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Ana Maria Lopes

A filóloga que se apaixonou pelo mar, pela ria e pela pesca

A expressão não é minha; é do povo que, na sua sabedoria infinita, tem sempre razão. E mais razão ainda quando consegue sintetizar uma realidade complexa em meia dúzia de palavras. “Está-lhe no sangue”… “está-lhe na massa do sangue”!

Imagino-a, ainda dez reis de gente, pela mão do avô, a ir à Meia-Laranja da nossa praia da Barra, acenar o adeus ao seu “Novos Mares” que partia de longada para a pesca do bacalhau, no meio do choro lancinante das nazarenas, das miroas, das ílhavas, das gafanhoas, das murtoseiras, das poveiras, das vianenses… viúvas a prazo de seis e mais meses com o rancho dos filharotes à roda das saias. Imagino-a a ir ao escritório da empresa, sempre pela mão do avô, à segunda-feira, logo de manhã, a saber novas da pesca pelo telegrama da Rádio Marconi. Imagino-a a aprender, pela voz de quem as viveu, o significado das brisas e das brisalhadas que, lá nos Bancos da Terra Nova, iam impedindo que a captura do “fiel amigo” corresse mais de feição. Imagino-a a saltitar à frente do avô, para ser a primeira a vislumbrar o lugre que se aproximava dos molhes da Barra, no regresso da faina, com a maré a lavar-lhe o convés, tão ajoujado vinha o porão de peixe. Imagino-a, ainda, a não perder pitada do linguajar apimentado das fafeiras, na descarga do peixe para o trapiche, a caminho da seca; a acompanhar os cânticos saídos das mulheres, de bruços, agarradas à escova, escafonando o bacalhau nas tinas de lavagem. Imagino-a, também, a pôr-se em píncaros de pés para colocar um peixe ao sol, nas mesas de arame do secadouro. E a apartar o mais pequeno, teso de seco. E a enfardá-lo...

Tudo o que acima imaginei está contido nas palavras não escritas dos livros que Ana Maria Lopes tem vindo a publicar, todos eles a cheirar a maresia, todos eles a saber a sal.

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Há dias, fui revisitar o Museu Marítimo de Ílhavo, coisa que faço amiúde. Mas, desta feita, a causa próxima foi a de ir prestar o meu tributo aos homens que foram ao bacalhau e que lá se encontram numa caixa com memória que o Professor Álvaro Garrido, actual director do Museu, assim apresenta: « /…/ é um memorial em forma de cubo, instalação e fotografia, composto por centenas de rostos de protagonistas da “faina maior” e respectivos nomes. O projecto resultou do restauro e digitalização do espólio de cerca de vinte mil fotografias e fichas de tripulantes de navios bacalhoeiros /…/.»

Porque evoca, exalta e interage, a “Caixa da Memória” constitui um projecto expositivo semelhante a outras abordagens estéticas de memórias do trabalho que têm sido elaboradas em museus estrangeiros e centros de arte. Em sucessivos módulos, serão exibidas mil e duzentas fotos de pescadores e oficiais da pesca do bacalhau que fizerem da grande pesca o seu modo de vida (ou de nesse modo de vida vê-la acabada, acrescentamos nós…). Familiares e amigos dos tripulantes poderão interagir com a instalação, buscando os rostos e nomes dos homens que foram ao bacalhau. Tratando-se de um tributo a todos os pescadores bacalhoeiros, a “Caixa da Memória” irá, posteriormente, itinerar em várias localidades do litoral português”.

Numa das próximas “caixas” lá hei-de encontrar o rosto de meu pai, pois que tenho prova de que ele faz parte do espólio da extinta Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau, que foi confiado ao Museu Marítimo de Ílhavo, quando este era dirigido por Ana Maria Lopes.

São “Caixas da Memória” que vão garantir, no futuro, peregrinações ao passado de muitos de nós.

Esta minha primeira peregrinação não estaria completa sem aquilo que faço sempre e de que nunca me canso: uma volta geral às salas do museu, com as quais vou aprendendo por conta das coisas novas que, em cada visita, vou descobrindo. E nunca saio sem parar na sua loja, o que é uma tentação. Desta vez eu sabia estar lá, finalmente, um livro, O VOCABULÁRIO MARÍTIMO PORTUGUÊS E O PROBLEMA DOS MEDITERRANEÍSMOS, de autoria da Dra. Ana Maria da Silva Lopes, cuja reedição fac-similada se verificou no último mês de Maio, depois de estar esgotadíssima durante muitos anos.

Trata-se da sua dissertação de licenciatura em Filologia Românica, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em Janeiro de l970, precioso trabalho de pesquisa pela autora realizada e que, em 1975, foi publicado pelo Instituto de Estudos Românicos e editado em separata da Revista Portuguesa de Filologia.

Das palavras introdutórias desta obra citamos: «Portugal possui um quilómetro de costa por cada 100 quilómetros quadrados e só uma parte limitada a nordeste se encontra a mais de 200 quilómetros do mar. Como é que um país com esta situação geográfica se havia de furtar às fainas de pesca, de navegação e comércio marítimo? O nosso vocabulário marítimo é duma riqueza e variedade extraordinárias e, quem o desconhece, pode estar certo de que ignora grande parte do património da língua portuguesa.»

 Eu já conhecia a obra através de um exemplar que a própria autora me tinha emprestado. Mas sempre fui perguntando pela sua reedição, pois que se trata de um livro que consegue somar ao trabalho científico da pesquisa linguística o calor de alguém que sentiu e sente as coisas do mar e das suas gentes com verdadeira paixão.

É um Portugal salgado que nele se descobre em cada virar de página. Obrigatória, portanto, a sua leitura.

Gaspar Albino — 2006-10-02

 

 

04-05-2018