“Santa
Joana – hac hora” foi o nome que me surgiu, às voltas de um café
cheio acompanhado de cheio copo de água, ali numa mesa de um pequeno
café da rua do Loureiro, bem pertinho da casa do Dr. Paulo Catarino,
escolhido ao milímetro por conta dos seus já trôpegos passos. Eu já
sabia quando o meu telemóvel tocava por volta das dez horas da manhã.
Era ele, o Dr. Paulo, que precisava de dois dedos de conversa, que
precisava que o fosse buscar a sua casa e o levasse até ao café,
parando, de quando em vez, por conta da respiração ofegante que o seu
cachimbo ainda mais agravava. Mas ele era assim, foi sempre assim
desde que o conheci, limpando e relimpando o seu velho cachimbo com
papel atrás de papel até que este começasse a perder o preto do
alcatrão que dele ia escarafunchando. O Dr. Paulo, sem cachimbo, não
era ele. E, verdadeiramente, só começava a pensar quando, depois de
bem prensado o tabaco que ele acendia a preceito, tirava do precioso
instrumento fumatório umas valentes bafuradas de fumo. Só nessa
altura, de mistura com a sua tossanca de fumador impenitente, é que
começava a discorrer sobre o que lhe ia na alma ou no peito…
Esta história da expressão “Santa Joana – hac hora” já vinha de outras
conversas, de outras memórias, de outros tormentos interiores. De
outros cafezinhos que eu ia deixando arrefecer por conta de
cavaqueiras sempre interessantes. Mas, ultimamente, o que o Dr. Paulo
queria era dar corpo a uma exposição de uma iconografia contemporânea
de Santa Joana Princesa. Ele sabia-me ligado a AVEIROARTE, ele sabia
que eu era amigo de uma série de pintores que poderiam dar vida ao seu
sonho de um ex-voto diferente, como diferente era ele em tantas coisas
da sua vida cultural. E começou a chamar-me “comissário” dessa sua
exposição que ele queria pôr de pé no Museu de Santa Joana, o mais
perto possível do túmulo da princesa. Começou por me dizer que queria
trabalhos realizados com a máxima liberdade criadora, sem peias de
conformismos tacanhos; só uma exigência: que o tema fosse sempre Santa
Joana Princesa vista com olhos de hoje, em tela ou papel que não
excedesse muito os 40x50 centímetros. E que melhor seria que eu
começasse já a aliciar os meus amigos para que os trabalhos estivessem
em sua casa em data que permitisse avançar com as diligências
necessárias junto da Directora do Museu para obter autorização, para
se escolher o local, para se organizar um pequeno catálogo com
dignidade. E tudo isto de forma a que a mostra estivesse patente ao
público por um período de cerca de um mês, sendo o seu encerramento
coincidente com o dia 12 de Maio, feriado da cidade, dia da Santa
Padroeira de Aveiro, no ano de 2011. Por incrível que pareça, tudo o
que o Dr. Paulo desejara veio a converter-se em realidade.
Um
dia ele ditou-me um pequeno texto. Depois de burilado, ficou assim:
“Muitas vezes acompanhei meu sogro, Alberto Souto, ao Museu de Aveiro,
de que era director. No caminho para o seu gabinete, parava sempre em
frente ao túmulo de Santa Joana, guardando, de pé, reverentemente, uns
minutos de profundo recolhimento. Esta sua atitude marcou-me de forma
indelével. Um dia, adquiri uma serigrafia do artista Jorge Trindade
com uma interpretação plástica de Santa Joana, que me inspirou a ideia
de pedir a um conjunto diversificado de artistas plásticos que lessem
hac hora a nossa querida Santa Joana. É esta a razão desta mostra; é
esta a razão deste ex-voto.” [acesso
ao
►
texto original]
Foi
com este texto já elaborado que pedimos audiência à Dra. Ana Margarida
Ferreira, na altura directora do nosso museu. Ela recebeu-nos de
pronto e foi com uma enorme ternura e profundo respeito que se referiu
sempre ao seu saudoso antecessor, Dr. Alberto Souto. Abraçou o
projecto do Dr. Paulo e prometeu toda a colaboração possível. Ela
também produziu um texto que veio a integrar o catálogo. Assim: “O
Museu de Aveiro goza da singular particularidade de ser,
simultaneamente, uma unidade museológica e um local de culto. Enquanto
unidade museológica, a sua missão é estudar, conservar e divulgar as
colecções e o monumento que se encontram à sua guarda. Enquanto local
de culto, acolhe múltiplas formas de devoção à Princesa Santa Joana.
No entretecer destas duas condições surgem situações de grande
ambiguidade e riqueza antropológica.
Esta exposição (a que estava em projecto…) partilha ambas as condições
e demonstra – através do ex-voto do Dr. Paulo Catarino – a
profundidade dos laços afectivos dos aveirenses à sua padroeira e ao
seu museu.”
O
grande historiador José Mattoso também produziu delicado texto para o
catálogo ao qual iremos, no final deste nosso arrazoado, roubar naco
apetitoso.
O
certo é que a inauguração da mostra se traduziu numa festa
inesquecível. Estiveram presentes Monsenhor João Gaspar, que nos fez
relembrar a história da nossa Santa; o senhor Bispo da Diocese de
Aveiro, D. António Francisco, o senhor D. Duarte, o coro ANÇÃble,
constituído por familiares do Dr. Paulo Catarino, que nos deliciou com
a sua música gregoriana. E muitos aveirenses que, assim, garantiram um
enquadramento humano raro de se ver. Com as suas obras participaram os
artistas: Alzira Martinho, Artur Fino, Bela Boinas, Fernanda Santos,
Gaspar Albino, Gica da Silva, Hélder Bandarra, Jeremias Bandarra,
Jorge Barroca, Jorge Trindade, Lúcia Seabra, Mário Morais, Quintas e
Valença Cabral.
● ●
●
Neste ano de 2013, a nossa Diocese está a comemorar os 75 anos da sua
restauração. E nos passados dias onze e doze, organizaram-se
peregrinações ao túmulo da nossa Santa Padroeira, com enorme afluência
de público.
A
Procissão do dia 12 foi mais uma vez uma magnífica manifestação da
devoção do nosso povo, do povo da nossa Diocese, à Princesa Santa
Joana.
Tudo isto demonstra que Aveiro está com a sua Padroeira.
Estou plenamente convencido de que os artistas de AVEIROARTE, no
futuro, poderão vir a enriquecer a iconografia joanina, com as suas
criações artísticas, à semelhança do que já aconteceu em 2011.
E é
aqui que eu vou repescar parte do texto de José Mattoso:
«Santa Joana é uma das figuras mais marcantes do imaginário religioso
português. Para isso contribui, antes de mais, o conhecido retrato de
autor anónimo, com o seu rosto adolescente, um pouco triste, a
expressão estática e ausente. Uma coifa carregada de jóias envolve o
cabelo caído. Um longo colar de ouro rodeia-lhe o pescoço. O vestido
mostra uma finíssima gola de renda amplamente aberta sobre o peito
liso. Apesar dos caracteres pessoais marcados na boca e nas faces
redondas, infantis, parece o símbolo quase etéreo de uma certa
perfeição feminina, mais do que retrato de uma mulher concreta, de
carne e osso.
Faz-nos imaginar uma princesa sonhadora, delicada e frágil, encerrada
num mosteiro invisível, como jóia escondida num tesouro oculto. /…/.»
Eu
faço parte de AVEIROARTE. Fui um dos seus fundadores. E sinceramente
confesso que gostaria de ver os meus confrades a imaginar, para
exposições futuras, “uma princesa sonhadora, delicada e frágil… como
jóia a descobrir num tesouro oculto”.
Se
isto se convertesse em tradição de MAIO, por certo que Santa Joana
ficaria feliz.
Gaspar Albino
Aveiro, 14 de Maio de 2013 |