Ficções e Recordações - 2015

Futebol de rua

Ao fim de tarde de um 30 de Setembro de mil novecentos e quarenta e picos, acabado de chegar de 30 dias de férias na aldeia, onde não se sabiam notícias e o futebol era totalmente desconhecido, mortinho por dar uns chutos, peguei na trapeira, vim para a rua e desafiei o primeiro amigo que encontrei para uma jogatana de um contra um.

– Podemos jogar pá, mas temos de fugir se vier o polícia.

– Porquê, pá? Não vamos fazer nada de mal!

– Mas os polícias não deixam, ficam com a bola e dizem que somos multados.

– Porquê?

– Porque é proibido jogar à bola na rua.

– Essa agora! Então onde é que a gente pode jogar?

Para se compreender o meu espanto, torna-se necessário historiar o que tinha sido o futebol de rua, até meados dos anos 40.

Começo pela bola, chamada trapeira e confeccionada com uma meia velha, cuja ponta do pé se enchia de trapos – os de lã eram os melhores, pois a bola ficava a saltar mais –, batendo-se, no chão, para ficarem bem apertados; em seguida, torcia-se a meia e virava-se para cima,  repetindo-se esta operação, uma ou duas  vezes, dependendo do tamanho da meia, e  fazendo-se,  por fim, uma gola virada para dentro, com um furo por onde se passava um cordel do qual se puxavam as pontas de maneira a que a bola ficasse bem fechada, dando-se um nó final bem apertado e cortando-se o fio sobrante.

Os campos, em Aveiro, eram todos de terra batida, porque, exceptuando a zona envolvente da Praça do Peixe, que era revestida com a chamada calçada à portuguesa, as ruas eram todas em macadame.

As balizas podiam ser portas de garagem ou o espaço entre duas árvores, mas, na esmagadora maioria dos casos, eram demarcadas por duas pedras.

As regras eram as do futebol, mas adaptadas, pelo que havia normas específicas e muitos dos nomes eram ditos em inglês; por exemplo:

- não havia “offsides”;  

- quando eram só três jogadores, sendo um guarda-redes, quem estivesse a defender e sofresse três golos ia para as redes e o “keeper” passava para avançado;

- três “corners” seguidos originavam um “penalty”;

- como não havia relógio, mudava-se aos 5 e acabava-se aos 10.   

Nas 5 Bicas, dispúnhamos de três campos, utilizados em função do número de jogadores e da importância do encontro.

Se fosse um contra um, jogava-se no Largo, sendo a baliza o portão da garagem do senhor Lopes, situada defronte do nº 64 da rua Eça de Queirós. Neste lugar, podia também haver quatro jogadores e duas balizas – o portão e uma feita de calhaus –, mas era preciso cuidado para não partir os vidros das janelas.

Quando eram mais futebolistas, ia-se para a Castro Matoso, fazendo-se as balizas com pedras, no meio da rua, e dependendo o comprimento do campo do número de participantes, que podiam ir aumentando, durante o jogo, mas situando-se a partir  do canteiro ajardinado da porta do Depósito de Material de Guerra do Regimento de Infantaria 10 e em direcção ao cruzamento com a rua do Loureiro, numa zona onde, do lado contrário ao Quartel, existia um renque de grandes e frondosas árvores.

Nestes dois recintos, quando passava um automóvel ou uma camioneta, o que era raríssimo, parava-se o jogo, mas se fosse uma bicicleta ou um carro de tracção animal, continuava-se, podendo, até, utilizar-se o veículo para ajudar a ultrapassar os defesas.

Para jogos internacionais contra as Pombinhas ou contra São Domingos, jogava-se na travessa das Olarias, actual travessa de São Martinho, onde não havia praticamente trânsito a não ser uma ou outra bicicleta.

Como atrás se disse, nos primeiros tempos, a rapaziada continuou a jogar fugindo aos polícias, cuja intensidade do  zelo posto no cumprimento da lei anti-futebol dependia muito do local onde a infracção se praticasse. Se fosse no Largo, eram implacáveis; na rua Castro Matoso, fechavam os olhos, a maior parte das vezes; na travessa das Olarias, até lá morava o senhor João Polícia, sapateiro da corporação, não ligavam nenhuma. Mas o trânsito foi aumentando e nós fomos crescendo, pelo que acabámos por ter de ir de jogar à bola, para trás da velha bancada de madeira do Estádio Mário Duarte.

Diga-se que esta medida repressiva não impediu o aparecimento de nenhuma vedeta do futebol nacional, porquanto nenhum de nós veio a praticar oficialmente esse desporto, se bem que alguns tivessem jeito, o que não era o meu caso, pois tinha pés de chumbo, mas era perigoso, porque era dos poucos rapazes que andavam  calçados, pelo que uma calcadela das minhas aleijava e uma canelada, mesmo sem maldade, deixava marcas. Alguns dos cincobiquenses da altura jogaram basquetebol e eu, para além do basquete, também andei no andebol do Clube dos Galitos, modalidades que utilizavam o ex-rink do Parque. 

Mas o futebol de rua não acabou, definitivamente, nas 5 Bicas, nos anos quarenta. Quando foi urbanizada a chamada Quinta do Farela, que, incluindo as casas, ocupava todo o quarteirão norte da rua Castro Matoso, desde a rua do Loureiro até à avenida Araújo e Silva, foi criada a actual praceta Ferreira de Castro, que serviu de recreio e campo asfaltado, onde os meus filhos, trinta anos depois, jogaram futebol não com trapeiras, mas com bolas a que chamavam de borracha, mas eram feitas de material sintético.

Vou terminar, contando uma pequena história da minha meninice, relacionada com o futebol de rua. Um de nós, não sei quem, teve a ideia de  formarmos um clube. Primeiro, discutimos o nome: os benfiquistas propunham “Sport Lisboa e 5 Bicas” e os sportinguistas “Sporting Clube das 5 Bicas”; o Porto, nessa época, não tinha expressão, em Aveiro. Não tendo sido possível chegar a um acordo, optou-se por “5 Bicas Futebol Clube”. Um familiar desenhou o emblema, que se destinava a ser passado a papel químico para as nossas camisolas interiores. Mas subsistia um problema importantíssimo: uma equipa de um clube não podia jogar com uma trapeira, era uma vergonha, tinha que ter uma bola, pelo menos, de borracha, mas nós não possuíamos dinheiro para a comprar.

Até que surgiu a solução: um rapaz um pouco mais velho do que nós, mas  nosso amigo, disse que nos arranjava uma. Ele era marçano de uma mercearia da rua de São Sebastião que pertencia a um seu parente, tio ou padrinho,  onde se vendiam rebuçados que davam prémios directos – espelhos, pentes, lápis, chocolates, bolas de borracha pequenas e grandes e uma bola de futebol a sério –, sem ser preciso preencher totalmente uma caderneta, como acontecia, por exemplo, com os rebuçados «Victória», cujos carimbados (só havia um de cada numa lata) eram o Bacalhau e a Preguiça. Prometeu-nos que, se comprássemos dez rebuçados, que custariam dois escudos (€ 0,01), nos arranjaria um rebuçado com o prémio de uma bola pequena, mas tínhamos de jurar que não diríamos nada a ninguém.

Jurámos, trejurámos, juntámos o dinheiro, o que não foi fácil, porque ninguém tinha semanada. Foi-nos dado o rebuçado mágico e eu fui escolhido para ir à loja, porque, sendo o meu pai militar e a minha mãe professora primária, era credível que  tivesse um mealheiro com aquela fabulosa importância. Entrei com o rebuçado premiado no bolso dos calções, por baixo do lenço para não me enganar, comprei os dez rebuçados e comecei a abri-los. No primeiro, saiu um pente e o merceeiro disse “Estás com sorte”; o terceiro deu um chocolate de café, com uma embalagem preta e ele resmungou “Estás com muita sorte”; no último, tirei a bola e ouvi “Estás mesmo com muita, muita sorte”. Saí, fomos inaugurar a bola, mas nunca a trouxe para casa, para não ter que dar explicações sobre a sua proveniência.

Não tive conhecimento pormenorizado do que se passou entre o merceeiro e o empregado, mas, mais tarde, vim a saber que os rebuçados correspondentes aos prémios grandes, nesse e noutros jogos similares, nunca estavam na caixa geral. O dono da loja guardava-os, na gaveta, e só os dava aos amigos ou, então, aos bons clientes que comprassem os últimos rebuçados, gastando largas dezenas de escudos.

No que respeita ao “5 Bicas Futebol Clube”, fez vários treinos, nunca participou em nenhum jogo oficial, mas foi, como agora se diz, o meu primeiro clube do coração.

23.06.2015