Acesso à hierarquia superior.

N.º 20

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1975 

Os supremos bens da vida

UM INÉDITO DE

MÁRIO SACRAMENTO

 

...Estimei saber que tens sido acompanhada e amparada pelos nossos Amigos das horas difíceis. A amizade é a única coisa que vale a pena capitalizar e que, quando é autêntica, nunca falta com os seus dividendos no momento próprio. Julgo, assim, que somos ricos da única coisa que deveras conta e que eu não trocaria por coisa alguma. Há, porém, um perigo na amizade que é preciso saber evitar: o de podermos em certos momentos desmoralizar, dado que, habituados a sentirmos à nossa volta um ambiente fraterno, a vida assume perspectivas ignoradas se subitamente somos furtados a ele. Sei já por experiência repetida e bem profunda o que isso é, e como defendermo-nos disso, mas quero lembrar-te a ti ou ensinar-te à minha maneira (que à tua bem o sabes tu), pois se bem o cheguei a entender, a suprema sabedoria na vida está em fazer da amizade e da convivência os supremos bens da vida, sem que, porém, nos deixemos enredar neles ao ponto de não termos a coragem, se o momento o exige, de ficarmos sozinhos. «O homem forte é o homem só» – disse asnática e sobranceiramente o Ibsen.

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      MÁRIO SACRAMENTO

      Desenho de Lima de Freitas

Não é nem nunca foi assim. O homem forte é o homem que não ama ver-se só mas que sabe e pode sê-lo se o seu superior sentido do vero humano colide com as circunstâncias e lho impõe. E então ele não estará só senão na aparência (ou sensibilidade imediata), pois é tão impossível querer retirar o mundo a um homem como querer ele próprio retirar-se desse mundo – quando tal homem o traz dentre de si. Daí a impressão de tantos homens que têm passado pelas cadeias de todas as épocas da História de que no fundo tudo se passa como se fossem eles os carcereiros dos seus guardas, ou seja, de que tudo se passa como se as condições de liberdade estivessem invertidas em relação à aparência e fossem afinal eles os presos, a estarem livres e os outros a estarem submetidos pelo jugo da sua situação na vida. Retirada a amplificação metafísica (que nele é aliás tão própria e que define um estádio da história da convivência humana), é deste género, e nesse sentido eminentemente actual, a meditação do Pedro da «Guerra e Paz» quando queda prisioneiro dos franceses...

(De uma carta a Cecília Sacramento, escrita no Forte de Caxias em 29/4/1953)

 

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