Ficções e Recordações - 2015

José Estêvão

Mecinha, fui colocado em Aveiro. Quanto a ti, nada.

Angelino Grazina, professor de História, tinha acabado de ver, na Net, que tinha de se apresentar, na próxima segunda-feira, na Escola Secundária José Estêvão, na cidade de que só tinha ouvido falar da Ria, dos barcos moliceiros e dos ovos moles. A sua mulher, licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante Português-Francês, teria de continuar à espera.

À noite, telefonou para o tio Almeida, moleiro-chefe de uma moagem daquela cidade, há alguns anos, pedindo ajuda para arranjar alojamento, tendo ouvido como resposta:

– O teu primo vai estar, para a semana, em Lisboa, numa acção de formação, pelo que podes ficar cá em casa. Depois, arranjar quarto vai ser muito fácil, porque, nesta terra, há muitos para alugar por causa da Universidade. Olha, traz a Mécia contigo, porque eu, no dia 15, tenho de ir aí abaixo e levo-a de volta.

No dia seguinte à noitinha, o tio foi buscá-los à estação. No domingo de manhã, andaram pela cidade e, à tarde, foram até à Barra e à Costa Nova. Depois de jantar, a família ligou para a habitual telenovela e Angelino resolveu ir para o quarto e procurar, no “Google”, informações sobre Aveiro, pesquisa que se prolongou até que, de madrugada, a mulher, que há muito se tinha vindo deitar, lhe disse:

– Tem paciência, mas já são mais do que horas de fechar a luz. Estás para aí, há uma data de tempo, a fazer de conta que lês e eu quero dormir.

Concordou, até porque estava a ficar confuso com tanta e tão variada informação, tentada adquirir em muito pouco tempo e resolveu dormir a sério e na posição habitual.

Na primeira aula, Angelino procurou colher conhecimentos sobre os seus alunos, a dois níveis: social e cultural. Poucos minutos antes de acabar, perguntou: 

– Alguém sabe quem foi José Estêvão? (Silêncio sepulcral.) Então sendo a grande maioria de vocês de Aveiro, ninguém conhece José Estêvão!

Luís, chefe de turma, levantou o dedo.

– Eu não conheço, mas o meu avô fala muito do senhor Zé Estêvão que foi um senhor que andou ao bacalhau...

– Não é desse senhor que se trata. Bem, quinta-feira, toda a gente vai trazer meia página sobre o José Estêvão, Patrono desta Escola.

Ao sair, encontrou o auxiliar de acção educativa do andar que lhe perguntou:

– Bom dia, senhor professor, correu bem a primeira aula?

– Começou bem, mas acabou mal.

– Porquê? Faltaram-lhe ao respeito?

– Não. Perguntei quem era José Estêvão. Só respondeu o chefe de turma que, não sei se a mangar comigo, disse que era um amigo do avô dele.

– Ó senhor doutor, o rapaz não estava a brincar. Eu sou vizinho dos pais dele e conheci também o senhor Estêvão, a quem chamavam... 

– Desculpe interromper, mas estou com pressa. Até logo.

À hora de almoço, contou à mulher e à tia, o tio tinha ido comer com uns amigos, o que se tinha passado.

– Isto é uma terra de ignorantes. Não querem lá saber que um aluno e um contínuo me disseram que José Estêvão tinha sido pescador de bacalhau!

– Ó homem, eles, que são de cá, talvez tenham razão.

Angelino travou uma resposta torta dirigida à mulher e, para mudar de conversa, perguntou:

– Tia, onde é que eu posso comprar o jornal?

– Lembras-te daquele sítio, onde vimos uma data de barcos? Fica no caminho para a Escola. Pergunta lá, que te dizem onde é.

Acabado o almoço, encontrou facilmente o local de venda de jornais, fácil de identificar pelos expositores externos, e perguntou se tinham o “Diário” ou o “Correio” do Alentejo.

– Não.

– Pode mandar vir?

– Depende; durante quanto tempo?

– Até ao fim do ano lectivo.

– Sendo assim, dentro de dois ou três dias pode procurar.

– Então o doutor também é professor? (Perguntou um indivíduo engravatado que folheava uma revista.)

– Na José Estêvão. E o senhor?

– Foi a minha última Escola, mas já estou reformado.

– E que pensa da nossa Escola? (Inquiriu Angelino, tentando obter informações que lhe pudessem vir a ser úteis, sem saber que estava a falar com o Albino Vígário, licenciado em paleio e doutorado no cravanço.)

– Tem pressa?

– Não, só tenho uma aula às quatro.

– Então, convido-o para tomar um cafezinho.

– Quem convida sou eu.

– Já que insiste, aceito. Vou só pagar esta revista. Ó diabo! Ou deixei o porta-moedas em casa, ou perdi-o, ou então fui roubado. A minha mulher vai ficar danada comigo por não poder ler, logo à noite, a história da “Casa dos Segredos”.

– Não há problema. Eu pago a revista.

– Nem pense nisso. Aceito que a compre, mas amanhã é dia de eu ir à José Estêvão encontrar-me com ex-colegas. Retribuirei o café e devolver-lhe-ei o dinheiro que agora me empresta.

Sentaram-se na esplanada fronteira, mandaram vir os cafés e uma aguardente para o Albino que estava com problemas de digestão.

– Então como lhe têm corrido as aulas?

– Hoje, foi o meu primeiro dia e confesso ter ficado desagradavelmente surpreendido com o nível cultural de alunos do 8º Ano. Calcule que ninguém sabia quem foi José Estêvão que eu, aliás, não sendo de Aveiro, não conheço muito bem.

– Então, cavalheiro, talvez desconheça que o nosso Tribuno, a quem Aveiro muito deve, pertencia a uma das famílias mais ricas da cidade. Por exemplo, um seu primo, Alfredo Esteves, era dono de um Banco e, quando foi necessário construir um novo Liceu, a família ofereceu o terreno. Tinha o nome de Liceu Nacional de Aveiro, mas as pessoas, não só por gratidão, mas também considerando o local, começaram a chamar-lhe Liceu do José Estêvão, tendo o Ministério da Educação acabado por adoptar a actual designação, para evitar confusões. Desculpe, eu bem procuro ver-me livre deste maldito vício do tabaco, até deixei ficar o maço em casa para evitar fumar, mas estou a ficar hipo-nicotínico e logo sem dinheiro.

– Não sou fumador, mas posso auxiliá-lo. (Disse Angelino, dando-lhe uma nota de cinco euros.)

– Muito obrigado e prazer em conhecê-lo, amanhã dou-lhe o dinheiro. (Respondeu Albino, piscando o olho ao sorriso cúmplice do empregado de mesa.)

No regresso à Escola, tomou um caminho diferente do da manhã e deparou com a estátua que reconheceu como sendo a de José Estêvão. Olhando-a, tristemente, pensou: “És muito mal conhecido na tua terra. Ainda não encontrei ninguém que soubesse que foi, durante o teu último mandato como Presidente da Câmara, que foi construído um Liceu com pedras da muralha mandada levantar por D. Afonso V, a fim de defender a cidade, onde a filha tinha ingressado no convento de que era abadessa a grande proprietária de salinas situadas em Coimbra, Mumadona Dias, a quem o Africano deu ordens expressas para que nunca fosse permitida a entrada ao Duque de Aveiro que nutria uma grande paixão pela Infanta Joana.”

O retinir de uma campainha, num dos grandes prédios vizinhos, interrompeu a sua cogitação, apercebendo-se de que se tratava de uma Escola Secundária, porque muitos rapazes e raparigas abandonavam o edifício.

Chegado à José Estêvão, encontrou, na Sala de Professores, um jovem colega. Apresentaram-se e Angelino perguntou qual era o nome do estabelecimento de ensino situado junto à Estátua de José Estêvão, tendo ouvido a seguinte elucidação:

– Tem o nome de um jornalista aveirense, Homem Cristo, Director de um jornal que, para iludir a Censura, mudou várias vezes de nome, tendo sido o primeiro “Campeão das Províncias” e o último “Litoral”. 

26.01.2015

 

Nota – Já agora, até porque  o jovem professor do conto também não deveria ser muito versado em pesquisas na Internet e muito pouco ou mesmo nada em pesquisa bibliográfica e histórica, aqui vai o link para uma das páginas em que se fala de JOSÉ ESTÊVÃO. Cliquem no nome em questão.