde surgiu o Liceu Nacional de Aveiro, hoje Escola Secundária de José Estêvão. E também o edifício da Escola Industrial e Comercial de Aveiro, que eu ainda frequentei num curso nocturno de línguas, e que é agora a Escola Secundária de Mário Sacramento.

Vi desaparecer o logradouro da Fonte dos Amores, sítio das minhas brincadeiras de criança. Não destruíram a fonte, mas esconderam-na, envergonhada, num esconso do final da Avenida de Araújo e Silva. Vi construir o quartel dos Bombeiros Velhos, deixando incólume a casa do Dr. Pompeu Cardoso, entretanto convertida em sede da Junta de Freguesia da Glória. Respirei fundo quando soube que esta casa foi confiada aos Bombeiros Velhos de modo a garantir aconchego adequado. Permanece naquela casa, assim e ainda bem, a chama viva de outros tempos.

A chama viva de outros tempos que eu gostaria de ver mantida por conta do tão bem cantado “aveirismo” do sempre saudoso Eduardo Cerqueira.

Gaspar Albino
19 de Agosto de 2014

 

21-06-2014