Ficções e Recordações - 2015

A Feira de Março onde eu passeei

Até 1979, a secular Feira de Março realizou-se no Rossio. Anualmente, era construído, na entrada do largo, ao lado do encontro das ruas João Mendonça e Barbosa de Magalhães, um grande pórtico em madeira, no qual, e desde que tenho memória, estavam instalados os Serviços Sonoros, à direita de quem entrava, e um Posto de Turismo, do lado contrário.

Ao longo do Canal Central e da rua Barbosa de Magalhães, montavam-se as barracas camarárias – todos os restantes abarracamentos eram propriedade dos feirantes –, onde se vendia uma grande variedade de produtos: bijutarias, cutelarias, cerâmica decorativa e utilitária, marroquinarias, retrosarias, atoalhados, fazendas, brinquedos, revistas e livros antigos, etc., etc., etc.

A zona compreendida entre estas barracas era conhecida pelo “Picadeiro” e, nela, as pessoas, em especial aos domingos, passeavam, interminavelmente, para trás e para a frente.

Foi neste local que surgiu, na década de 1950, o primeiro espaço dedicado, essencialmente, à exposição publicitária de produtos: um polígono rectangular, cor de vinho, com outros dois mais pequenos, sobrepostos em escada, onde estavam colocadas garrafas vazias de uma das Caves da Bairrada, conjunto este circundado por uma vedação de corda, apoiada em estacas.

Ao fundo do “Picadeiro”, existiu, também na década de 1940, uma “Casa de Chá” – grande construção em madeira, pintada de azul claro, cujo acesso era feito por uma ampla escada e integrava uma galeria com esplanada –, pertencente à Câmara e que era anualmente concessionada.

Entre esta edificação e as preditas barracas, situadas ao longo do Canal Central, montava-se um palanque para exibição de grupos folclóricos, bandas e conjuntos musicais.

Paralelo ao Canal das Pirâmides, organizava-se um arruamento destinado à venda de maquinaria diversa, alfaias agrícolas e, ainda, de guarda-chuvas, chapéus e roupas, principalmente de homem. Alguns destes últimos feirantes, por exemplo, o “Lopes de Penafiel”, acabaram por se instalar na cidade, pelo que se pode dizer que foi deste sector que nasceu o “Pronto a Vestir” em Aveiro.

O Circo – os mais frequentes eram o “Luftman” e o “Mariano” – montava a tenda na esquina das palmeiras, no extremo da rua João Afonso de Aveiro. Seguiam-se, até à curva deste arruamento, algumas instalações de que cito as mais usuais: encostado ao Circo, um Estabelecimento de Bebidas e Petiscos; a seguir, Barracas de Tiro – pelo menos duas, cujas sexi-empregadas convidavam, com vozes super-insinuantes, os potenciais clientes para um tirinho ao alvo –, o “Comboio Fantasma”, a “Mosca Sábia”, a “Fornalha Infernal”, etc.

Depois da curva e até à rua Barbosa de Magalhães, onde havia uma segunda entrada com portão, ficavam as várias tendas de “Louças Artesanais” e a “Barraca da Viúva” que era também conhecida pela “Barraca do Zequinha”, porque tinha, na fachada, um pequeno boneco articulado com este nome, o qual distribuía, a troco de 5 tostões (¼ de cêntimo de euro), papeizinhos com a sina das pessoas; este abarracamento possuía Marrecos (era assim que chamávamos aos Matraquilhos) e duas Gruas Eléctricas, onde se podia ganhar, com alguma habilidade, bonecos de peluche ou pequenas garrafas de amostras de licores, de que ainda guardo alguns exemplares.

Todo este abarracamento servia, também, para vedar o recinto, dado que, aos domingos à tarde e à noite, se realizavam espectáculos, cuja receita, 1 escudo (½ cêntimo de euro) por pessoa, revertia para a entidade organizadora: a “Tertúlia Beiramarense”.

O miolo da Feira tinha a seguinte constituição que, de ano para ano, apresentava poucas novidades.

A Poente do supracitado “Picadeiro”, ou seja da actual Estátua de João Afonso de Aveiro, montavam-se as Pistas dos Automóveis Eléctricos – duas, sendo, usualmente, uma de andar à roda de um passeio central e outra de circulação livre, propiciando choques mais frequentes e violentos, custando cada corrida 25 tostões (1,25 cêntimos de euro) – e os Carrosséis, 1 escudo cada viagem (½ cêntimo de euro), sendo os mais renomados o “Oito” e o “Viagem à Lua” que devia o nome às suas altíssimas e vertiginosas lombas de 1,5 m de altura.

Na área sobrante, alojavam-se os restantes Divertimentos e Atracções.

As “Farturas”, com pelo menos dois pavilhões, constituíam um dos principais chamarizes do certame: não havia ninguém, em Aveiro e arredores, que, pelo menos uma vez por ano, não fosse à Feira comer umas farturinhas polvilhadas com canela e açúcar, acompanhadas com vinho branco ou refrigerante, ou levar uma meia dúzia para oferecer a um amigo, ou a alguém que não tivesse podido deslocar-se. Chegaram a ter a concorrência espanhola dos Churros de Don Pepe, mas foi sol de pouca dura.

Os “Marrecos”, grande atracção para os rapazes, estavam sempre representados por vários feirantes e com diferentes tipos de mesas, havendo delas, até, com fundo metálico, o que era raro e dificultava a execução dos chamados truques efectuados com os três atacantes, tornando o jogo muito mais rápido e diferente do praticado nos tradicionais e usuais bilhares com tampo de madeira, fundo este que permitia uma maior aderência, logo um melhor domínio da bola, dando vantagem aos mais tecnicistas.

O “Poço da Morte”, onde dois portugueses, Freddy e Betty, na dupla cruz da morte, arriscavam a vida, numa parede vertical, completamente lisa, com 7 metros de altura.

Chegou, também, a vir a “Esfera da Morte” – grande bola construída com tiras metálicas, suficientemente espaçadas para permitir ver, no seu interior, um ciclista pedalar com tal velocidade que conseguia fazer uma volta completa, na vertical, ficando de cabeça para baixo; o nome que era publicitado era Fernando Moreira, para aproveitar a fama de um vencedor contemporâneo da Volta a Portugal.

Por vezes, apareciam fenómenos humanos, lembro-me da “Mulher Polvo” – uma menina albina – e de “Gabriel, o Gigante de Manjacaze”, com quem mantive uma convivência que, por se ter revestido de aspectos curiosos, narrarei mais adiante.

Havia umas estruturas metálicas de dois tipos (em rampa acentuada ou circulares), chamadas “Comboios” que se destinavam a medir as forças dos jogadores: consistiam em dois rails paralelos, ao longo dos quais se lançava um objecto em forma de torpedo, com um explosivo na ponta; quando atirado com força suficiente e tinha que ser muita era atingido um alvo, colocado no fim da linha, detonando-se a carga e provocando-se o consequente barulho e, ainda, a admiração do público, especialmente o do sexo fraco, já que este jogo, dadas as suas características, quase que só era praticado por homens.

As “Cadeiras Voadoras”, os “Carrosséis e as Pistas de Automóveis Infantis” eram outros divertimentos mecânicos que habitualmente vinham à Feira. Nos últimos anos, apareceram uma “Roda Gigante” e uma “Roda de Póneis”.

Podia jogar-se uma grande variedade de Jogos, mesmo ilegais (neste caso às escondidas da Polícia), por exemplo, a “Vermelhinha”. Entre os autorizados e com instalações próprias, havia as Roletas, Tômbolas e similares. Os mais célebres foram um, em que os prémios eram tachos e panelas de alumínio, as “Corridas de Cavalos” e o do “Ratinho”, cujo altifalante, em dias ou noites de nortada rija, fazia chegar, até à Estação da CP, a mensagem 'ai o filho da mãe do ratinho que não quer entrar!', que a seguir se decifra. Este jogo era constituído por uma grande mesa redonda, na periferia da qual estavam montadas dezenas de casotas numeradas; no centro, havia uma gaiola sem fundo, com um rato lá dentro. Os jogadores apostavam nos números dos compartimentos e, quando as rifas estavam vendidas em número considerado satisfatório, a proprietária levantava a gaiola, puxando um fio, e o rato acabava por fugir para dentro de uma das divisões, cujo número era o premiado. Acontecia, contudo, que o animal, por vezes, assustado pelo barulho feito pelos participantes que rodeavam a tômbola, tentando atraí-lo para os seus números ou afastá-lo das entradas dos outros concorrentes, demorava a decidir-se por uma das portas e, daí, a exclamação veemente que se ouvia, com uma certa frequência, um pouco por toda a cidade, dependendo da direcção do vento.

Para completar esta descrição, cuja fidelidade só depende da minha memória (que já foi incomensuravelmente melhor), pois não consultei nenhuns documentos, creio que só me falta referir os Vendedores de Pipocas, de Algodão Doce e de Tremoços e Pevides, os chamados Ceguinhos – que cantavam e vendiam em folhetos coloridos o que agora se publica nas revistas cor de rosa, por exemplo, a história da fuga da cigana “Carmencita, linda graça, / Abandonou sua raça, / Foi atrás de um sonho lindo...” – e, ainda, os inevitáveis pedintes e carteiristas que, vim a saber mais tarde, vinham todos do mesmo sítio e alugavam uma camioneta para se deslocarem, aos domingos, para este rendoso local de trabalho.

o O o

 

Apresentada a Feira, falarei da minha visão e também experiência na qualidade de utente.

Em criança, fazia duas visitas anuais, uma com a minha mãe e outra com os meus padrinhos, pelo que ganhava dois brinquedos. O primeiro de que me lembro foi de um “Ciclista”, boneco artesanal em madeira muito característico da Feira e que consistia num monociclista policromo, de chapéu de coco, com pernas e braços articulados, montado numa grande roda, munida de um cabo; quando se empurrava, o girar da roda fazia não só o ciclista pedalar, mas também movimentar os braços e, ainda, tocar uma campainha. Gostava tanto deste brinquedo que o guardei durante muito tempo e, quando tive responsabilidades na organização da Feira, encomendei um cartaz do certame, em que o “Ciclista” era o motivo central, peça publicitária essa de que o autor me ofereceu a Arte Final, que está emoldurada e pendurada numa das paredes da sala, onde estou a escrever este texto.

Os brinquedos dos anos seguintes foram carrinhos e camionetas de madeira, telecomandados através de um cordel, com uma ponta amarrada aos pára-choques e a outra puxada por mim. Passada a fase dos transportes, entrei na da cinegética, passando a escolher espingardas de lata para as minhas caçadas caseiras, dado que não tinha idade para ir brincar para a rua. A última destas armas possuía uma particularidade: tinha um projéctil de cortiça que, como o da “Guerra do Raul Solnado”, estava amarrado por um fio, para permitir a sua recuperação.

 Entretanto, os anos passavam, fui para a Escola Primária e tive autorização para vir brincar para a rua com os outros garotos, sendo, à noite, a hora de voltar para casa marcada, durante muitos anos, pelo Toque de Recolher, tocado pela Fanfarra ou só pelo Corneteiro do Regimento de Infantaria 10. Então, entrei no período bélico, pedindo revolveres de lata ou colts, nos primeiros tempos, de barro preto e, mais tarde, metálicos e com fitas de fulminantes, para jogar, respectivamente, aos polícias e ladrões ou aos cowboys, conforme o filme que passasse na matinée do domingo anterior, no Cine Avenida, utilizando a rapaziada a técnica de entrada à borla, também usada no futebol, e que consistia em pedir a um homem, que entrasse sem ser acompanhado de nenhuma criança, “meu senhor, leve-me consigo”. Ao contrário do futebol, no que respeita ao cinema não tive que recorrer muitas vezes a este expediente, porquanto o meu padrinho conhecia um dos bilheteiros que, mais tarde, veio a ser meu tio, porquanto me casei com uma das suas sobrinhas, o qual me facilitava a entrada para as primeiras filas da plateia, onde me juntava à rapaziada borlista que se assumia como uma claque fervorosa e, por vezes, ruidosa, do actor principal, avisando-o, quando os bandidos ou os índios – para nós eram da mesma laia – tentavam atacar, à traição, o nosso herói.

Um outro tipo de presentes, que ganhei na Feira, foi de índole musical. Primeiro, um grande tambor vermelho, que não pedi, mas que se arrependeram, mil vezes, de me ter oferecido, pois passava o dia a tocá-lo, azucrinando a cabeça de toda a gente lá de casa. Depois, vieram os instrumentos de sopro: ocarinas de vários tamanhos e harmónicas de boca, que toquei, até aos 17, 18 anos, começando com a “Rosa arredonda a saia” e acabando com peças muito mais complicadas que já requeriam auxílio de pistão; mas o primeiro de todos foi um pífaro de barro, com três furos, que me proporcionou, umas quatro dezenas de anos depois, uma experiência de alto teor emocional, que passo a descrever.

Nos anos 80-90, passei, muitas vezes, a última semana de Janeiro, em Madrid, para participar na “FITUR” (“Feria Internacional del Turismo de Madrid”). Nos períodos do dia em que o certame estava encerrado ao público, costumava passear pela cidade e, uma manhã, na esquina da calle Mayor com a Plaza de Oriente, olhei para a montra de um bom estabelecimento de música e, para meu espanto, vi, no meio de vários instrumentos musicais clássicos, e em lugar de destaque, um pífaro igualzinho ao que me tinha sido comprado, muitos anos antes, na Feira de Aveiro, ao qual não faltavam as duas listas, uma vermelha e outra verde, indicadoras da sua origem portuguesa. E, de repente, tal como aconteceu com a personagem proustiana, quando trincou a madeleine, deixei não só de ser um homem, em Madrid, para voltar a ser a criança a olhar para o pífaro da tenda da louceira da Feira de Março. Mas, mais complicado ainda e só explicável recorrendo-se a complicados sistemas sinestésicos, senti, de imediato, nos lábios, o sabor do barro cozido, não envernizado, que a minha memória tinha guardado em segredo, numa recôndita circunvolução cerebral e, aparentemente, sem nenhuma utilidade, durante tantos anos. E, depois desta experiência, será difícil vir a sentir-me inferiorizado perante os mais sofisticados aparelhómetros da chamada inteligência artificial, pois duvido que haja, ou venha a haver, uma máquina capaz produzir este resultado fantástico, que um vulgaríssimo cérebro humano pode realizar, sem que para tal, tanto quanto sei, tenha sido especificamente programado.

Para terminar as minhas visitas infantis à Feira, falarei de uma ida ao Circo, com os meus pais, durante a qual aconteceu um episódio que ficou, apesar de ser ainda muito novo, tão profundamente gravado na minha mente, que não preciso de fechar os olhos para ver a sua repetição exacta e a cores. Estávamos sentados na primeira fila das cadeiras de pista e decorria um número de trapezismo; a artista, cujo nome artístico era Mimi Codonis e envergava um  maillot azul, tomou balanço, saiu do seu trapézio e, não tendo sido agarrada pelo base – trapezista, pendurado pela dobra das pernas, que faz a recepção dos voadores –, passou por cima do topo inclinado da rede de segurança  e terminou o voo, em cima do público, a poucos metros de nós. Segundo ouvi dizer inúmeras vezes à minha mãe –  que a partir daí nunca mais gostou de ver trapezismo, nem mesmo na televisão e sabendo, de antemão, que não iria acontecer nenhum desastre –, aleijaram-se mais os assistentes que serviram de colchão do que a artista que, de qualquer maneira, não deve ter ganho para o susto.

Passada a idade dos presentes, poucas são as recordações que guardo da Feira, porquanto não era grande frequentador, dado que as poucas Diversões – marrecos e automóveis eléctricos –,  que me poderiam atrair, custavam dinheiro e isso era coisa que raramente existia nos meus bolsos. No que respeita aos automóveis, por vezes, dava umas voltas, porque o meu padrinho, que era capitão do exército, tinha uma ligação qualquer, creio que mais oficiosa que prática, ao Socorro Social, pelo que lhe davam umas senhas que vinham parar à minha mão.  

Em 1957, fui admitido, após concurso público, como funcionário dos Serviços de Turismo da Câmara Municipal de Aveiro, cujo Posto de Informações se situava no Rossio, aproximadamente, onde está erigida a supracitada Estátua de João Afonso, ou seja, em plena Feira de Março, pelo que acabei de ser, durante um mês por ano, uma espécie de feirante.

Essas instalações eram frequentadas por participantes na Feira, para lerem os jornais que recebíamos diariamente (“Primeiro de Janeiro”, “Jornal de Notícias” e “Comércio do Porto”), pelo que me relacionei com vários, o que me permitia ter livre acesso à maior parte das Diversões, facilidade essa que  rarissimamente utilizei, a não ser para ver, muitas vezes, nas horas vagas, – note-se que tinha um horário especial, pois, entre outras funções, fiscalizava, à hora das refeições, a restauração e a hotelaria – os treinos dos artistas de circo, tendo tido a sorte e o privilégio de assistir a algo de muito interessante que a seguir vou contar.

Um dos cabeças de cartaz do “Circo Mariano” era “Moisés”, um equilibrista que dava o salto mortal, sem barra de equilíbrio, na corda bamba. Aconteceu, porém, que o artista tinha tido um acidente e contraído uma lesão que, durante uns tempos, o impossibilitou de realizar o seu número de eleição, pelo que, após ter recuperado fisicamente, entrava só num número secundário de Forças Combinadas, com as “Irmãs Ofélia”, e treinava, afincadamente, para voltar a ser uma das vedetas do espectáculo. Assim, tive a oportunidade de o ver dar inúmeras vezes o salto mortal, num cabo de aço esticado, mas que dançava para todos os lados. Lá para o fim da Feira, o número saía, praticamente, sempre à primeira e, quando lhe perguntaram porque é que, nos espectáculos, falhava sempre uma vez, ouvi-o responder: “Se eu o fizer à primeira tentativa, o público até fica a pensar que é fácil; eh pá, mas se eu cair à segunda, é porque foi mesmo um falhanço.” Depois do Moisés, já vi vários artistas fazer este número, mas com barra de equilíbrio, especialmente na TV. Todavia, se nunca tivesse assistido e se  alguém me viesse dizer que tinha visto, não acreditaria facilmente que tal fosse possível.

Para terminar esta Viagem ao Passado na minha Máquina do Tempo chamada Memória, falta-me cumprir a promessa de falar dos contactos que tive com “Gabriel, o Gigante de Manchacaze”. Num dia de Abril dos anos 70, fui procurado nos Serviços de Turismo, à época instalados no edifício Fernando Távora, por uma pessoa que trazia um cartão de um filho do empresário do Circo que se encontrava na Feira, onde me era pedido para ajudar o portador num assunto muito importante.

Quem pretendia falar comigo chamava-se Manuel Chora, era alentejano e empresário do moçambicano Gabriel Estêvão Monjane ou Mondlane que com os seus 2,50 metros de altura (na publicidade 2,62 m) era considerado o maior homem do mundo, gozando de fama internacional. Uns tempos antes, tinha estabelecido um pré-acordo com um colega sueco, cedendo os seus direitos, durante um determinado tempo, para que o gigante fosse exibido na Escandinávia. Mas, depois, pensando melhor, resolveu roer a corda, porque lhe veio à ideia que o Gabriel, começando a receber em ricas coroas suecas, em vez de em míseras coroas portuguesas e vendo-se rodeado de maganas louraças – diga-se, de passagem, que ele não só era louco por mulheres, mas tinha, também, uma especial predilecção por louras –, podia resolver ficar lá pelo Norte da Europa, perdendo o compadre Manel a sua única e rentável fonte de subsistência.

Acontecia, porém, que o empresário nórdico já tinha assumido encargos, pois tinha alugado locais para a exibição do fenómeno, na Suécia, na Noruega e na Dinamarca. Nesta conformidade, informou o Manuel Chora que iria mandar um representante a Portugal, para restabelecer as negociações, o qual chegaria alguns dias depois. E, aí, entraria eu como intérprete, não em sueco, mas noutra língua, que foi o francês. As duas reuniões, que duraram longas horas, realizaram-se, em fins de tarde, no Hotel Arcada; o emissário apresentou uma série de substanciais melhorias das condições contratuais, fez ameaças que se sabiam infundadas, pois tinha sido previamente consultado um advogado, mas nada demoveu o compadre Manel, ficando o sueco furioso e despedindo-se, mandando o português para o diabo, insulto que, vim a saber mais tarde, por um amigo que tem a dupla nacionalidade, é a coisa mais violenta que se pode proferir na sua língua natal, mas que, no francês em que foi dita e no português para que eu a traduzi, não preocupa nem choca ninguém, por mais católico que seja.

Posto este longo intróito, vou passar à parte mais interessante dos meus contactos com o bom gigante e seus parceiros liliputianos. A partir destas reuniões e não tendo querido aceitar nenhuma remuneração pelo meu trabalho, passei a frequentar, com uma certa assiduidade, a tenda onde se exibia Gabriel, com dois anões: um deles, negro, disseram-me que era também do Distrito de Manchacaze, e o outro, branco, era o mais pequeno, só tinha 75 centímetros de altura e, salvo erro, chamavam-lhe o Joãozinho de Tortozendo. Este último, apesar de ocupar um dos lugares mais baixos na escala métrica mundial, se houvesse uma classificação alcoólica, disputaria o topo; só um exemplo: uma tarde, quando eu estava a conversar com o Chora, encostou-se com as duas mãos ao joelho do meu interlocutor e, passado pouco tempo, já estava a ressonar.

O espectáculo em si não tinha nada de especial: corria a cortina e Gabriel aparecia sentado num enorme cadeirão de madeira, ladeado pelos anões que, em seguida, se sentavam nos seus joelhos; para terminar, o gigante levantava-se com os seus parceiros nos braços e pousava-os no chão; tudo se resumia a exibir a enorme diferença de estaturas e de volumes – Gabriel não era gordo, longe disso, mas pesava mais de 180 quilos. Curiosamente, num primeiro contacto, poder-se-ia esperar que ele tivesse uma voz áspera, desagradável; pelo contrário, falava de uma maneira suave e muito bem modulada, o que condizia com a sua personalidade tímida, receosa e reservada.

Os aspectos mais curiosos que mencionarei referem-se primeiro, a duas das técnicas publicitárias utilizadas, na cidade: numa delas, o gigante passeava, com um chapéu de cowboy, sentado no banco de trás de um grande “Chevrolet Impala”, preto, descapotável, com os polegares metidos nas cavas do colete e os cotovelos tocando nos dois lados do carro; na outra, era utilizado um dos seus enormíssimos sapatos, branco e castanho, exposto na montra de uma lavandaria, dentro do qual, às vezes, se via o anão branco sentado, como se fosse um atleta numa canoa.

Seguidamente, abordarei alguns acontecimentos que observei e em que até participei, passados nos bastidores da tenda. Gabriel tinha pouco equilíbrio, por causa não só da sua altura, mas também e principalmente  devido a problemas  na cabeça de um dos fémures, anomalia a que, mais tarde, creio que foi operado, na África do Sul, pelo que tinha um terrível medo de cair; aliás esse receio veio a confirmar-se ser justificado, porquanto morreu, aos 46 anos, na sua aldeia natal, na sequência de uma queda, em que bateu com a cabeça no chão. Assim, quando o conheci, apoiava-se, sempre, fora das exibições, numa grande canadiana de ferro, pintada de azul, e, quando chovia e o terreno da Feira, que era de terra batida, estava escorregadio, tinha medo e não ia dormir a uma casa de hóspedes, situada na Póvoa do Paço, utilizando uma cama de ferro, tipo hospitalar, também de cor azul, com 3 metros de comprimento, que existia nas traseiras da tenda.

Um dia, Gabriel estava sentado nessa cama, perto da cabeceira,  a ler uma revista aos quadradinhos e eu encontrava-me, no lado oposto, a falar com o Chora. A certa altura, vi que ele tinha acabado de ler a revista e que se preparava para pegar noutra que estava perto de mim e longe dele; raciocinando como uma pessoa de estatura normal, preparei-me para lha chegar, mas, antes que o fizesse, o sujeitão esticou o braço e pegou calmamente no livrito.

Para terminar o relato das minhas Aventuras de Gulliver na Tenda do Gigante e dos Anões, direi que passei alguns fins de tarde, em que não havia público para os espectáculos, a jogar umas Suecadas, tendo por parceiro o Gabriel e por adversários os anões. As cartas, nas minhas mãos, tinham um tamanho normal, nas dos anões, pareciam ser calendários de parede e o hiper-calmeirão alinhava as 10 cartas, ao lado umas das outras, na palma da mão esquerda, onde pareciam selos do correio.

Agora, que estou a escrever isto, lembrei-me de averiguar se posso vir a inscrever o meu nome no “Guinness”, como a pessoa que já jogou à Sueca, com os parceiros mais bizarros. É que, além destes, quando tinha os meus 18, 19 anos, ocupei algumas tardadas das férias, que passava na aldeia dos meus avós paternos, a jogar à Sueca contra o dono da venda (era este o nome que se dava às tascas, lá na terra) e um dos seus filhos, que era surdo-mudo, tendo como parceiro um pobre que andava, de alforge às costas, a pedir pelas aldeias, e a quem chamavam o Astória, porque teria sido empregado de mesa do hotel com esse nome, existente em Coimbra. E, nesse caso, não se jogava propriamente a feijões.

02.08.2015

FEIRA DE MARÇO