Acesso à hierarquia superior.

N.º 14

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1972 

Pangloss em Aveiro

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ACTO II

 

A cena representa o Largo Municipal. Ao fundo, o edifício da Câmara e, em plano anterior, a estátua de José Estêvão. Bancos de jardim.

, sentado num banco, dorme profundamente. Sujeitos que vão passando avançam quase até ao proscénio e cantam.

 

Um deles –

Neste «largo dos Pacatos»,

de dia – ninguém vê isto! –,

passeia, de mãos atrás,                 | bis com o coro

o nosso bom Manel Cristo             |  “       “         “

 

Um deles –

De verão, em noites claras

– isto até vai pro jornal! –,

aqui guia a caravana.          | bis com o coro

o Dr. Luís do Vale.               |   “      “          “

 

Um deles –

Em noites de lua cheia,

vem o Rebocho Agapito,

o Paixão, o Silva Pereira    | bis com o coro

outro Rebocho bonito.         |   “     “           “

 

Um deles –

Digam agora, Senhores,

digam todos, mas à fé,

se este nosso larguinho      | bis com o coro

dos bons pacatos não é!    |   “     “            “

 

(Saem. Entra Má-Língua)

 

MÁ LÍNGUA (Mãos atrás das costas, vem na peugada dos populares. Olha a estátua e dirige-se ao Zé). – Ó cavalheiro! (Zé continua dormindo) Ó amigo!

ZÉ – Que é lá? (mal humorado) Que é que quer?

MÁ LÍNGUA – Diga-me cá. Porque é que engraxaram as botas ao José Estêvão?

ZÉ – Ora essa! Então não sabe? Como no domingo chegam excursionistas de Viana, Aveiro lavou a cara, cortou as unhas, pôs pó de arroz e fez «toilette».

MÁ LÍNGUA – Muito me diz. (Muito baixo) Olhe lá. E de novidades? Como vamos?

ZÉ – Não sei tanto como isto (indica a ponta de um dedo).

MÁ LÍNGUA – Sabe-me dizer onde está esse Dr. Pangloss?

ZÉ – Conhece-o?

MÁ LÍNGUA – Conheço. Quer dizer: já o vi, mas ainda não lhe falei.

ZÉ – Estou à espera dele. É um filósofo. Para ele, tudo está good, tudo bonne. Não deve tardar.

MÁ LÍNGUA – Pois eu também sou filósofo.

ZÉ – Com essa cara?!

MÁ LÍNGUA – Sim ,senhor. E tenho a certeza de que o meu sistema filosófico tem mais adeptos e é o mais racionalmente menos disparatado.

ZÉ – Em que se funda o seu sistema?

MÁ LÍNGUA – Eu lhe digo. Eu não sou positivamente um epicurista. Está a compreender, não é verdade? Não sou. Mas considero a Terra um enorme tonel, cheio de vinho branco, onde vão beber, num ansioso desejo de progresso, os filósofos como eu. A torneira são as bocas do mundo! (Solene) No mundo / 27 / só há uma verdade: a do vinho! Ando a escrever uma obra em 73 volumes, intitulada «Elogio do Vinho», com um sugestivo subtítulo: «In vino veritas». Essa obra descomunal vai ser traduzida em inglês ali pelo Dr. Coimbra, do Liceu; em Hebraico, pelo P.e Vieira; em francês, pelo Dr. Queirós e em esperanto pelo Faria, do Ultramarino.

ZÉ – Faria?!

MÁ LÍNGUA – Sim Pelo Director da Creche Aveirense.

ZÉ – Ah! Já sei.

MÁ LÍNGUA – É pra isso que eu queria encontrar-me com o meu colega Pangloss, estar com ele umas horas, discutir, filosofar, criticar, esmerilhar, esquadrinhar, porque da discussão nasce a luz do progresso regional.

ZÉ (Aparte) – Irra! Que maçador!

MÁ LÍNGUA – Compreendeu?

ZÉ – Compreendi, sim, mas olhe que hoje não é ocasião de lhe falar, porque ele vem aqui, propositada e exclusivamente para contemplar este Largo e as suas belezas.

MÁ LÍNGUA – Nesse caso, vou-me à vida. Muita saúde Tenho muito que fazer: daqui, dirijo-me à casa do António de Pinho, à Praça do Peixe, para provar uma bela pinga de verdasco, tipo de Amarante, que lhe chegou hoje às 10 e meia da manhã; depois, sigo para a rua de S. Bartolomeu, saber coisas acerca daquele escândalo da filha da tia do Bernardino Escacha... Porque – sabe? – eu sou muito curioso. Quer ouvir? (Canta)

 

Eu sou o curioso

que de todos maldigo;

de ninguém sou amigo;

sou um ser invejoso.

 

Sou o «eterno perguntas»,

o que passa pelas portas,

de noite, a horas mortas,

e espreita pelas portas.

 

Nas horas vagas,

sou filósofo barato;

com tino e com tacto

a S. Martinho vou.

 

ZÉ (Cantando)

Curioso,

Invejoso,

a ninguém      | Bis

queres bem   |   "

É serpente

que na gente

mansamente   | Bis

metes dente!   |   "

 

(Declamando) – Muito gosto em conhecê-lo, de longe. Vá para o Diabo, mais a sua filosofia!

MÁ LÍNGUA – Olhe lá Quem é aquela máscara?

ZÉ – Vejamos. (Entra uma mulher mascarada).

 

*

 

MÁSCARA (com dominó de fantasia, atravessando a cena) – Adeus, peludos!

ZÉ – Peluda... Será ela.

MÁ LÍNGUA – Veja se a conhece.

ZÉ – Espera! (A máscara pára) Deixa ver quem és. (A máscara consente, sem que o  Má-Língua perceba) Já sei Já sei! Podes ir. (Para Má-Língua) Sabe quem é?

MÁ LÍNGUA – Não. (Com curiosidade) Quem é? Quem é? (A máscara sai).

 

*

 

ZÉ (Cantando)

É segredo que não digo;

ficará sempre comigo;

cá no peito morrerá!

Podemos, porém, contar

Vê-lo aqui atravessar          | Bis

pro Teatro, acolá.                 |   "

 

No Teatro cá de Aveiro,

logo depois de Fevereiro,

a toda a gente pasmada,

hão-de os seus autores um dia,

ambos eles, à porfia!,         | Bis

dar a bela «Caldeirada».   |   "

 

MÁ LÍNGUA – Nesse caso, até mais ver!

ZÉ – Até sempre, seu Má Língua. Está a compreender?

MÁ LÍNGUA – Perfeitamente. A bom filósofo meia filosofia basta. Adeus! (Solene) O meu sistema...

ZÉ (Imitando-o) – ...É como o de S. Martinho: reside num copo de vinho

MÁ LÍNGUA – Nem mais, nem menos. (Sai)

 

*

 

ZÉ – Isto é que é um ponto! Ele há cada um!... (Senta-se. Ao fundo, passam duas criadas de servir, cantando).

/ 28 /

Ó bonequinha,

agora, agora;

ó bonequinha,

agora, já...

 

*

 

PANGLOSS – Good evening!

ZÉ (Erguendo-se) – Good evening, Sr. Doutor. Bem disposto, como parece, para observar o Largo dos Pacatos?

PANGLOSS – Yes! Thank you! Muita bem disposta. É este?

ZÉ – É este. Vou descrevê-lo a V. Ex.ª. O Largo dos pacatos é um recinto arborizado, aveirense de lei, que vê: a leste, a farmácia com os seus remédios; a D. Célia com a sua cirurgia; o Soares com a sua dentadura, o Manuel Moreira com os seus panos e vidros; a Misericórdia com os azulejos e o Colégio Português com a sua tabuleta escrita em pretuguês; ao Norte, o Correio com a sua inebriante água de colónia; ao Sul, a Câmara, a Domus Municipalis, com as suas eternas, mas encantadoras ruínas e higiénicas prisões, e ao Poente, o Liceu, de gloriosa memória e académica tradição.

PANGLOSS – De quem é a farmácia?

ZÉ – É do Brito. É o clube dos Papos-Secos cá do burgo. Olhe! Eles aí vêm! (Entram os três Papos-Secos)

 

*

 

DR. BISMUTO – Sou o Dr. Bismuto.

DR. DEPRECADA – Dr. Deprecada.

DR. SARDINHA – Dr. Sardinha.

 

TODOS –

Sem eira nem beira,

sem chelpa, sem nada!

 

Somos os três janotinhas,

Papos-Secos trics, trics;

cá na cidade não há

figurinos assim chics.

 

Se no Brito, à Costeira,

passa cachopa com graça,

vamos todos na esteira,

como faz o cão de caça.

 

Se alguém passa

ali, no Brito,

ouve chalaça             | Bis

de ficar aflito,             |   "

 

ZÉ (Para Pangloss) – Repare bem para estes mancebos! (Para Dr. Bismuto) – Ó Sr. Dr. Bismuto, dá-me uma calcinha branca?

DR. BISMUTO – Pois não! (Dá-lhe um cigarro.)

ZÉ – Quem dá um cigarro dá um fósforo. (Bismuto tira uma caixa de fósforos, mas esta está vazia.)

DR. BISMUTO – Não há. Recolheram à Companhia para levarem nova sobrecarga. Mas tenho isqueiro. Tome lá! (Acende-o. Entram dois fiscais)

 

*

 

FISCAIS (Cantando) –

Nós fomos chamados

aqui, à porfia,

pra serem pilhados

quem selo não queria.

 

Denúncia foi, certa:

a tal gente é esta.

Ficarão filados,

e catrafilados!

 

PANGLOSS – Quem serem vocês?

FISCAIS (Cantando)

Fieis empregados

nós somos do selo;

de rijo trabalho

nós somos modelo.

Selamos isqueiros,

selamos recibos,

selamos padeiros,

selamos os chibos;

selamos quem casa,

selamos quem morre,

selamos quem pára,

selamos quem corre.

 

PANGLOSS –

Ser capazes, ser

de selar a night!

Que cousa tão feia! | Bis

Yes! Ali right!            |   "

 

FISCAIS –

Fieis empregados

nós somos do selo;

de rijo trabalho

nós somos modelo.

Selamos o vinho,

selamos a isca,

selamos as cartas / 29 /

pró jogo da bisca.

Selamos contratos,

selamos bilhetes,

selamos as bombas,

selamos foguetes.

 

PANGLOSS –

Ser capazes, ser

de selar a night!

Que cousa tão feia! | Bis

Yes! Ali right!            "

 

1.º FISCAL – Qual dos senhores é que fez uso dum acendedor automático?

DR. BISMUTO – V. Ex.as decerto, estão equivocadas. Nós somos respeitadores da lei. Não há fósforos, mas prescindimos deles.

2.º FISCAL – Os cavalheiros façam o favor de nos acompanhar.

PANGLOSS – Peço reverencia para estes senhores. Eu ser Pangloss.

1.º FISCAL – Sinto muito que V. Ex.ª seja o Sr. Pão de Ló... Mas são ordes! Venham daí. E é já!

FISCAIS (Cantando)

A galope, é já partir,

é já, é já, é já!

Sem a menor detenção,

Olé, olé, olá!

Fica sem ter que vestir,

é já, é já, é já!

quem cair na nossa mão,

Olé, olé, olá!

 

TODOS –

A galope, é já partir,

sem a menor detenção;

Fica sem ter que vestir

quem cair na nossa (ou vossa) mão.

 

(Saem. Ouve-se fora da cena – Hip! Hip! Hip! Hurrah! – e entram dois bolistas, cada um com sua bola. Calção e camisola de futebol)

 

*

 

ZÉ – Vamos apreciar este par de galhetas.

1.º BOLISTA – És bruto, homem! És uma cavalgadura!

ZÉ – Como vê, Sr. Doutor, estes entendem-se bem.

2.º BOLISTA – Cavalgadura, porquê?

1.º BOLlSTA – Nunca tu poderás convencer-me de que a natação é superior ao futebol.

2.º BOLlSTA – Cavalgadura és tu, porque eu nunca disse isso. Sei muito bem que é no futebol que está a salvação do país.

ZÉ – Vê, Dr. Pangloss? A salvação de Portugal está na bola! Anda tudo fora dos eixos.

1.º BOLlSTA – Pois claro!

2.º BOLlSTA – As estatísticas é que falam, alto e bom som! Antes de haver futebol no nosso país, a densidade de tuberculosos era de 75 centésimos por km2; depois do futebol, essa densidade subiu, quero dizer, desceu para uma milésima. Não venhas para cá com as tuas teorias, que são falsas.

ZÉ – Vivam! Então? Temos hoje desafio?

1.º BOLlSTA – Três: um no Rossio, entre os negros de Coimbra e os amarelos da S. P. T., da Forca; o segundo, no Largo do Governo Civil: bater-se-ão como leões dos grupos fixes – os onze de Portimão e outros tantos do Social Sport da Praça do Peixe; finalmente, no Cojo, lutaram como feras Os Galitos, com o Pompeu e o Natividade à frente, e os do Beira-Mar, que são os futuros campeões de Portugal.

ZÉ – Bravíssimo!

2.º BOLlSTA – Isto, é claro, não falando dos desafios parciais que vossências estão habituados a ver: nas Cinco. Ruas, em S. Gonçalo, em S. Domingos, na Rua Larga, em todos os becos, em cima da Esquadra, etc., etc.

PANGLOSS – Yes! E acreditar V. Ex.as na eficácia do futebol?

BOLlSTAS (Cantando) –

Sem dúvida nenhuma!

É esta a salvação.

dum país moribundo,

dum país sem acção.

 

Com bola ou sem ela,

a correr, a remar,

a rasgar a farpela,    | Bis

tudo é avançar!         |   "

 

Se cá neste país

houvesse uma bola,

não estávamos hoje

a pedir uma esmola.

 

Já vêem, pois, senhores,

sem que eu seja carola,

que todo o progresso          | Bis

dimana da bola!                   |   "

 

PANGLOSS – Mim ficar sabendo tudo isso, yes!

BOLISTAS – E agora, meus senhores, saúde e futebolismo! (Cada um deles dá um pontapé no Zé)

ZÉ – Irra! Sempre há cada bruto! (Saem os bolistas)

/ 29 /

ZÉ (Olhando-os ainda) – Tendes razão! Se não fosse a vossa bola; se não fossem os vossos desafios, dentro de pouco tempo não cabíamos neste apertadíssimo globo. Muito bem! É preciso diminuir a população. É o progresso. (Para Pangloss) Não acha?

PANGLOSS – Yes! (Apontando a Câmara) Então, ali ser os Paças do Concelho?

ZÉ – Saiba V. Ex.ª que sim. Anda em reparação desde que me conheço. Aquilo são as obras de Santa Engrácia cá da terra. Depois, é também um depósito de perfumes dos mais notáveis do mundo, O chiquismo aveirense não se fornece do Martins nem do Pompeu: vem ali.

PANGLOSS – Onde?

ZÉ – À esquina da Rua da Revolução.

PANGLOSS – Da Revolução? Qual delas?

ZÉ – Sei lá! Talvez a primeira! Talvez a última. Já por lá passou?

PANGLOSS – Nada. Ainda não passar.

ZÉ – Pois não perde pela demora, É um cheirinho que consola! É uma das coisas que mais honram a nossa terra. – Esta estátua é do grande José Estêvão. Descobriram, não sei como, que foi sindicalista, e todos os anos aqui vêm os anarquistas oferecer-lhe um livro... de pedra! É uma biblioteca!

PANGLOSS – Ser muito curioso! Ali, o correio.

ZÉ – Exactamente.

PANGLOSS – E ali... o Liceu.

ZÉ – Olhe! Repare! Quer ver? O Ferreira Neves. É o nosso Fersícore.

PANGLOSS – Tem grace!

ZÉ – Agora saiu o Reitor. Que barulho que vem a fazer! Vai comprar doces ali à Lucianinha. Olhe! Conhece aquele que vem a descer os degraus?

PANGLOSS – Nô conhecer.

ZÉ – Ih, cos diabos! Lá sai um regimento de oficiais. Parece um quartel. Apre, que se os rapazes escapam das feras não se gabarão de escapar das espadas. Ele é o Vaz, ele é o Pires, ele é o Barão, ele é o Tavares... Eu sei lá! É um mundo deles!

PANGLOSS – E os estudantes?

ZÉ – Estão em férias e em festas. Não se lhes põe hoje a vista em cima. Nem no Clube!

PANGLOSS – Clube de estudantes?!

ZÉ – Sim. Ali nos Arcos, em casa do Reis & Comp.ª Lda, com águas, papéis, drogas e livros na loja e aos domicílios. Ali é que eles matam as agruras di a vida... Mas isto aqui não dá mais nada. Vamos. Quero levá-lo ao «Jardim das Delícias» Espere! Espere! Alguém se aproxima. Ah! É a Furta-Cores. É a D. Política.

PANGLOSS – Mim nô conhecer a Política portuguesa.

ZÉ – A Política portuguesa, Sr. Dr., é um símbolo. O nosso saudoso Rafael Bordalo Pinheiro eternizou-a numa admirável caricatura. A política é a Grande Forca. E ontem, e hoje e amanhã, será sempre a mesma. (Falando para fora) Podes entrar, esbelta criatura! O Sr. Dr. Pangloss já sabe quem és! (Entra D. Política)

 

*

 

D. POLÍTICA – Dr. Pangloss, seja bem-vindo; pode prestar-me relevantes serviços. Se você quisesse casar comigo...

ZÉ (Àparte) – Ó ai ó linda, se tu queres casar comigo, vai pedir-me à minha mãe...

PANGLOSS – Nô, nô, minha Senhorra. «Tarde piou», como disse ontem o Silvério de Magalhães.

D. POLÍTICA – Ah, Sr. Doutor! Se esta (indica a boca) dissesse o que esta (bate na testa) pensa... (Canta)

 

Brilhe o sol ou gire a lua,

chegue a noite ou venha o dia,

quer em casa, quer na rua,

reina em meu peito a alegria!

 

Sempre a mesma aqui me vêem,

cada vez mais descarada;

por mais voltas que me dêem,

eu não mudo mesmo nada.

 

No tempo da outra Senhora

fui também o que hoje sou,

digam todos, muito embora,

que isto tudo que mudou.

 

Se se fala com alguém,      | Bis

dizem todos, em geral:       |   "

os de cima, – «Isto vai bem!»;  | Bis

os de baixo, – «Isto vai mal»,    |   "

 

TODOS  –

Se se fala com alguém,      | Bis

dizem todos, em geral:        |   "

os de cima, – «Isto vai bem!»;   | Bis

os de baixo, – «Isto vai mal»,     |   "

 

ZÉ – Vai bem, vai! Não podia ir melhor...

PANGLOSS (Apontando para fora) – Quem ser aquele maltrapilho?

ZÉ – Não conheço! (Observando) Oh, coitado! É o Regionalismo!

PANGLOSS – Regionalismo?

ZÉ – Sim, Regionalismo: uma mayonnaise de políticos que para aí houve, Agora, é tudo regional: temos o Museu... o Banco... o Sindicato Agrícola..,

D. POLÍTICA – Pobre do meu filho! Quantum mutatus ab illo / 31 /

ZÉ – Quem te viu e quem te vê! (Entra o Regionalismo).

 

*

 

D. POLÍTICA – Como passas, amor? Não vais melhorzinho?

REGIONALISMO (Tossindo de vez em quando, canta a música das «Feiras de Santa Clara»)

 

Ai o vosso regionalismo,

regionalismo,

regionalismo,

ai quando ele aqui apar’ceu,

ai quando ele aqui apar’ceu,

toda a gente já dizia,

            já dizia

            já dizia:

A política regional morreu,

a política regional morreu!

            Cebolório,

            cebolório,

            cebolório!

 

ZÉ – Coitado!

PANGLOSS – Tome injecções!

ZÉ – Já não vai lá! Coitado! Como ele está!

REGIONALISMO (Tossindo sempre, sai cantando) –

Ai o vosso regionalismo, etc.

 

(Para caso de «bis»)

 

O Cristo foi meu padrinho,

meu padrinho,

            meu padrinho,

mas de nada me valeu,

mas de nada me valeu;

tudo foi por água abaixo,

            zai abaixo,

            zai abaixo,

a política regional morreu,

a política regional morreu!

            Cebolório,

            cebolório,

            cebolório!

 

*

 

D. POLÍTICA – Coitadito! Eu sou muito amiga dele, mas não lhe posso valer. (Chora)

ZÉ – Então! Não chore; o Sr. Dr. Pangloss vai protegê-la. E protegerá também o seu pobre filho.

D. POLÍTICA – Muito obrigada! (Entra D. Camaleão)

 

*

D. CAMALEÃO (Com fato de várias cores e trazendo um maço de jornais) – Eu é que a hei-de salvar, mamã!

D. POLÍTICA – Oh! Meu filho!

ZÉ (Àparte) – Isto é que é uma família!

PANGLOSS (Para D. Camaleão) – Quem ser?

D. CAMALEÃO – Chamo-me Camaleão, e vivo há muitos séculos. Sou filho desta Senhora, mas política é coisa que eu não tenho. Estou sempre com o governo. Ando, vivo, vegeto segundo as conveniências do estômago. Falo ao sabor da assistência e tão depressa sou monárquico, anarquista, republicano de todos matizes, sindicalista, integralista, como bolchevista dos mais exaltados. Sou a religião do futuro!

ZÉ – Sr. Doutor, que diz a esta filosofia?

PANGLOSS – Mim nô perceber gente desta, yes!

ZÉ – Há por aí tanto disto, Deus do Céu!

PANGLOSS (Para D. Política) – Very good! Mim querer casar com a menina. Yes!

ZÉ – Pois faz mal, Sr. Doutor, e desculpará. A política aveirense é muito divertida. Se o Sr. a leva, Aveiro não tem quem o faça rir. É capaz de cair numa neurastenia profunda. Isto é um «Carnaval constante» – como diz o Cristo.

PANGLOSS – Mas Pangloss ficar em Aveiro.

D. CAMALEÃO (Para D. Política) – O Dr. já bebeu água da fonte da Praça!

PANGLOSS – Pangloss naturalizar-se eveirense e ficar nesta freguesia da...

ZÉ – da Glória. A Glória é da ria para cá; a da Vera-Cruz é da ria para lá. Deste lado, o Senhor dos Passos de S. Domingos, a música velha, a velha guarda e as cebolas; do outro, o Senhor dos Passos do Carmo, a música da Patela, o Clube dos Galitos e os alhos. Agora, escolha.

PANGLOSS – Mim ficar nesta freguesia das cebolas. Pangloss não gostar de alhos.

ZÉ (Para D. Política) – Parabéns à D. Política dos ovos moles, pelo seu consórcio com o Dr. Pangloss. Temos progresso! Fine! Dancemos e cantemos! Vivam os noivos!

PANGLOSS – Fine! Very well! Ali right! (Aparecem os populares do começo do acto, uma das criadas e a máscara. Uma das sopeiras e a máscara dançam, respectivamente, com o Zé e com D. Camaleão)

 

*

 

                          ZÉ –  Por causa desta política,

                                    muita coisa tenho visto.

D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, sou tua (teu);

                                    não o digas a ninguém;

                                    Olaré, sou tua (teu),

                                    Olaré, meu bem! | Bis

/ 32 /

                          ZÉ –   Quem lá se mete, lá fica;

                                    não sei bem porque resisto.

D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.

D. POLÍTICA –          Quantos há que aí estão,

                                    que tudo a mim me devem.

D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.

         D. POLÍTICA – Sobe a carne e o feijão,

                                    não sei bem se me percebem...

D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.

 

(Em caso de bis)

 

                           ZÉ – Diz em Aveiro a crítica

                                 – disto não faço segredo...

D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.

                           ZÉ – que é um chavão em política

                                    o nosso amigo Macedo.

D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.

                           ZÉ – Em Aveiro, quando há dança,

                                    todos perdem a estribeira.

D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.

                           ZÉ – Dança o pobre, dança o rico,

                                    dança o Inspector Cerqueira.

D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.

          D. POLÍTICA – Dançam os sinos da Cambra,

                                    as árvores e os pardais;

D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.

          D. POLÍTICA – Dançam na Praça do Peixe,

                                    dançam à beira do cais.

D. POLÍTICA E ZÉ – Olaré, etc.

 

(Cai o pano – Fim do 2º Acto)

 

páginas 19 a 38

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