A Recuperação da fragata "D. Fernando II e Glória", in: "Revista da Armada", n.º 305 e 306, Jan. e Fev. 1998.


8. ENTREVISTA AO CHEFE DA EQUIPA DO APARELHO DO NAVIO, MESTRE JOSÉ MANUEL BERNARDO (JM)
REVISTA DA ARMADA”, n.º 306, Fevereiro 1998, pág. 21.

RA: o mestre José Manuel Bernardo é o chefe da equipa do aparelho do navio. Como é que surgiram os primeiros contactos para integrar esta equipa que tratou do aparelho da Fragata?

JM: Os primeiros contactos surgiram oficialmente da Direcção do AA, através do Comandante Eira que é o oficial de marinha que coordena e dirige todos os trabalhos de apetrechamento do aparelho do navio. Teve influência o Director e Coordenador do projecto, que teve em mim e na equipa por nós constituída a garantia dum trabalho de elevado nível profissional.

RA: Como é que o mestre José Manuel adquiriu toda esta experiência profissional?

JM: A minha experiência profissional devo-a muito àquilo que eu chamo "a minha mãe" ou seja a fragata D. Fernando, pois eu fui um ex-aluno e aí muito aprendi em 8 anos. Entrei aos 7 anos de idade, lá aprendi a ler e a tirar a chamada instrução primária (4.ª classe).

Tudo quanto sei aprendi na fragata D. Fernando, e aprendi com grandes mestres que a nossa marinha teve. Mais concretamente o tempo que passei embarcado a bordo da "Sagres" e posteriormente no "Creoula". A minha experiência, o meu saber e o meu gosto pelas coisas do mar e da arte de marinheiro, como homem do mar, foi sem dúvida o tempo que passei na fragata D. Fernando. E com certeza seria para mim uma grande tristeza eu não colaborar nesta grande obra, que é pôr de pé de novo a "nossa" Fragata. Estou neste grande projecto a troco de nada, como se costuma dizer "por amor à camisola".

RA: Mas a passagem pela "Sagres" e pelo "Creoula" foram, com certeza, muito importantes na sua valorização profissional?

JM: Essas passagens por bordo desses dois navios foram riquíssimas, pois, mais concretamente o meu tempo em conjunto nos dois navios são cerca de vinte e dois anos. Aprendi muito com a experiência de mestres e marinheiros mais antigos do que eu e encontrei nestas guarnições grandes marinheiros, verdadeiros "Iobos-do-mar", alguns até já não fazem parte do mundo dos vivos, mas eu guardo-lhes o maior respeito, grandes mestres, que eu não esqueço mais, e que com eles adquiri muito da minha experiência. No "Creoula" praticamente recebi o navio como lugre da pesca do bacalhau e fizemos do "Creoula", juntamente com uma grande equipa, aquilo que ele hoje é, um navio de treino de jovens no mar dedicado às actividades de todas as marinhas, mercante, pesca e recreio e à juventude. Assim o navio desempenha todas essas funções dedicadas ao treino de jovens no mar. Não esquecerei, pois, a minha passagem pelo "Creoula", onde adquiri uma grande experiência. Todo o navio teve de ser devidamente aparelhado, pois ele vinha aparelhado à maneira de lugre da pesca do bacalhau e nada tinha a ver com a nossa marinha. Nós fizemos daquele veleiro aquilo que ele é hoje. Por outro lado falar da "Sagres" é sempre altamente gratificante, navio-escola, onde passam as sucessivas gerações de oficiais da nossa Marinha de Guerra, é uma paixão muito grande, muitos comandantes e imediatos, até tenentes e guardas-marinhas, muitos deles já hoje almirantes e comandantes e pronto, muito havia a contar, mas isso são outras histórias.

RA: Mestre, diga-nos também como encara esta nova fase da sua vida profissional? Como se deu nesta integração de trabalho de equipa aqui no AA?

JM: Eu vim encontrar nesta equipa, isto é, existem duas equipas, a primeira que é de pessoal de manobra, na reserva e na efectividade de serviço, que é uma equipa que trabalha directamente comigo e foi seleccionada pelo Comandante Eira, contactados por mim e posteriormente escolhidos, um conjunto de profissionais de alto nível. Desde os jovens que pertenceram às guarnições da "Sagres", cabos M com o curso de formação de sargentos (CFS), e outros que estavam na reserva (sargentos chefes e ajudantes) com uma larga experiência profissional que serviram a Armada várias dezenas de anos e que ao serem contactados aderiram com toda a sua disponibilidade e amor à Armada. Esta é pois a primeira equipa, a outra é formada por pessoal do AA, operários e trabalhadores qualificados que têm sido magníficos, nos contactos que tenho, muitas vezes diariamente, nas oficinas, na área fabril, etc., em que todos demonstram uma grande disponibilidade em servir a "causa da fragata". Vêem que é o projecto da fragata que está em jogo, e comigo e com a minha equipa há sempre um entrelaçar de esforços, posso dizer que na área fabril e oficinal do AA não há porta que se feche. É, pois, uma equipa maravilhosa que se entrega totalmente, sempre numa azáfama e têm um lema comum: "Se é para a fragata, vamos trabalhar para a fragata".



Oficina do aparelho do navio.

RA: Dê-nos agora uma ideia geral em que consiste o trabalho de reproduzir todo o aparelho da fragata e as várias fases da sua execução.

JM: Este navio está a ser aparelhado, não como algumas pessoas possam pensar ser, como ele era aquando do incêndio, com as alterações introduzidas em 1938, mas sim tal qual a sua traça original na carreira da índia. O navio nos anos trinta deixou de ter a mastreação, velame, aparelho original, etc.

Sofreu diversas alterações dadas as missões que lhe foram depois atribuídas, e deixou de ser o veleiro que era na origem em 1843, ou seja, o navio fica aparelhado a 100% como no original, com as diferenças inerentes às matérias-primas actuais e não às da época, como por exemplo, os cabos em poliester. No entanto, os estudos e os levantamentos feitos garantem a cópia fiel do massame, velame e poleame originais. O aparelho fixo é todo em cabo de cor preta e o aparelho de laborar é todo em cabo de cor castanha, pois na época era assim nos grandes veleiros.

RA: Para a execução deste trabalho, o mestre baseia-se num conjunto de desenhos, esboços, planos e do aparelho que a Comissão da Fragata mandou executar através do Gabinete de Estudos do AA e os projectistas lhe fornecem, ou teve ainda outras fontes a consultar?

JM: É verdade que é necessário e indispensável dispor de todos esses elementos, e os desenhadores projectistas designadamente o Sr. Godinho e o Sr. Agostinho do AA, são os principais obreiros deste projecto. Com os conhecimentos profissionais e a experiência de bordo que eu possuo, estou em condições de analisar e interpretar todos esses desenhos, como já fiz com a nau "Colombo" do António Vilar, que aparelhei e naveguei no "Tejo" com ela, demonstrando a quem duvidava que ela podia mesmo navegar com a sua mastreação e aparelho como fora projectada e concebida, e demos aqui no "Tejo" velocidade de 7 nós. Também aqui tenho a vantagem de ter sido ex-aluno da fragata e conhecer muito bem o aparelho do navio, pois mesmo jovem aluno todos os dias tínhamos aulas com mestres muito qualificados e dedicados à Armada.

O levantamento que foi executado mercê dum trabalho de pesquisa é muito importante e por isso eu próprio, quase diariamente, tenho contactos com os projectistas e vou à sala de desenho, etc. É um trabalho de grande colaboração, bem como consulta de livros, modelos existentes no Museu de Marinha, etc., tudo isto envolvendo muitas pessoas e trocando impressões com outros profissionais de marinha, enfim, tudo ajuda.

 

 

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