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N.º 15

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1973 

Aveiro no século XV

Pela Dr.ª Albertina Valentim Oliveiros

(Conferência proferida, em 4-3-1959, no Centro de Estudos Político-Sociais de Aveiro)

 

São passados mil anos sobre o mais velho documento que se refere a Aveiro: é o testamento da Condessa Mumadona, que lega os seus bens ao mosteiro de S. Salvador de Guimarães.

Este documento é datado de 26 de Janeiro de 959, de era cristã.

Se Aveiro já existia em mais recuados tempos, deve ter sido saqueada e destruída pelas hordas bárbaras que invadiram a Península e a Lusitânia, depois da queda do Império Romano do Ocidente, pois dela não se encontra notícia senão nos meados do século X.

Os velhos documentos exumados do pó dos antigos tombos têm-se mostrado avaros em dizer-nos a época da fundação da vila que, por ser tão aprazível sítio, tão temperado no clima, tão mimoso de frutas e pescaria, e finalmente tão provida de tudo o necessário para sustento da vida humana, se faz, sobre estimada, apetecida.

Assim a descreveu Pedro Tavares, Senhor de Mira, a Frei Bernardo de Santa Maria, quando da passagem deste por Aveiro, para ali fundar o mosteiro de Nossa Senhora do Carmo, acrescentando que «entre as notáveis deste reino tem avantajado lugar, por ser empório tão frequentado de naus estrangeiras e naturais, que excede a muitas grandes e compete com as maiores da nossa costa».

Não falta, porém, quem esteja interessado em considerar Aveiro como uma das mais antigas povoações da Península, buscando os mais variados argumentos ou tecendo histórias mais ou menos fantasistas.

«Flumen Vacca oppidium Talabrica», diz Plínio, ao enumerar as cidades da Lusitânia:

Antonino, no seu itinerário, marca uma distância de Talábrica a Aeminium igual à que vai de Aveiro a Águeda; daí se identificou, erradamente, Talábrica com Aveiro.

Situada «quase toda de norte a sul, em forma prolongada, sobre uma fértil e aprazível campina, que não tem competidora em muitas léguas em roda – como no-la descreve Cristóvão de Pinho Queimado – não é de aceitar que tenha constituído lugar de eleição para nela se edificar uma «oppidum» romana, opinião justificada por não terem sido encontrados no local nem os mais ligeiros vestígios de construções ou objectos da época da dominação romana.

Frei Bernardo de Brito, na sua Monarquia Lusitana, quer que Aveiro tenha sido fundada pelos gregos, quando estes, depois da guerra de Tróia, aproaram às costas da Lusitânia; e para tanto, fundamenta-se nos escritos do espanhol Florião del Campo, que viveu no século XVI.

Também Carvalho da Costa, na sua «Corografia Portuguesa», diz que a povoação foi fundada pelas legiões romanas do tempo de Marco Aurélio, com o nome de Aviarium, local com muitas lagoas, onde se criam aves palmípedes.

Velha feitoria fenícia?

Povoação fundada pelos gregos ao sul da foz do Vouga? Ou pelos celtas e turdetanos?

Célebre cidade luso-romana?

Actual representante da antiga Talábrica?

O que de momento se poderá afirmar é que a sua origem está ligada à existência de sal na região, pois era grande a importância deste produto na economia das antigas populações.

O documento datado de 959, escrito em latim bárbaro, designa Aveiro pelo nome de Alavarium... «in territorio Colimbrie... terras in Alavarium et salinas que ibidtem compravimus».

A partir desta época começam a ser frequentes as referências à povoação que, no ano de 1050, surge com o nome de vila de Alaveiro, no inventário dos bens de Gonçalo Ibn Egas e de sua mulher Dona Flamula: «in illa marina costa sala tertia de Alaveiro...» tal qual se lê no documento 378, do Portugaliae Monumenta Historica – Diplomata et Cartae. / 16 /

A categoria de «vila», que lhe é dada nesta data, não lhe confere ainda a importância que à primeira vista parece ter, pois nos séculos X e XI assim era designado qualquer agregado rústico.

De pouca ou nenhuma importância, pela sua posição nada privilegiada para a guerra, sem castelos ou até mesmo muralhas que a defendessem das constantes arremetidas dos mouros, só algumas décadas mais tarde poderia vir a florescer, mercê do seu comércio próspero, da sua navegação e da sua agricultura.

Muitas vezes assistiu e foi vítima das frequentes lutas entre cristãos e mouros, quando estes ainda não tinham sido levados de vencida para lá dos campos do Mondego.

Terra de pescadores e mareantes por excelência, nascida para ser grande na paz, só começou a sua verdadeira vida de grandeza depois do século XII, com a tomada de Lisboa em 1147, porquanto só a partir desta data o tráfico marítimo foi intensificado, após o afastamento do perigo dos piratas árabes que de Lisboa faziam a base das suas operações.

Acentuou-se a sua importância a partir de então, concedendo D. Dinis bastantes privilégios a quem quisesse ir morar para a «sua vila de Aveiro».

D. Afonso IV concedeu regalias a todos os pescadores e mercantes da mesma vila, que já então – 1380 – apareceram organizados corporativamente na Confraria de Nossa Senhora da Alegria.

De Aveiro, no ano de 1384, saíram almas urcas, que se juntaram à frota que foi em socorro de Lisboa ameaça da pelos castelhanos.

Não era, porém, chegada a hora que a «vila nobre e notável» atingiria o seu máximo esplendor e a sua maior grandeza.

Essa hora só soará, quando Portugal tiver aventurado os seus primeiros passos nos mares desconhecidos, na dilatação da fé e na expansão do Império, lançando-se numa gigantesca epopeia marítima que ficará a assinalar uma época na História e civilização de todos os tempos.

Essa hora só soará quando chegar o século XV, o século de oiro da nossa História, o século português, quando a vila for pertença do Infante D. Pedro que a cercará de muralhas.

Ecoará e terá ressonâncias grandiosas e sublimes através de todos os tempos, quando aos destinos da «vila» estiver ligada para a acompanhar, como seu anjo protector, uma figura luminosa desta época: a Princesa Santa Joana, «a excelente Infanta e singular Princesa» no dizer de Garcia de Resende. A sua figura eleva-se a um nível culminante sobre aquela Europa, que, tal como a de hoje, vinha sofrendo os abalos de profundas e radicais transformações, quer sobre o aspecto económico e social, quer sob o aspecto intelectual, político e religioso.

Vejamos:

Economicamente, o sistema corporativo medieval – que dera origem e fizera a prosperidade de muitos burgos e vilas, como a de Aveiro – vai-se desagregando e o capitalismo faz progressos crescentes.

A técnica comercial desenvolve-se consideravelmente e ao lado das casas bancárias já existentes, principalmente nas cidades italianas de Florença, Génova e Veneza, e das suas filiais espalhadas por toda a Europa, outras aparecem, realizando empréstimos, subvencionando empresas, assegurando e dilatando, em suma, o comércio internacional.

Por outro lado, ao passo que a nobreza feudal se ia enfraquecendo e arruinando, com o crescente poder real, ergue-se potente e dominador o Terceiro Estado, já consciente do seu poder e influência, oferecendo aos monarcas seguro apoio para a reacção oposta aos nobres e ao clero.

Perante a acção centralizadora dos reis, ajudados pelos juristas, a velha nobreza perde as suas prerrogativas, os seus privilégios e a sua autoridade; em contraste, a influência da burguesia, é cada vez maior: burgueses tomam conta de diversas actividades do reino, entrando na administração do tesouro, fornecendo legistas para o conselho do Rei, Professores para as universidades.

A nobreza de Toga, vence a nobreza de sangue.

No século XIII, a cultura é eminentemente teológica; no século XV é humana.

O estudo da Filosofia e da Teologia, que atingiu o seu apogeu no século XIII com a Escolástica, vem-se dessorando a pouco e pouco na especulação e discussões estéreis do século XIV, e apresenta neste século XV, sinais de marcada decadência.

A corrente naturalista, já acentuadamente marcada em Guilherme de Occam, encontra condições favoráveis para o seu desenvolvimento no humanismo, largamente preparado, nos séculos anteriores e que desabrocha, cheio de esplendor, com Dante e Petrarca nas Letras, e Giotto e Fra Angélico nas artes.

S. Francisco de Assis, com a sua doutrina amorável e apaixonada pela natureza, abrindo vastos horizontes ao naturalismo, ajuda a formação desta nova mentalidade.

Os franciscanos fizeram a reconciliação do homem com a natureza «o fogo e a água foram julgados dignos de serem irmãos dum santo. A própria água foi lavada e o fogo purificado: a água não é mais aquela água que foi dos escravos, o fogo não é mais aquele fogo que imolava as crianças a Moloch...» no dizer de Chesterton. / 17 /

O estudo da latinidade, que nunca se esquecera na Idade Média, aprofunda-se no século XII e no século XV, o entusiasmo pela cultura clássica torna-se universal.

É este o século do humanismo fecundo e eterno, que, na civilização antiga, procura os valores humanos.

Depressa, porém, degenera num humanismo literário mais superficial, e tem a sua última degenerescência no renascimento paganizante do século XVI.

Se as letras ganharam neste decalque dos gregos e latinos, e as ciências experimentais se desenvolveram, a idolatria por tudo quanto tivesse sabor clássico aniquilou a arrojada arquitectura medieval, testemunho imperecível do idealismo dos espíritos mediévicos.

Se Giotto e Fra Giovani – O Angelicus Pictor – não perdendo nunca a sua simplicidade interior no estudo da natureza e no seu anseio do Ideal, deram às suas obras um cunho de ternura singela e ingénua, os pintores do século XVI, nas ruas, cantavam hinos à natureza pagã.

Este humanismo degenerado provocou um desequilíbrio na civilização dos séculos XV e XVI, e a sua influência, sob o aspecto moral foi tão nefasta, que os benefícios, que em contra partida trouxe, não compensam o descalabro em que fez mergulhar os costumes, desprezando os tradicionais preceitos, e adoptando outros tão livres, tão desenfreados, que dificilmente se encontrará outra época do mundo civilizado e cristão, em que moralmente se descesse tanto.

No campo político, a Europa do século XV dava o espectáculo confrangedor duma Europa desmantelada, separada por lutas religiosas e fratricidas, abrindo vasto campo à cobiça do Turco, – o homem do Leste que, ameaçador, batia às portas do Ocidente.

A Espanha que só com os Reis Católicos – 1492 – conheceu unidade territorial, estava longe de constituir, como a Nação portuguesa, um todo nacional.

A França entrou no século XV completamente retalhada e ensanguentada pela guerra dos Cem Anos. Parte do seu território estava nas mãos dos ingleses e a outra parte ermado pelas guerras desastrosas. Carlos VII nada mais era do que o Rei de «Bourges», e teria perdido ceptro e coroa, se, duma aldeia da Lorena, não surgisse a heroína que, inspirada por Deus, salvou a França dando-lhe admirável exemplo de fé nos seus destinos.

A Inglaterra viu perdidos todos os territórios e garantias que alcançara da França. Internamente, as lutas com a Escócia e a Guerra das Duas Rosas reduziram-na a um deplorável estado.

A Alemanha, constituída por um aglomerado de cidades livres, e cerca de 400 principados, ducados e estados pequenos que continuamente se guerreavam vivendo na mais dissolvente anarquia, era permanente campo de lutas, onde os Hohenzollern, os Wettels e os Habsburgo se disputavam a coroa imperial, mais um símbolo do que uma realidade.

A Itália via-se a braços com as rivalidades que mantinham entre si, não só as diferentes cidades livres e independentes em que estava fragmentada, mas também as principais famílias duma mesma cidade, que recorriam a estranhos, para solucionarem questões internas, franqueando-lhes a entrada e facilitando-lhes o domínio.

Os Estados Escandinavos esgotavam-se em lutas pela hegemonia.

Dos povos Eslavos, só a Polónia atingira certa importância e organização, sendo a potência preponderante da Europa oriental e a barreira, que, no século XIV, susteve a invasão mongólica.

O império bizantino, após uma existência de quase mil anos, estava reduzido à sua opulenta capital. Dum lado os eslavos, do outro os húngaros; mais tarde, os tártaros e os árabes, e agora, os turcos tinham ido minando, esfacelando e arruinando o império do Oriente.

O turco avançava sempre e a bandeira do crescente teria chegado à Europa cristã se o rei da Hungria lhe não detivesse a marcha.

Tem ressaibos de tragédia este paralelismo histórico do século XV e do século que atravessamos!...

O panorama religioso é marcado pelo período tristemente célebre dos Papas de Avinhão e do grande Cisma, que contrasta com o período de prestígio e hegemonia do Pontificado, durante a Idade Média.

Os princípios básicos da unidade religiosa e da hegemonia da Santa Sé são atacados, dando origem à série de calamidades que caíram sobre a Igreja.

Após as primeiras heresias de Wicleff e de João Huss, bastou uma chispa lançada por Lutero, para que se ateasse o fogo da rebelião religiosa mais radical que a História regista e que trouxe a mais dolorosa divisão da Cristandade.

Só nesta ponta ocidental da Península, se afirmava já uma nacionalidade, plena de vigor, transbordante de vitalidade, una, forte, ansiosa de expansão. Passada a crise de crescimento, há paz e grandeza.

Enquanto por essa Europa os homens andavam «cegos e sedentos» do sangue de seus irmãos

«Não faltavam cristãos atrevimentos nesta pequena casa lusitana».

Por ocultos mistérios de Deus afastada de Castela, esta nação, que um dia seria chamada «fidelíssima», entrava no século XV guiada pela mão dum génio, nessa estrada imensa que liga os continentes, nesse mar ainda Tenebroso, e que, mercê da fé e do arrojo dos nossos mareantes, se transformaria num Oceano luminoso. / 18 /

O Príncipe Perfeito, o «Homem», incarnação acabada das virtudes de seus tios-avós – os altos Infantes – filósofo, estadista, humanista, asceta, realizaria o plano arrojado de D. Henrique.

Desligado a pouco e pouco da monarquia leonesa, o pequeno condado portucalense, vai-se alargando e transformando no reino de Portugal.

Os filhos de D. João I fazem o seu baptismo de sangue, em Ceuta, e D. Afonso V assenta no Magreb os primeiros pilares do nosso império de além-mar.

E, traçados definitivamente os limites geográficos, organizada a vida administrativa da Nação, despertada a sua consciência nacional, afirmada e consolidada a sua independência em Aljubarrota, Portugal entra no século XV, uno, forte e livre, marcando uma posição de acentuada preponderância, numa Europa inquieta e atormentada por numerosas guerras de predomínio e cisões religiosas.

Ainda com marcados ressaibos de espírito medieval, cujo expoente máximo está consubstanciado na figura de D. Afonso V, Portugal é, nesta época, a expressão de uma geração de homens – guerreiros e santos, sábios e filósofos – que culmina na figura gigantesca do Infante de Sagres.

Incarnação de todas as virtudes da Raça, tradutor dos seus sonhos mal despertos para mares nunca doutro lenho arados, acendeu, em Sagres, o facho que iluminaria as paragens longínquas e desconhecidas da História, ocultas ainda à radicação da Fé.

O Portugal de Avis, o Portugal dos Descobrimentos, que, à sombra da cruz realizaria o sentido apostólico da sua vocação, irá continuar a obra inacabada da conquista e do povoamento, obra de Cruzada, que se iniciou em Ceuta e que só terminará no sacrifício de Alcácer-Quibir.

A conquista de Ceuta, em 1415, é o primeiro verso duma epopeia inspirada por um ideal inultrapassável, qual era o de, em «serviço de Deus», destruir o Islão, ameaçador da Cristandade, salvar a civilização ocidental da cobiça dos povos do oriente.

Mais do que isso, a conquista de Ceuta é o marco miliário, duma idade nova, duma idade oceânica, em que Portugal representa o primeiro papel. A tomada de Ceuta marca, melhor do que a tomada de Constantinopla, uma nova época: ela foi a percursora imediata da idade dos descobrimentos marítimos, determinante duma viragem na História.

De Ceuta se partiu para a Grande Rota, que substitui a concêntrica civilização mediterrânica pela excêntrica civilização atlântica.

Refugiado na estranha corte do Sacro Promontório, cercado de desvairadas nações de gentes, D. Henrique prepara cientificamente os seus marinheiros para vencerem o mar tenebroso povoado de lendas e mistérios, esse mar, considerado como o limite inviolável da terra.

Ajudado por uma inteligência pujante, este génio silencioso debruça-se sobre o mar, interroga-o, a querer desvendar-lhe os mistérios, e giza um plano que irá executar tenaz e porfiadamente.

Há um mar tenebroso povoado de lendas e mistérios?

Há um príncipe cristão para as bandas do Oriente?

Há uma Índia, povoada de infiéis para lá desses mares?

É necessário desafiar e vencer o mar das Trevas.

É preciso ir em busca do Pestes João.

Há que chegar à Índia e sufocar mortalmente o inimigo da Cristandade.

As naus do Navegador, tripuladas pelos seus mareantes, irão sistemática e perseverantemente, sulcar o Oceano, numa luta de igual para igual: dum lado o mar tormentoso, do outro o esforço duma Raça.

O mundo ignorado vai surgindo aos olhos da Europa.

A passagem do Bojador modifica a fisionomia do mundo: rasga os limites que a antiguidade julgava invioláveis.

O mar-oceano, cujas ondas eram negras como breu, abria-se, límpido, às naus destes marinheiros de Cristo.

Não há mais ondas negras, onde o Sol se afogava sem voltar a aparecer...

Não mais ilhas misteriosas, onde os pescadores sofriam eternas penas...

Não mais estranhas estátuas, Adamastores disformes, ordenando terrivelmente que não fossem mais além...

Gil Eanes quebrara o encanto.

O negro mar das trevas era agora o verde mar da esperança!...

E sempre... se apetrecham as embarcações que seguem rumo à África em demanda do Oriente... Sempre... no mesmo ritmo, sem desânimo, por uma obra de Cruzada, depois cimentada na da conquista e exploração, os portugueses de quatrocentos, tornaram-se os pioneiros da fé católica e obreiros do Império.

É neste momento histórico, que, em Lisboa, nasce a Princesa D. Joana, filha do Rei de Portugal, D. Afonso V e de sua mulher, a rainha D. Isabel.

Com 20 anos, veio para o mosteiro de Jesus, em Aveiro, sepultar a sua radiosa beleza, trocando o fausto e pompas da corte de seu Pai pela vida de penitência e austeridade.

Aqui se veio encerrar e aqui se finou santamente. Com a sua morte, se despiu de galas a própria natureza: em Maio, as flores murcharam e as folhas caíram...

Os seus contemporâneos lhe chamaram santa Princesa, e sob esse nome é ainda hoje invocada pelos marinheiros que o põem na proa dos seus moliceiros / 19 / e arrastões, e por todos os aveirenses que crêem que a sua alma continua a protegê-los.

Singular figura a desta Princesa jurada dum reino, cuja vida silenciosa e humilde é uma eloquente epopeia na projecção que teve sobre o mundo e a sociedade em que viveu, e que ainda hoje, passadas centenas de anos, no faz recolher em saudosa meditação.

Esta Infanta de Vitral brilha esplendorosamente, como iluminura mediévica emoldurada pelos luminosos poentes da sua «Lisboa a pequena» como enternecimento chamava à sua vila de Aveiro.

A 25 de Julho de 1415, sai do Tejo a grande armada que irá conquistar Ceuta.

Nela vão incorporados alguns navios de Aveiro, que faziam parte da frota «bem alpendorada e toldada» de setenta navios, todos novos, saída do Porto, sob o comando do Infante D. Henrique.

Ceuta é agora portuguesa. A armada regressou a Portugal. O Infante D. Pedro, (filho segundo do rei da Boa Memória) é feito duque de Coimbra e também senhor de Aveiro. No seu espírito nasce a ideia de tornar a vila uma das primeiras de Portugal.

Para tanto contribui a sua magnífica situação geográfica e os muitos favores e privilégios que lhe foram concedidos sob a protecção do seu novo donatário – o da «Virtuosa Benfeitoria», – a quem os Aveirenses chamariam «O Reedificador».

Nunca a vila tinha recebido por senhor quem tanto por ela se interessasse e nem por isso foram poucos os que possuíram o senhorio de Aveiro, ou ali tiveram bens, pois muitas vezes foi doada à nobreza, a ordens religiosas ou a igrejas, como nos primórdios da nossa nacionalidade era uso fazer-se no sul da Europa.

Passando pela mão de diversos donatários, foi pertença da coroa no reinado de D. Dinis e de D. João I, até ser doada a seu filho o duque de Coimbra, doação mais tarde confirmada por D. Duarte e depois por seu sobrinho, o rei D. Afonso V, em 1448, que a tornou de juro e herdade.

Não quiseram as intrigas políticas e palacianas que por muito tempo ela estivesse na posse deste nobre senhor.

A sua trágica morte nos campos de Alfarrobeira, no ano de 1449, fá-la voltar à posse da coroa, até que, em carta datada de Alcobaça, a 19 de Agosto de 1485, D. João lI declara fazer «irrevogável doação da nossa vila de Aveiro com seus terrenos e com todas as rendas e direitos reais da dita vila e da dízima nova e velha do pecado dela, à Infanta D. Joana, sobre todas mui prezada e amada irmã», que, no humilde e pobre mosteiro dominicano, viera sepultar a sua radiosa e estranha beleza, de cabelos loiros e olhos verdes.

Em Julho do ano de 1472, a Infanta D. Joana, acompanhada do pai e do irmão, e com todos os da sua corte, cobertos de dó e muito tristes – como se lê no velho códice quinhentista da Crónica da Infanta – seguiam a caminho de Coimbra, onde no sumptuoso e excelente convento das Claristas, a princesa ia dar entrada.

Todavia, antes de chegar à cidade de Coimbra, a Princesa, que «só procurava religião onde vivesse com pobreza e humildade e onde estivesse com Cristo pobre e pequenino» pediu ao pai que a deixasse ir para Aveiro, para um mosteiro pobre, havia sete anos fundado. O Poderoso monarca, o primeiro que por graça de Deus foi rei de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar em África, «mandou que endereçassem suas jornadas para a vila de Aveiro contra a vontade e parecer de todos».

 

No século XV, já aparece nos códices com o nome português de Aveiro, a antiga Aviarium, a Alavarium ou Alaveiro dos séculos X e XI.

Grande empório comercial e marítimo, banhado pelas águas da sua riquíssima laguna, que mais não era do que esse mar lusitano, que desde sempre tanto seduzira os seus habitantes, estendia-se de norte a sul numa vasta planície das mais belas e produtivas da região das beiras.

Um braço da laguna – o esteiro do Cojo – cortava a povoação de poente a nascente, limitando, pelo sul o recente bairro de Vila Nova, e pelo norte, o velho e nobre bairro da vila e os bairros comerciais do Alboy e da Ribeira.

Inflectindo para o sul, corria o esteiro pelo vale do Côjo, para ir passar junto às terras chamadas das Agras, não longe do bairro dos Oleiros.

A laguna, aberta para o mar, no sítio da barra, a duas parcas léguas da vila, ofertava entrada e saída aos barcos de maior tonelagem de então, quer nacionais quer estrangeiros, fazendo de Aveiro um dos mais importantes entrepostos comerciais do século XV.

É assim que, através dos seus profundos canais, a laguna constituía um magnífico porto, e permitia que as maiores naus e galeões viessem acostar ao Cais do Alboy e da Ribeira, à sombra das muralhas da «antiga e mui nobre e notável cidade de Aveiro».

Era a vila formada pelos seus cinco bairros, o mais antigo dos quais, o mais nobre e por certo o principal, foi rodeado de muralhas, por ordem do Infante D. Pedro, donatário de Aveiro, depois de 1415.

Querendo que ela fosse uma das mais importantes do reino, mandou reconstruí-la, e iniciar a construção de altos muros, para o que se utilizou o calcário branco acinzentado dos lugares próximos, calcário brando, é certo, mas que o tempo endurecia.

É de presumir que tivesse orientado a construção das muralhas o mestre-de-obras do Infante, Lourenço / 20 / Eanes de Morais, que era «morador na vila de Aveiro» em 26 de Outubro de 1432.

Quem, pois, no ano de 1472, acompanhasse a Aveiro a Princesa de Portugal, e com ela viesse do sul pelo caminho real, avistaria a silhueta das muralhas, com suas barbacãs e torreões, que circundavam o bairro nobre da povoação.

Fora de muros, passava-se ao lado do bairro dos Oleiros por uma larga rua que se terminava na entrada mais importante da vila.

Logo ali, sobre a porta chamada por principal – «a porta da vila» – estavam gravadas na pedra uma inscrição em numeração romana e as quinas reais, sobre a cruz de Avis, com a orla dos Castelos, tendo cortados os superiores com o branco de pinchar; por cima o braço duma balança, cujos pratos pendem dum e doutro lado do escudo e uma fita com a palavra «désir».

Isto é, a era de 1418, sobre o brasão de armas do Infante D. Pedro.

De sólida construção, o cinto de muralhas, em hexágono irregular, era formado de seis lanços, interrompidos, «como os de Jerusalém» por nove diversas entradas (bem que nelas se encontram 12 portas) além de 4 postigos, estes destinados apenas aos peões.

Ao meio do mais importante lanço – o que ficava voltado para o sul – abria-se a porta da vila.

Nesta entrada se contavam duas portas, ambas em forma de arco ogival.

Passada a primeira, ficava-se num átrio rectangular, limitado pela espessura das muralhas e fechado ao fundo pela segunda porta, que era necessário ultrapassar também, para se ficar dentro da vila, a que muitos chamavam a «Jerusalém lusitana».

Na porta principal tinha começo a rua Direita. Seguia para norte, cortando a vila e dirigindo-se directamente ao outro extremo do bairro, onde, depois de tomar o nome de rua da Costeira, se terminava na porta da Ribeira.

Não precisavam os habitantes do bairro dos Oleiros, como se verifica pela topografia das muralhas, de as rodear muito para entrar no seu recinto fechado: a Porta do Sol, voltada quase para nascente, donde o seu nome, dava-lhes acesso para a rua de Santa Maria, no local onde tinha sido fundado o mosteiro de S. Domingos.

Foi este mosteiro fundado pelo Infante D. Pedro, que para isso obteve licença do Papa Martinho V, em 19 de Fevereiro de 1493, e a ele ainda ligava a lendária aparição da Virgem ao velho Afonso Domingues, trazida até nós pelo notável cronista da ordem dominicana – Frei Luís de Sousa – e mais tarde romantizada pelo poeta do Trovador, João de Lemos.

No lado interior da muralha, sob a porta do Sol, encontra-se um nicho com uma imagem da Virgem, e a invocação «Ave-Gratia-Plena».

Da porta do Sol para nascente, abraçavam as muralhas o Mosteiro de S. Domingos e a sua grande cerca até junto do campanário da igreja, onde ficava a porta do campo e em cuja parede exterior estava inscrita na pedra a epígrafe:

«Ano do Senhor de 1418. Estas muralhas, o Infante D. Pedro, filho do ínclito rei D. João I, mandou construir».

Daqui, corriam os muros até ao extremo da cerca do Mosteiro de Jesus, desciam em curvas e contracurvas a rampa da Corredoura, como que a querer lançar-se lá em baixo, no esteiro, para se abrirem junto do cais numa outra entrada, que uns afirmam ser apenas um postigo, outros garantem ser uma porta. Trata-se da porta do Côjo.

Já para trás, a muralha apresentava mais duas entradas destinadas a peões: o postigo do campo – também chamado do Norte, por ficar voltado para este ponto cardeal – e o postigo da corredoura, do Côjo ou do nascente; o primeiro, à Travessa das Laranjeiras – extremo da cerca do Mosteiro de Jesus; e o segundo, a nascente da Travessa do Hospital.

Também na porta do Côjo não faltava uma inscrição, junto ao arco ogival do lado exterior, que rezava assim:

«Ano do Senhor de 1422. O Infante D. Pedro, filho de D. João I, mandou fazer estes muros como os da cidade de Jerusalém».

Marginando o cais, seguia a muralha em linha recta para se abrir na porta da Ribeira com seus dois arcos, depois do que se continuava sempre paralela ao esteiro, acompanhando o bairro da Ribeira até ao largo de S. Brás, onde terminava por um torreão antes do qual ficava a porta do cais.

Depois deste, fazendo um ângulo recto, subiam os muros ameados pela ribeira das Arribas, deixando de fora o bairro dos comerciantes ingleses. No vértice deste ângulo, situa-se a porta do Alboy, voltada para poente e dando passagem para o bairro que lhe deu o mesmo nome.

Ao cimo da porta das Arribas, as muralhas seguem quase em linha recta, abrindo-se na porta de Rabaens.

Mais ao sul, depois de 2 torreões, entrava-se na vila pelo postigo do mar, e o lanço terminava na porta de Vagos, aberta na direcção da vila do mesmo nome.

Daí, correndo para nascente, vai fechar-se o hexágono na porta da vila não, sem ter sido interrompido pelo postigo do Sol.

Desta muralha pouco ou nada resta. Apenas umas pedras enegrecidas. / 21 /

 

VIDA SOCIAL, ECONÓMICA E RELIGIOSA

O bairro nobre, que as muralhas circundavam, era ocupado, em grande parte, pelos mosteiros dominicanos de Jesus e de Nossa Senhora da Misericórdia – este, com sua grande cerca.

Atravessado de sul para norte, pelas Ruas Direita, do Loureiro, e do Campo, não contando as de somenos importância, era cortado de nascente a poente por algumas ruas e travessas, das quais diremos, a Rua de Santa Maria, a Travessa do Terreiro e a Rua de Santa Catarina. Esta fazia comunicar a Rua do Campo com o adro de S. Miguel, onde vinha rematar a Rua Direita e a do Loureiro.

A par dos magnificentes mosteiros e vetustas capelas, tinha as suas casas todas construídas de pedra, brancas e vistosas a das pessoas vulgares, e as dos nobres com frontispícios, sacadas e primorosos jardins.

Tudo isto tornava a vila com as suas largas ruas e espaçosas praças – largas e espaçosas para aquela época – uma das mais belas do reino, a que não faltava o encanto que lhe emprestam a sua maravilhosa laguna e as suas riquíssimas marinhas de sal a que feéricos poentes de fogo arrancam cintilações deslumbrantes.

Esquecendo, por momentos, os seus mosteiros dominicanos, avultava com seu espaçoso adro a Igreja Matriz de S. Miguel, cujo alta torre de três sinos e uma garrida projectava, desde o século XI ou até mesmo desde séculos mais recuados, a sua acolhedora sombra, sobre as águas azuladas da ria.

Na sua riqueza, surge com austeridade dos monumentos medievais.

Fundada cerca do ano de 1086, pelo conde D. Fernando, segundo versão de alguns investigadores, assistiu a todas as glórias e a todas as vicissitudes dos aveirenses.

Voltada ao poente, não obstante a pesada arquitectura, conservava toda a majestade, com suas «frestas esguias e semicirculares».

Era um edifício grande, sem naves, de pedra e cal, e no frontispício um painel de S. Miguel com moldura doirada.

Fora, encostadas às paredes e gozando sombra protectora, erguiam-se onze capelas; sobressaía uma, de arquitectura gótica, a de Santa Catarina; destacava-se outra em forma de zimbório – a capela de S. Brás – instituída em 1457 por Fernão Vaz de Agonide, contador-mor de D. Duarte e de D. Afonso V.

Muito próximo, no mesmo adro de S. Miguel, a Albergaria de S. Brás, para alojamento de peregrinos. Dali se avistava, olhando em frente, a Casa Municipal, situada na Rua da Costeira.

Na centro da vila – o largo do Terreiro – vivia a comunidade judaica que se estendia pelas imediações até à rua da Judiaria.

Para além da ponte, que se lançava através do esteiro em quatro soberbos arcos, estendia-se o arrabalde ou Vila Nova.

Era um pequeno bairro de toscas casas, espalhadas desde o braço do Côjo às vinhas de Sá, construídas de pobres paredes de adobos de lama, e tendo por cobertura humildes tectos colmados.

Habitada por marinheiros, pilotos e pescadores – os descendentes desses outros aveirenses que já três séculos antes saíam para o mar a lançar as suas redes – o bairro de Vila Nova tinha começado a formar-se no primeiro quartel do século XV e possuía já bem apetrechados estaleiros, onde se construíam não só poderosas naus e caravelas que iriam ajudar a conquista e expansão, como também barcos e galés, para o intercâmbio comercial.

Sobranceiro ao canal, ficava um chafariz, donde faziam os mareantes suas aguadas para abastecer as embarcações, e cuja água corria até ali, pelo vale do Côjo, trazida em magnífico aqueduto de cantaria.

Muita antiga, e quase no limite do bairro, ficava a sua única ermida. Outrora fora paróquia, mas naquela época era sede de importante confraria dos seus pescadores e mareantes.

Elevada sobre minúsculo outeiro, donde se enxergava o mar, próximo à costa, «é grande e formosa, com um alpendre e seu coro para se cantarem as Missas; tem 3 capelas, a maior e duas colaterais, com retábulos doirados e tudo com grandeza e perfeição.» Assim no-la representa Frei Agostinho de Santa Maria.

Santa Maria de Sá... Tal é o nome da pequenina e modesta ermida que depois foi chamada Nossa Senhora da Alegria.

Por anexo, um hospital fundado por Fernão da Veiga para os pescadores pobres daquela irmandade, organização social e religiosa, por certo muito antiga, como a atestam os seus confrades nos meados do século XV, em escritura feita perante Afonso Vicente, tabelião em Vila Nova.

Os bairros da Ribeira e do Alboy, situados na riba sul do esteiro e marginando-a, eram habitados, o primeiro, por comerciantes e mercadores aveirenses; o segundo, por estrangeiros. Predominavam entre estes, os ingleses e também os holandeses e flamengos.

«Alboy» é, segundo parece, corrupção de Albion, pátria dos ingleses que lá habitavam, e que à principal rua do bairro deram o seu nome – Rua dos Ingleses.

Situado extra-muros, com o seu cais acostável, tinha fama como grande entreposto comercial e centro distribuidor do comércio externo, representado por firmas de várias nacionalidades. Não é contudo fácil / 22 / precisar a data em que se estabeleceram aí as primeiras casas estrangeiras.

Já no reinado de D. Afonso III, as quinhentas marinhas de Aveiro produziram sal bastante para poder ser exportado para Inglaterra, França e Flandres; a formação do bairro do Alboy deve remontar, pois, a essa época, tendo atingido, porém, grande incremento no século XIV quando à indústria salineira se juntou a das pescarias, sem dúvida muito mais importante, o que determinou a afluência de muita gente estrangeira.

Ao entreposto do Alboy aproavam muitos barcos, tanto nacionais como estrangeiros: saíam uns com grandes carregamentos de sal, peixe, cereais, vinhos e frutas, destinados aos portos do reino e aos de Inglaterra, Flandres, Bretanha e Normandia; entravam outros trazendo em troca, os panos de lã, a cambraia, o linho, o barbante e outros produtos de que se fazia mister.

 

O homem procura «as localidades cujo torrão fecundo lhes faculta o granjeio das subsistências, em sítios favoráveis à laboração industrial e mercantil» como ensina Amorim Girão. É, pois, de julgar, que o desenvolvimento da indústria salineira e das pescarias, intensa no século XIV e atingindo o seu apogeu no século XV, tenha chamado a Aveiro parte da população do interior que veio juntar-se à que ali já residia.

Era esta constituída especialmente por pescadores e mareantes, marnotos e medidores, construtores navais e mesteirais, comerciantes e artífices das construções urbanas e rurais; por nobres e religiosos.

É sem dúvida a classe marítima a mais representativa da vila, constituindo uma força social, que, com o seu escol de mareantes, arrojados marinheiros, sábios pilotos, mestres e contra-mestres, pescadores e arrais, formava uma elite de experimentados navegadores, que muito contribuíram para a nossa epopeia dos descobrimentos.

Nesta época a sua importância devia ser tanto maior, quanto é certo que desde o Infante D. Henrique, mais se tinha valorizado a função dos pilotos, senhores da ciência náutica e de quase todos os segredos do mar.

Foi deste alfobre, desta improvisada escola de marinharia que nasceu João Afonso de Aveiro, conhecido em todo o reino com piloto de grande saber e homem afeito ao mar.

Da importância dos mareantes e pescadores pode avaliar-se pela sua rica organização religiosa e social, a Confraria de Santa Maria de Sá, representativa da classe, cujos interesses e regalias advogava perante o rei e Tribunais.

Da sua antiguidade e extensão pode ajuizar-se pela sentença dada em 25 de Agosto de 1500, pelo Vigário Geral do Bispado de Coimbra, em que se diz ter a Irmandade cerca de 200 anos e agrupar trezentos a quatrocentos irmãos. Todavia só no ano de 1441 se constitui legalmente, por escritura.

A D. Afonso V devem os mesmos pescadores a confirmação de todas as suas graças, privilégios, mercês e liberdades, dada em carta datada de 20 de Julho de 14149 e da qual lhes foi entregue «o treslado dela em pública forma».

Ainda no século XV e no reinado do Príncipe Perfeito, por provisão deste rei, em 24 de Abril de 1448 foi concedido que «sem embargo de taixa, que sobre os ditos pescados aos ditos pescadores têm disposto que eles o vendam e possam livremente vender a dúzias».

Ligada às actividades desta classe, vivia a burguesia aveirense, criada na vila, como consequência da função do seu porto e do desenvolvimento do tráfego lagunar e marítimo na fase que antecedeu os Descobrimentos.

Possuindo uma mentalidade «sui generis» em razão do seu contacto diário com outros povos – principalmente de países nórdicos – contrastava com os restantes habitantes da povoação. Esta classe, dominando um horizonte que transcendia os estreitos limites da vida local, era por isso mais aventureira, mais aberta às influências vindas do exterior e às inovações do progresso.

Com o seu apogeu durante esse século, esta burguesia composta de mercadores, comerciantes, banqueiros e armadores navais, procurou vencer as restantes classes fazendo sentir o seu poderio a essa população apegada à terra, senhora e depositária das velhas tradições, mantenedora dos antigos usos e costumes.

Todo o esforço destas classes era ajudado pela população rural, que pela sua actividade agrícola fornecia as subsistências necessárias ao grande agrupamento urbano, arroteando e semeando a terra dos grandes senhores – os nobres.

Destes, uns residiam na vila, por nascimento; outros, tinham vindo em virtude das muitas visitas que a Aveiro fazia o Infante D. Pedro, ou ainda pela chegada da Princesa D. Joana, e de seu sobrinho D. Jorge de Lencastre. A sua estadia ali chamava outros, pelo que em Aveiro se foi formando uma pequena corte.

O número de nobres era já tão avultado que a pedido dos Aveirenses, o Senhor da Virtuosa Benfeitora lhes concedeu o privilégio de nenhum fidalgo grande, ou pessoa poderosa poder ali estar mais de quatro dias, sem o seu beneplácito.

Influenciando beneficamente a organização da propriedade rústica, a nobreza teria exercido, porventura, acção perniciosa na classe marítima, o que se conclui do facto de D. João II sentir necessidade de proibir aos fidalgos a sua entrada na feira anual, que se realizava em Março, feira franca durante nove dias e de se hospedarem em casa dos mareantes, pois que / 23 / durante as suas viagens tinham que deixar sós suas mulheres e filhas.

Recolhidos no silêncio dos seus monastérios, solidões meditativas, refúgio contra um mundo a dessorar-se pelos primeiros sopros de uma Renascença pagã, em luta feroz contra o espírito da Idade Média, criador de Santos e heróis, mantinham acesa a fé em suas almas, os monges e as monjas dos dois conventos de Aveiro, em constantes orações e penitências.

Envergando os seus hábitos de estamenha, pretos e brancos, sobre os quais usavam os cilícios que mortificavam a carne, viviam a mais austera disciplina, pregando a verdadeira Doutrina, com o seu exemplo de castidade, pobreza e obediência, em transportes de exaltação mística, num proselitismo ardente.

Em contacto directo com a população da vila, vivendo junto dos seus templos, vivia o clero secular, vestido de suas batinas negras e grosseiras e calçados de toscos sapatos à maneira antiga.

Junto a esta população, mas sem com ela se poder confundir, viviam os de raça judaica em seu bairro próprio, dentro do bairro nobre. Poderosos, gozando de bastante protecção, explorando todos os ramos de negócios – à excepção do de metais preciosos que lhes era vedado – resistiam tenazmente à absorção.

Para fugirem ao baptismo, sujeitavam-se a todo o género de humilhações por parte da população, para quem representavam um sério caso de consciência religiosa.

Desventravam-se as terras da vila, e davam-se fartamente em peixe as águas da laguna e do mar.

Abastecida a população com o necessário, ainda podia exportar para outras povoações do reino e do estrangeiro o que restava para além das suas exigências.

Abundavam os cereais, pois só os campos do Vouga produziam anualmente 30000 moios de pão.

Abundava o vinho, os legumes, a hortaliça; a produção de fruta ultrapassava de tal modo a quantidade de que carecia a população, que todos os anos se carregavam navios para Inglaterra.

Eram tantas as aves domésticas, que os ovos mandados para o Porto e Lisboa rendiam 8000 cruzados em cada ano, depois de abastecida a vila e Coimbra.

Não escasseava a caça do monte nem a da ria, antes parecia inextinguível.

As suas marinhas produziram 16000 moios de sal.

Nas suas férteis pastagens criavam-se Formosíssimos cavalos.

Todos estes produtos contribuíam para valorizar a vila e o seu porto e tornar Aveiro um dos centros comerciais mais prósperos do século XV.

Utilizava-se a sua laguna como meio de comunicação e dada a dificuldade de penetração para o interior, pela falta de estradas e caminhos, a vila expandiu forçada mente o seu comércio para o mar.

Nos bairros do Alboy e da Ribeira, barcos de todos os feitios e tamanhos, arvorando bandeiras das mais diferentes nacionalidades, procediam à descarga dos mais variados tecidos, (como os panos de lã, o bristol, o lila (de Lile), a cambraia, o linho cru) – espécie de brim próprio para velas; mais descarregavam fio branco, esparto, sementes hortícolas, aduela, ferro, papel, vidro e pólvora.

Em troca, levavam madeiras, cereais, legumes, vinhos, frutas, sal, peixe e mariscos.

 

São passados 500 anos:

Numa Europa do século XX – atormentada por profundas lutas de interesses e dissidências políticas, económicas e filosóficas, esta velha Lusitânia, encontrou há algumas décadas o seu rumo certo, a sua Grande Rota, o novo génio político de sua Raça e dá ao mundo nobre exemplo de unidade, grandeza e prosperidade.

E também como no século XV, os destinos desta «mui notável e nobre cidade», foram entregues a clarividência dum homem que numa admirável lição de Portuguesismo, deu a Aveiro entre as cidades notáveis, avantajado lugar.

Hoje, a vossa terra, merece mais do que nunca, que vós, Aveirenses, a designeis pelo nome, tão gracioso que lhe deu a Vossa Princesa: «Minha Lysboa, a Pequena...»

 

páginas 15 a 23

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