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N.º 12

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1971 

Homens do Porto – Barcelos e Vila da Feira

Por Roberto Vaz de Oliveira


Licenciado nas Faculdades de Direito e Letras – Secção de

Ciências Histórico-Geográficas – pela Universidade de Coimbra

 

 

Guilherme Braga – poeta

Miguel Ângelo Pereira – músico e compositor

António Cândido da Cunha – pintor

 

BREVE EXPLICAÇÃO

Dentro do programa já anunciado de querer contribuir com o meu esforço para a valorização do «museu de antiguidades» da minha terra, abeirei-me, desta vez, de três cintilantes figuras de uma constelação de valores humanos, acompanhando-as espiritualmente nas suas digressões culturais e artísticas pela Vila da Feira.

Um natural do Porto: o poeta Guilherme Braga. Os outros dois naturais de Barcelos: Miguel Ângelo Pereira (músico e compositor) e António Cândido da Cunha (pintor). 

O Porto e Barcelos uniram-se nas honras da cidadania destes dois últimos, grandes vultos da nossa história artística: se, de facto, ambos nasceram nesta cidade, à qual sempre se mantiveram fiéis nos seus sentimentos filiais, foi naquela que, como filhos adoptivos, abriram os alicerces e levantaram a estrutura das triunfais carreiras, entre as alegrias e tristezas de uma vida inteira votada à terra onde se acolheram e escolheram para última morada.

Não procuro, neste trabalho, fazer um estudo geral da vida e obra destes três artistas.

Limito-me, principalmente, a descerrar a placa evocativa das graças com que distinguiram a minha terra, fazendo-a compartilhar dos benefícios com que a natureza os privilegiou, o que também traduz uma homenagem de admiração e de respeito pelas suas memórias.

Em outros trabalhos encontrará o leitor o completo conhecimento dessa vida e obra, por mão de quem o pode fazer, com a competência especializada.

Assim se define a orientação que presidiu a este breve e despretensioso estudo.

Alonguei-me mais sobre Guilherme Braga não só por dispor, quanto a ele, de maior volume de notícias, mas ainda por exigência da minha sensibilidade, bem compreensível por ele ter sido um íntimo desta casa das Ribas onde nasci e moro, intimidade que se criou e desenvolveu na grande amizade que o prendeu a meus avós paternos, a quem, pelo seu casamento, ficou ligado por laços de sangue.

Sinto-me feliz pela oportunidade que tenho de chamar a atenção para a memória destes três senhores de nobre linhagem de espírito, lamentando que, por falta de forças, não os possa erguer, com os meus próprios braços, à altura que merecem: estou confiado em que outros me ajudarão.

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Guilherme Braga (com dedicatória a meu avô paterno - Dr. Joaquim Vaz)

Bom será que a Excelentíssima Câmara Municipal do Porto, à semelhança do que já fez com Guilherme Braga e Miguel Ângelo Pereira, homenageie António Cândido da Cunha, lembrando-o em rua ou praça da sua urbe e que outro tanto faça a de Barcelos quanto a este, do mesmo modo como já se desobrigou para com Miguel Ângelo Pereira.

Na «Exposição Histórica do Porto (Junho de 1934) na Sala B – entre os «Portuenses Ilustres» figurava, com o n.º 44, o nome de Guilherme Braga, (1846-1874) com sua fotografia, anotado como poeta notabilíssimo: foi expositor Dr. Pedro Vitorino.

Nos três quadros com os nomes de Portuenses ilustres, o do poeta também figurava «Nas Letras – Século XIX» – (Catálogo da exposição organizado por / 52 / aquele Pedro Vitorino e A. de Magalhães Bastos a fls., respectivamente, 17 e 20).

É necessário que se derrame mais luz sobre tantos artistas que, se não estão totalmente esquecidos, não são lembrados como merecem e que, sobre eles e as suas obras, se chame a atenção do público em geral e em especial da juventude e dos cultores da arte.

Neste momento e pela natureza deste trabalho, cabe a vez a um poeta, a um músico-compositor e a um pintor.

GUILHERME BRAGA

Poeta

NA VILA DA FEIRA

CASA DAS RIBAS

«Leitor amigo, lê-o que terás feito ajoelhar a tua alma ante um dos maiores e mais infelizes poetas de Portugal».

(Albino Forjaz de Sampaio in prefácio da 3.ª edição de «Heras e Violetas»)

Guilherme Braga nasceu no Porto, em 22 de Março de 1845, onde faleceu a 26 de Julho de 1874.

Era o filho mais novo de Alexandre José da Silva Braga e de sua mulher D. Maria Emília de Carvalho Braga e irmão do célebre advogado e tribuno Dr. Alexandre Braga pai.

O seu nome deu glória às letras portuguesas.

A ele se referiram, com entusiástico louvor e apreciável carinho, homens eminentes do nosso país.

Alberto Pimentel (a quem Guilherme Braga chamava – o poeta das minhas saudades) em «Homens e datas», considera-o «o maior poeta que tem honrado a literatura portuguesa depois da morte de Soares de Passos»; Silva Pinto julgou-o – «o maior de todos nós» e o melhor poeta do seu tempo»; Junqueiro chamou-o – «o maior poeta de combate em Portugal» e Albino Forjaz de Sampaio, no prefácio à 3.ª edição de Heras e Violetas, nomeou-o o «lírico enternecido, suave e bom».

Por sua vez, Sampaio Bruno, no preâmbulo ao «Bispo» – 1895, exalta-o dizendo que foi «um poeta lírico notabilíssimo duma sincera emotividade, admirável nessa sublime elegia – Cadáveres – que é uma das raras páginas supremas, definitivas em nossa moderna literatura», no que foi acompanhado calorosa e saudosamente por Bulhão Pato, em «Sob os Ciprestes», como adiante será referido.

Herculano e Castilho também o nobilitaram.

A propósito, Pedro de Lima, no seu estudo sobre Guilherme Braga, com que abre a segunda edição da tradução para português, feita pelo poeta, da «Atala» de Chateaubriand, diz a fls. XXX e XXXI: «Explica-se por isto, esta tradução a que o nosso Herculano, vi uma carta que o editor possui, considera igual ao original e da qual também Castilho dizia ser admirável. Mas Herculano não só elogiava por aquela forma a incomparável tradução do «Atala», mas ainda afirmava também, na mesma carta, ser Guilherme Braga o poeta mais distinto desses tempos».

Pedro de Lima, naquele seu estudo, lembra realçando o valor do tradutor: «muitas vezes este trabalho tão completo foi feito junto da caixa do tipo; à medida que o compositor o ia reproduzindo ali mesmo e sucessivamente. Outras em casa de seu irmão, depois de ter ali jantado e estarem ambos conversando». / 53 /

Herculano e Castilho também chamaram admiráveis os versos que Guilherme Braga escreveu em francês para oferecer a Victor Hugo (cit. estudo de Pedro de Lima).

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O Imperador Pedro lI, do Brasil, foi em 2 de Março de 1872 «A S. Lázaro visitar o Romancista Camilo Castelo Branco e o Poeta Guilherme Braga» (Alberto Moreira, in «O Tripeiro» número 6 de Outubro de 1856 – fls. 178).

Também o aplaudiram Camilo, Castelar e muitos outros.

Fidelino de Figueiredo, na sua «História da Literatura Realista», embora não alinhe inteiramente com todos aqueles críticos, não deixa de o encarar como poeta de «verdadeira inspiração», considerando-o um poeta político muito prejudicado pela sua «inteira subordinação às modas da política e da literatura».

Guilherme Braga

Em nota, destaca, fazendo-lhe justiça:

«Damos a seguir dois exemplos que mostram como em G. Braga se encontram algumas imagens e algumas maneiras de expressão poética depois aperfeiçoadas pelos poetas subsequentes:

... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

E passar, como a sombra da andorinha,

Sobre o cristal dum lago

«Heras e Violetas», pág. 80)

... ... ... ... ... ... ... ... ...

E leve, como a sombra sobre a água

(Antero de Quental, «Zara»)

...         ...         ...         ..,         ...         ...

Ouvi, parei, tremi

«Heras e Violetas», pág. 36)

... ... ... ... ... ... ... ... ...

Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa

(G. Junqueiro, «A Lágrima»)

Foi autor de notáveis versos: de crítica e de combate («Falsos Apóstolos – Heresia» – Junho de 1871 e «Bispo – Nova heresia» – 12 de Novembro de 1873, com prefácio de Sampaio Bruno); românticos de um puro e belo lirismo (Heras e Violetas – 1869); de humorismo (o Mal da Delfina – paródia à Delfina do Mal – de Tomás Ribeiro – Abril de 1869); de exaltação patriótica (Ecos de Aljubarrota –10 de Outubro de 1868). Além de um poemeto «À memória de José Cardoso Vieira de Castro», publicado em 1872, juntamente com outro de Vieira de Andrade, quando se tomou conhecimento do seu falecimento no degredo, deixou muitos versos dispersos, em parte reunidos em volume, (em que se incluem os das Rosas e Ortigas) por o Dr. Rodrigo Veloso, em 1898.

Foi, ainda, o autor da tradução, para português, do célebre – «Atala», de Chateaubriand: aos 15 anos traduzia a poesia de Victor Hugo – os pobres – «trezentos e tantos endecassílabos impecáveis».

Alguém atribuiu a 1850, a data dos seus primeiros versos «Flores sobre um túmulo».

Tornaram-se célebres os versos que recitou no teatro de S. João do Porto, em 9 de Julho de 1872, que, galvanizando toda a assistência em delírio, emocionou, até às lágrimas, a Rainha D. Maria Pia e impressionou o Rei D. Luís de tal modo que o condecorou com o hábito de S. Tiago fazendo-o sentar, mais tarde, à sua mesa no palácio de Sintra.

Em 1864 compôs a letra para o «Hino do Porto», da autoria do distinto compositor João Nepomuceno Medina Paiva («O Tripeiro» – Julho de 1964). / 54 /

A sua pena também brilhou na prosa, mesmo como jornalista, acompanhando os fulgores do seu génio, deixando escritos, de grande sabor crítico e literário, espalhados em jornais e revistas.

Podem-se destacar, entre eles, o estudo sobre Júlio Diniz datado de Março de 1872 e publicado num jornal brasileiro (O «Tripeiro» – Dezembro de 1965, fls. 359), onde o aproxima a Camilo nos seguintes termos:

«Aquelas duas fontes, aureoladas pelo génio, estão já consagradas, uma pela morte, e outra pelo sofrimento. A providência não costuma deixar nuas as frontes privilegiadas; o arcanjo do talento sabe a que espinhais esta senda lhe é lícito ir colher um diadema para laurear os infelizes que o adoram».

E na verdade, assim aconteceu com ele: conquistou «cátedra», entre os maiores homens de letras do seu tempo.

É admirável o seu artigo sobre o «Castelo da Feira» em «Vespas e Mariposas», publicação trimestral, como brinde aos assinantes do Diário da Tarde do Porto, número 1, páginas 16.

De entre as publicações em que colaborou podemos citar, além de «Vespas e Mariposas»: – Grinalda, Miscelânea Literária, Civilizador, Porto Ilustrado, Facho Literário, Correio de Portugal, Porto Elegante, Mocidade, Gazeta Democrática, Clamor do Povo, Diário da Tarde, Distrito de Aveiro, Luta Nacional.

O conjunto da sua obra é um permanente abraço às ideias liberais que defendeu com labaredas de génio.

Muitos dos seus versos, alguns inéditos, foram publicados nos jornais da Feira: «Correio da Feira», «Commércio da Feira» e «Notícias da Feira».

Guilherme Braga ainda se notabilizou na epistolografia, onde vivia com entusiasmo as suas alegrias e as suas dores, de mistura com fino humorismo, por vezes com largas tiradas sarcásticas, o que está bem testemunhado nas cartas dirigidas a Bulhão Pato poucos meses antes de morrer.

Também falava e conversava com facilidade e felicidade de termos, encantando a elegância com que o fazia e deixando gratas recordações entre os que com ele se reuniam nas tertúlias da tabacaria Havanesa, ao cimo da rua de Santo António e da livraria Moe, fronteira à Casa do Lino, à esquina dos Loios.

Entre eles, contavam-se Júlio Diniz e os advogados Dr. António – Lúcio Tavares Crespo, seu irmão Dr. Alexandre Braga, Dr. Guilherme Guedes de Amorim, Dr. Flórido Teles de Menezes Vasconcelos e, por vezes, Ramalho Ortigão (José Saraiva – À porta do Lino – fls. 127 e 181).

Revelou-se um apreciável caricaturista em vários desenhos, alguns ainda inéditos, como o que se reproduz alusivo a meu tio, tenente-coronel Domingos Eugénio da Silva Canedo.

Outro, que adiante merecerá referência especial, foi reproduzido por Alberto Moreira no seu artigo «O Carnaval de Outrora» («O Tripeiro», Fevereiro de 1960).

Alberto Moreira, em «O Tripeiro» de Julho de 1947, a páginas 54, informou que estava para breve a publicação de duas publicações, reunindo em volume produções que coligira de Guilherme Braga, uma de «Poemas Inéditos e Dispersos» prefaciado pela sobrinha do poeta – D. Maria Emília Braga e outra de «Cartas Intimas, Literárias e de Combate».

Também disse, em «O Tripeiro» de Dezembro de 1965, que o poeta «Se empenhava num largo estudo à excelsa personalidade literária de Gomes Coelho (Júlio Diniz»).

Infelizmente nenhuma destas obras foi dada à publicidade.

Melhor sorte teve a já referida iniciativa do Dr. Rodrigo Veloso, em 1898, reunindo em volume (livro raro pois teve a exígua tiragem de 100 exemplares) muitos poemas de Guilherme Braga, não abrangidos nas «Heras e Violetas», onde se encontram os que formaram as «Rosas e Ortigas» – «copiados de folheto impresso sem indicação de lugar mas talvez na Vila da Feira».

Este livro está valorizado com muitas notas explicativas.

As «Rosas e Ortigas» foram publicadas, em forma de folhetim, no aludido jornal «Commércio da Feira».

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Caricatura do tenente-coronel Domingos Eugénio da Silva Canedo, por Guilherme Braga.

Quando faleceu tinha outras obras, em preparação, se não concluídas, como «Lavas» e «Missionários».

Daquela chegou a anunciar-se a publicação conhecendo-se desta, apenas, alguns trechos.

Há ainda, notícia de ter composto «Memórias do meu tempo», que não chegaram a ser publicadas (cit. «O Tripeiro» – de Julho de 1947, fls. 51).

Entre as publicações dedicadas à obra e personalidade de Guilherme Braga, destaca-se «O Tripeiro», sobretudo com os interessantes e valiosos artigos de Alberto Moreira.

Em 1890, Deolindo de Castro, Heliodoro Salgado, Teixeira de Brito e Delfim Gomes, promoveram a publicação, em opúsculo, dos seus artigos que compõem a «Homenagem aos mortos – Guilherme Braga»(Encyclopédia Social – Sciencias – Política – Artes – Letras III) / 56 / – impressa em Coimbra, na tipografia União, comemorando o 16.º ano do seu falecimento.

A edição, que constou apenas de vinte exemplares, numerados e rubricados pelo director, aquele Delfim Gomes, foi «offertada aos excelentissimos parentes e a alguns dos mais considerados veneradores do illustre morto que neste opúsculo é glorificado».

O exemplar que tenho é o n.º 1, dedicado ao irmão, o Dr. Alexandre Braga.

Além deste foram distinguidos outros membros da família, como Alexandre Braga filho: entre os demais contemplados contam-se Heliodoro Salgado, Dr. Teófilo Braga, José Pereira Sampaio (Bruno), Silva Pinto, Bulhão Pato, Dr. António Xavier Rodrigues Cordeiro, Dr. João Penha, conselheiro Manuel Pinheiro Chagas, Emídio de Oliveira e Barão de Paçô Vieira (Alfredo).

Guilherme Braga, em 1868, foi nomeado distribuidor da comarca do Porto, depois de um concurso brilhante, como informa o citado Alberto Moreira em «O Tripeiro» de Julho de 1947.

Foi um dos fundadores da Associação de Professores e Homens de Letras, que teve a sua sessão inaugurar em 12 de Fevereiro de 1870.

De igual modo foi um dos fundadores do primeiro jornal republicano do Porto, Gazeta Democrática (1870).

A sua grande admiração por Hugo, cuja obra muito o influenciou, levou-o a oferecer-lhe o primeiro número desse jornal, o que mereceu, em resposta, uma carta muito carinhosa cujo texto está reproduzido em «O Tripeiro» de Julho de 1947.

Barbosa Gama, que foi distinto director do colégio do seu nome, na rua das Oliveiras, do Porto, que frequentei durante alguns anos, publicou em o «Progresso Académico» – Ano I, número 1, de 31 de Janeiro de 1905, folhas 6, a versão, em francês, da poesia de Guilherme Braga – A morte de um filho.

A obra de Guilherme Braga foi muito discutida, sobretudo no campo religioso, mas o que nunca esteve em dúvida foi o seu alto valor literário, sobretudo como poeta e o vigor e a pujança da sua inteligência que se extrema desde a crítica mordaz e impiedosa até uma suave e enternecedora candura.

Para uns foi um anticatólico, mesmo anticristão, se não ateu; para outros apenas um inconformado com abusos que não tolerava, um revoltado.

Agia, por vezes em desafronto, dominado por um meio que a muitos conduziu, contagiosamente, à irreverência em época em que a controvérsia política e social tomava, geralmente, uma forma apaixonada e violenta, o que encontrava, clima propício no seu temperamento arrebatado e impulsivo, com reacções que culminavam em exageros que julgo não correspondiam aos seus melhores e mais íntimos sentimentos.

Mas, não nutria sentimentos anti-religiosos, como evidenciou em muitos dos seus versos e actos da sua vida.

Assim o entendeu Alberto Pimentel, no seu já citado livro «Homens e datas»: «Nunca o autor se revoltou contra Deus; atacou, simplesmente o fanatismo que é a negação de Deus. A sua alma era boa, carinhosa e branda. O seu talento é que era torrencial como as cachoeiras do Niagara e muitas vezes arrastava-o nos próprios ímpetos».

Em artigo assinado por P. S. em «O Tripeiro» de Fevereiro de 1927 também se alinha pelo mesmo critério: «nos seus versos era violento contra os falsos ministros da religião».

A confirmar transcrevem-se algumas passagens dos seus escritos.
 

                8 de Outubro de 1860

 

Diante dum crucifixo

...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...

Quando tu, ermo e só, pelo mundo passaste,

A semente do bem caiu de tua mão;

Caiu, e a nossos pés, do arbusto que plantaste,

O vento espalha agora os frutos pelo chão:

...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...

 

São esses, pois, ó Cristo, os Lázaros que esperam.

Esse em cujos céus a aurora não sorri,

E a quem tu, devassando a noite a que desceram,

Tens de bradar bem alto: «Ó Lázaros surgi!»

 

Vem dar-lhes uma esp'rança. O abismo é tenebroso,

E a sombra envolve tudo àquele que desceu.

Só tu podes erguer o véu misterioso:

Vem, pois, ergue-lo, ó Cristo, e mostra-lhes o céu!

                     («Heras e Violetas», 1.ª edição, fls. 75)

 

1860-1862

Em data que corresponde ao 3.º ano do jornal de versos «A Grinalda», escreveu a seguinte poesia / 57 / que transcrevo na íntegra, não só pela sua beleza, mas para melhor se compreender a extensão e o verdadeiro significado da sua última quadra.
 

                    SÓ DEUS

Quem manda ao peregrino, afadigado

Das lides da romagem,

Um perfume da pátria, misturado

Doutros climas na aragem?

 

Quem lhe diz «Lá te espera o teu albergue

E os filhinhos e a esposa

Que a Deus por ti as mãos trémulas ergue

Em prece fervorosa?»

 

Quem ao nauta, perdido entre a procela,

Longe nos horizontes,

Mostra do raio à luz, rápida e bela,

Da sua aldeia os montes?

 

Quem lhe diz «No Senhor tem fé e espera

Que não tarda a bonança,

E sempre, mais e mais, nos seios gera

Nova, fecunda esperança?»

 

Quem aos órfãos do mundo abandonados,

Envia docemente,

Para aquecer-lhe os membros congelados,

Do sol um raio ardente?

 

Quem à viúva infeliz enxuga o pranto

Co’a mão da caridade

E lhe leva um consolo sacrossanto

Às trevas da orfandade?

 

Ao cativo, que chora entre as algemas

De infame tirania,

Quem diz «Bem cedo há-de raiar, não temas,

Da liberdade o dia?»

 

Vãs perguntas: Seu nome não se esconde,

Em tudo está presente...

Não ouves uma voz que te responde:

«É Deus! é Deus somente?!»

(Poesias reunidas por Dr. Rodrigo Veloso – fls. 113)

 

27 de Janeiro de 1866

AVÉ, MARIA, GRATlA PLENA

De tantos sonhos que abranjo

Tu és o sonho melhor;

Livro escrito por um anjo

E que eu sei todo de cor.

...   ...   ...   ...   ...   ...

Estátua, que te levantas

Entre as mais, cheia de luz,

Como entre a corte das santas

Maria, a mãe de Jesus!

 

Haste, que toda te infloras

Quando eu te digo, a tremer,

Que não tenho outras auroras

Mais que os teus olhos, mulher!

... ... ... ... ... ... ...

Quando eu, de sombras coberto,

Vou sentar-me ao lado teu,

Como estou de ti mais perto,

Fico mais perto do céu!...

      («Heras e Violetas», 1.ª edição – fls. 191)

 

        4 de Março de 1866

AO SENHOR JOÃO JOSÉ TEIXEIRA GUIMARÃES

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...   ... ... ...   ... ... ...

Que importa esse cair das horas uma a uma

Se vai nelas envolto o gérmen doutra vida?

Que importa que ante nós s'eleve a intensa bruma

Se a luz do sol do bem a deixa dissolvida!

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Isto para dizer-lhe: «A Deus que o fez tão nobre

Agradeça prostrado a alma que tudo admira...

E aceite sem orgulho a prenda deste pobre

Que só no coração pode encontrar a Iira

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...   ... ... ...   ... ... ...

                Quadras feitas a seu futuro sogro no
                 aniversário do seu natalício.

            (cit. ob. do Dr. Rodrigo Veloso, fls. 85)

 

Março 1872

No aludido artigo dedicado à memória de Júlio Diniz exclama: «Não sei, não quero, nem procuro saber a quem pertenceu na terra o pó que ali descansa – creio na imortalidade, devo crer na justiça divina. / 58 /

A alma que animava aquele pó, sopro que passou, cintilação que se apagou, perfume que se esvaiu no espaço, pertence a Deus. A Deus cumpre julgá-la». 

            Novembro de 1872

                     AMÉLIA

...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   .

Cedo a luz voltará. Tem fé... e espera!

A esp'rança nos anima, a fé nos salva!

Cedo aí; cedo verás, no azul da esfera,

Subir, humilde e bela, a estrela d'alma!

 

Assim nossa alma, a flama sacrossanta,

Da matéria imortal foge esquecida,

Rasga as névoas da morte, e se alevanta,

Luminosa, ascendendo à eterna vida!

     (Versos coligidos por Dr. Rodrigo Veloso, fls. 74)

 

 

              7 de Março de 1874

(VERSOS PARA BULHÃO PATO)

...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...  

Sou moço ainda e sinto-me acurvado

Sob um peso tremendo. O condenado

Apela para Deus:

Mas Deus, o Deus magnânimo e sublime,

Não quer pesar as provas do meu crime,

Nem ouve os rogos meus

...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...  

 

Morrer. Do abismo à beira eu paro e cismo

Do pavoroso seio dum abismo

Nas trevas glaciais,

E quase invejo a inquebrantável calma

Dos que dormem sem vez, sem luz, sem alma

ossadas desiguais

 

Uma manifestação, bem expressa, da sua grande crença em Deus, deixou-a nas seguintes quadras, sem data, publicadas a pág. 224 do 1.º ano do Museu ilustrado (Porto, 1878).

          AO ROMPER DA MANHÃ

Vós, ateus, que descreis mesmo daquele

Que para nos salvar morreu na cruz,

Vós, que não podeis crer que seja ele

Quem a vida nos dá, quem nos dá luz!

 

Vós que viveis na intensa escuridade

Das sombras a que Deus vos arrojou,

Vinde ver desta cena a majestade

Que a mão dele ante nós desenrolou

 

Vinde ouvir estes sons, esta harmonia,

Vinde ver dos espaços na amplidão

As torrentes de luz que esparge o dia

Quando rasga da noite a escuridão.

 

Vinde ver o que encerra esta existência,

A luz, a terra, o mar, o azul dos céus,

E dizei-me depois se há Providência,

E dizei-me depois se existe Deus.

 

(cit. ob. do Dr. Rodrigo Veloso, fls. 25 e 220)
 

Guilherme Braga, ao escolher a «Atala» de Chateaubriand para uma tradução feliz («igual ao original» como a definiu Herculano, e «admirável» como a capitulou Castilho, como já referimos) – deu uma prova de marcada inclinação do seu espírito religioso, em plena afirmação da sua crença em Deus e em Cristo.

Assim, no seu prólogo a esta tradução – feita despreocupadamente em jactos de talento, afirma com desassombro, o que bem merece ser evidenciado:

«A Revolução fora grandiosa, sublime, exuberante de princípios reorganizadores; mas a razão humana, desvairada por ela, quis alar-se a alturas defesas; quis levar muito longe de mais a audácia de que se armara na luta; e, por isso que se via liberta de todas as escravidões de passado, quis também libertar-se do único jugo que lhe não era dado sacudir, do jugo de Deus. Viu arrasada a Bastilha, destruídos os tronos, desfeitos os altares, incendiadas as igrejas, desmoronados os palácios, a realeza sem prestígio, a nobreza sem privilégios, o clero sem respeito, e pensou que lhe era lícito, ao atravessar triunfante por cima de todos esses destroços, ao levantar-se, formidável, dentro do acervo de todas essas ruínas, escalar e firmemente, rasgar como um véu todos os mistérios divinos, e, abeirando-se do escuro fantasma, que o passado denominava Deus, derrubá-lo, come quem derruba uma estátua e dizer-lhe, como quem fala a um morto «Vai-te; eu não preciso de ti».

Tentou o sacrilégio, arrojou-se à impiedade, e caiu. Caiu como Prometeu, aniquilada, vencida, desesperada, sobre o eterno rochedo, onde veio aguilhoá-la a vingança divina!

A Providência desculpara-lhe os erros, mas não pôde perdoar-lhe esse crime. Desculpara-lhe os crimes, mas não pôde perdoar-lhe aquele erro. Erro, porque trazia consigo a morte moral da sociedade; crime, porque seria o assassino da alma. / 59 /

A Revolução fizera rolar na guilhotina muitas cabeças inocentes, e muitas cabeças culpadas; fora cruel, carniceira, feroz, como uma bacante embriagada com sangue, mas resgatara a humanidade do lento suplício da servidão, realizando por meio duma energia atroz, a ideia que Jesus enunciara por meio de uma brandura santa. A cratera, ameaçadora e terrível, não só desentranhava em chamas, em lava que tudo destruía; também dava luz!

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Sobreveio a anarquia, espécie de contra-revolução feita pelo destino. A literatura, como sempre, copiava, pois a sua época. Era indecorosa, desonesta, infame, como as cortesãs que se dessedentavam com sangue, de bruços no tablado da guilhotina; era cínica, blasfema, hedionda. A filosofia deturpava as ideias de Voltaire, dos enciclopedistas. O romance era uma obscenidade. A poesia assobiava estribilhos eróticos no lupanar e na taberna. O drama punha em movimento as máximas torpezas, ou em acção as máximas impiedades.

Nestas circunstâncias, Chateaubriand quis opor aos desvairamentos da razão humana a suave concentração da filosofia do cristianismo, e concebeu um livro admirável, ungido de crenças fervorosas, de bálsamos que pareciam dimanar do céu para cicatrizar uma úlcera enorme. A última parte desse livro, inteiramente consagrado à poética do cristianismo, depois de tratar da harmonia existente entre a religião e as cenas da natureza, tornando consoantes com uma e outra as paixões do coração humano, termina por um episódio mavioso, inspirado ao ilustre escritor pela sua viagem à América. Esse episódio é a Atala.»

Guilherme Braga, sem abdicar do seu ideal político, afirma claramente as suas convicções religiosas, como crente que era – o que na época, por certo, desgostou a alguns que mais o admiravam como escudo político do que pelo seu talento e valor.

Ontem, como hoje.

Tive o cuidado de mencionar as datas em que, respectivamente, foram escritas as referidas poesias e trechos, para mostrar que a sua fé na religião católica foi uma constante toda a sua vida: quer antes, quer depois de escrever os «Falsos Apóstolos» e «O Bispo».

Guilherme Braga ligou a sua vida à Vila da Feira e nomeadamente à Casa das Ribas, onde passou muitos dias da sua vida em íntima e amiga convivência com os seus proprietários, a família Vaz de Oliveira, primos de sua mulher.

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D. Maria Adelaide Teixeira Guimarães, à direita, e a sua irmã D. Francisca Estefânia Teixeira Guimarães (com oferecimento de D. Maria de Adelaide a minha bisavó materna D. Henriqueta Augusta Bandeira de Castro, 27-3-1866).

Em 1 de Maio de 1866 casou, na igreja de S. Nicolau da Feira, com D. Maria Adelaide Teixeira Guimarães de quem se enamorara dois anos antes, senhora de uma beleza notável «a formosa da Vila da Feira», de uma palidez de pérola, de olhos e cabelos negros, como a viu Alberto Pimentel no seu referido livro «Homens e Datas».

Nasceu na Vila da Feira a 14 de Março de 1846: era filha de João José Teixeira Guimarães, que em 1835 foi eleito capitão da segunda companhia dos voluntários da Feira e de sua mulher D. Maria Rosa da Luz, neta paterna de outro João José Teixeira Guimarães e de sua mulher D. Maria Rosa de Abreu, que eram os avós paternos de minha avó paterna D. Libânia Amélia Vaz de Almeida Teixeira, mulher de meu avô – Dr. Joaquim Vaz de Oliveira, primos co-irmãos da D. Maria Adelaide.

Foi um casamento de amor que se manteve em constante noivado durante toda a vida, que tão curta foi para ambos, pois ela sobreviveu-lhe pouco mais de dois meses. / 60 /

Passemos inteira a vida,

A vida que é tão veloz,

Eu sempre teu, filha querida,

Tu sempre ao meu peito unida

E o nosso filho entre nós!

 

(Guilherme Braga Júnior, por Alberto Moreira – «O Tripeiro», Junho de
1957 – Ano XIII, n.º 2, fls. 52)

Quando, pouco tempo antes de morrer, em 7 de Março de 1874, escrevia da casa das Ribas – para Bulhão Pato, exclamava em arrebatamento de uma grande paixão:

«Eu sou por ela o que sou por meu filho – um doido!».

A ela e aos filhos dedicou a 2.ª parte das «Heras e Violetas». 

A primeira poesia de Guilherme Braga, relacionada com a minha família foi datada, de S. Martinho da Barca, concelho da Maia, em 20 de Setembro de 1864: intitula-se «O Moinho» e foi dedicada a meu avô paterno conforme está publicado na 1.ª edição de «Heras e Violetas», fls. 211, «Ao meu amigo, o Doutor Joaquim Vaz de Oliveira».

Onde a corrente é mais ruidosa e alta,

Perto dum olival ermo e sombrio,

Um moinho a sombra estende sobre o rio,

Que pelos vãos da roda espuma e salta

...         ...         ...         ...         ...»

Alberto Moreira referindo-se ao poeta e a esta poesia, no «O Tripeiro» de Abril de 1965, lembra «à geração presente o talentoso poeta que revolucionou a poesia do seu tempo; que, por vezes, se evidenciou impressionista e naturalista e que nos cantou «O Moinho», dando um cunho social e humano à laboriosa acção do obscuro moleiro que, acrisolado no amor da família, «sufocava a pobreza com a fadiga» e para quem o Poeta reivindicava, «um lugar à mesa do progresso»!

«...       .,.         ...         ...         ...         ...         ...

Deus manda a todos nós um seu reflexo

Esta família, tão obscura e pobre

Que ao pé dum jornaleiro se descobre,

Tem um lugar à mesa do progresso!»

 

Tenho todas as quadras, que compõem a poesia, escritas pelo próprio punho de Guilherme Braga.

São em número de nove e, por isso, com mais uma além das que o poeta publicou em «Heras e Violetas», naquela sua primeira edição – de 1869. Como se pode verificar pela fotocópia, que se reproduz neste trabalho, aquela quadra suprimida, interpõe-se entre a sexta e a sétima.

Eu quando passo ali, e ouço lá dentro

A voz rouca do moinho e a do moleiro

Sem me importar c'os saltos do rafeiro

Que a ladrar me precede, as portas entro.

 

Não sei explicar a razão desta omissão; por qualquer motivo desagradou ao poeta ou houve lapso na impressão.

É curioso notar que, naquele manuscrito, trata meu avô com maior intimidade (ao meu amigo Joaquim Vaz d'Oliveira) e não menciona o dia e mês em que aquela poesia foi escrita, referindo apenas o ano com a indicação «escrito em S. Mart.º de Barca».

Em 1866, datado de Março, escreveu na Vila da Feira uma longa poesia intitulada «Cousas vistas através das folhas». / 61 /

...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...

Morde-se a rosa d'inveja

Quando, ao cortar-lhe o botão,

Lhe diz: – Ignoro qual seja

Mais linda; a rosa ou a mão?

...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...

(Cit. «Heras e Violetas», 1.ª edição, pág. 193)

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D. Maria Rosa da Luz, mãe da D. Maria Adelaide e de Francisca Estefânia.

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Capela da Casa das Ribas – D. Maria Adelaide (a da extrema direita do primeiro plano, defronte da porta da capela) junto a sua irmã D. Francisca Estefânia – com a família Vaz de Oliveira. Princípios da década de 60.
 

Na véspera do seu casamento, em 30 de Abril de 1866 e já datada da Vila da Feira, fez uma encantadora poesia «À pequena Luísa», de nome Luísa Vaz de Oliveira, irmã de meu pai, quando ela completava 3 anos, publicada em «Heras e Violetas», 1.ª edição, fls. 205.

 

Dum olhar à luz profunda,

– Olhar da mãe que te adora

Tu lanças de ti três raios:

Beleza, inocência, aurora.

 

A aurora é o brilho da infância,

Luz que toda te alumia;

A beleza é o dia externo,

A inocência o interno dia!

... ... ... ... ... ... ... ...

Tens ninho onde tudo aquece

Véus onde é tudo agasalho

Em ti cada riso é um astro!

Cada lágrima um orvalho

... ... ... ... ... ... ... ...

Quando o arcanjo a Deus o mostra,

Por trás dele a mãe se humilha:

Ele folga por guardar-te,

Ela, porque és sua filha!

... ... ... ... ... ... ... ...

 

Do mesmo ano conheço ainda as poesias – «Monstros e Reis», datada da Vila da Feira em 4 de Julho e «Esquecendo, esquecidos» de 16 de Julho, publicados na cit. «Heras e Violetas» a págs., respectivamente, 233 e 241. Destes últimos extracto a seguinte quadra:

 

Vai mais viver neste exílio

Donde nós vemos os céus,

Tanto mais longe dos homens

Quanto mais perto de Deus!

/ 62 /

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/ 63 /

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Neste mês de Julho, ao pôr do sol do dia 24 e às 10 horas da noite de 25, junto às ruínas do Castelo da Feira, Guilherme Braga escreveu a célebre poesia «Cadáveres», dedicada ao referido Pedro Lima / 64 / lembrando, com profunda saudade, a morte dos seus, «soberbo pórtico levantado à necrópole de uma família», como disse Xavier Cordeiro, «grito de alma de um grande génio» como a classificou Alberto Moreira. Para Sampaio Bruno, como já dissemos, é «uma das raras páginas supremas definitivas em nossa moderna literatura (preâmbulo de «O Bispo», em 1895, fls. X).

 

Ó Pedro, eu vou mostrar-te os mortos da família,

Meu pai e minha mãe, Victor, Maria Emília,

Esses pedaços d'alma ocultos sob o chão.

...         ...         ...         ...         ...         ...         ...         ...

O céu que me rodeia é um misto de dois céus...

Vem um deles do amor: o outro dos mausoléus!

Naquele há toda a luz que a esperança me renova;

Tem este a escuridão sinistra duma cova!

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

      (cit. ob. do Dr. Rodrigo Veloso – pág. 32)

Pedro Lima, no já falado prólogo à segunda edição da tradução de «Atala» dá-nos mais informes sobre a actividade poética de Guilherme Braga, com especial menção, à poesia.

«Cadáveres» (quarta carta que lhe dedicou) – «Enquanto nos dispersávamos, como aves que se recolhem ao seu país para gozarem ali da serenidade que não tiveram na terra da arribação, um de nós, que não ficava, afastava-se, contudo, feliz e glorioso, por ir sob as árvores da Vila da Feira gozar, junto de uma noiva, pura e perfumada como um lírio castíssimo, a deliciosa lua de mel». Era este o nosso poeta, que cheio de ebriedade do mais puro e sincero amor, unira ao seu radioso destino mais uma estrela palpitante e formosa, que lhe encimasse o diadema. Escrevia-mo ele, o seu santo e elevado entusiasmo, em cartas impregnadas das vibrações mais sonoras do seu coração, e que são penhores da sua generosa confiança na minha pessoa, confiança que nunca diminuiu.

E essas cartas manifestam bem como aquela grande alma era cheia de sol. A primeira escrita ainda no Porto continha apenas estas comunicativas palavras:

        Pedro:

Estou casado

19 de Maio

Teu

                        Guilherme

 

A segunda, em resposta a uma interrogação minha, escrita no centro de uma folha de papel em branco e assinada, resume-se no seguinte:

Pedro:

«Toujours la même tige avec une autre fleur»

Victor Hugo

 

À interrogação respondo: Felicidade!

Às admirações, admira-as!

O esplendor deslumbra-me I

 

Vila da Feira, 22 de Maio de 1866

Ao lado da minha mulher

Teu Guilherme

Algumas dessas cartas representam apreciações literárias valiosas, sobre diversos livros que lhe ofereciam, ou sobre alguns trabalhos que empreendia, como o dar ao público um romance, que ele me dizia então ter sido inspirado pelas ruínas do velho Castelo da Feira. A terceira carta que me escreveu, é datada de 26 de Junho de 1866 e dum valor puramente individual e que não importa a ninguém conhecer. A quarta reproduzo-a, para mostrar aos que lerem este esboço biográfico, quanto foi intima a afeição que eu e o poeta nos conservávamos, em condições de existência tão dissemelhantes, em que ele dominado por um amor extremosíssimo e enlevado não esquecia nunca o seu velho, sincero e leal amigo.

Aí vai a carta:

Pedro:

Nas quatro folhas de papel que vão acompanhando esta, encontrarás tu uns duzentos e noventa e tantos versos alexandrinos, saídos como lava, em duas erupções desta cratera que toda a gente tem em si: a alma. O que eles valem pela ideia poucos o sabem. Eu que verguei dois dias a cabeça ao peso da minha criação, apesar de a ver sair imperfeita, tortuosa, disforme, sei o que eles valem para os homens que pensam, como tu, num mundo de dor e lágrimas. Oferecendo-te os últimos versos que talhei sobre quatro jazigos, pago uma divida sagrada.

O único dos meus amigos que ficou firme no seu sentimento por mim, merece-me, sem dúvida, a dedicatória da poesia mais verdadeira, que tenho dedicado às sombras da minha vida...

É justo além disso que seja o coração do amigo a única urna onde eu deixe cair essas gotas do meu sangue à beira do sepulcro onde dormem meu pai, minha mãe, meu irmão, e minha irmã».

Assim se toma conhecimento de mais três cartas, escritas pelo poeta, da Vila da Feira, em 1866. / 65 /

Até 1872 não encontrei outras produções datadas da Vila da Feira: presumo, por isso que, durante este período ou durante grande parte dele, aqui não esteve, talvez por os seus sogros já viverem no Porto e ele estar mais ocupado pois, como dissemos, em 1868 foi nomeado distribuidor da comarca do Porto.

Em Fevereiro de 1872 a sua presença surge na Vila da Feira, deixando um rasto fulgurante do seu génio de poeta.

Na noite de Carnaval, que teve lugar a 13, tomou parte num baile em casa de meu tio Dr. Manuel Augusto Correia Bandeira, advogado nesta Vila, «sem máscara mas envergando um fato rubro, que a esposa lhe mandara, alugado aqui no Porto na casa de J. Maria «das figuras de Cera» – como refere o citado Alberto Moreira em «O Tripeiro» de Fevereiro de 1960, a págs. 306.

Parece que esse fato era diabólico: assim o afirma Melo Freitas, de Aveiro (Violetas – 1878), no capítulo intitulado – O Carnaval «De como Guilherme Braga esteve na vila da Feira, teve tratos com o diabo, e do mais que se dirá».

«Poucos anos antes de morrer, esteve Guilherme Braga na Vila da Feira por ocasião do entrudo, e num rasgo de entusiasmo, vestindo-se com trajes misteriosos de Secretário de Satanás fez por artes do diabo uns magníficos epigramas dirigidos com fina galanteria contra a selectíssima sociedade que se reunia em casa do Dr. Bandeira...»

«Melo Freitas a págs. 57 a 65 transcreve algumas das quadras feitas nesse baile que, no dizer do autor, tem «o interesse genérico da afabilidade aliada com elegante aticismo».

Nesse baile «Guilherme Braga traçou de improviso, ao correr do lápis, nas folhas da carteira, rasgando e distribuindo, noventa e duas quadras» – (Dr. Rodrigo Veloso – Poesias de Guilherme Braga – 1898, fls. 236 e 237).

Todas elas foram reunidas num opúsculo intitulado «Rosas e Ortigas – Bouquet d'improvisos carnavalescos oferecido às Julietas e Romeus da Feira em testemunho de respeitosa consideração por um Careta», que aquele Dr. Veloso incluiu na referida compilação de versos de fls. 151 a 180 e 251, verificando-se, pela sua leitura, que àquelas 92 quadras acrescem duas sextilhas.

Aqueles epigramas eram, na sua generalidade mordazes, mas gentis, merecendo especial referência a mimosa poesia que dirigiu aos donos da casa – destacando sua filha Adosinda.

... ... ... ... ... ... ... ...

Por isso finda o gracejo,

A doida poesia finda...

Doutor Bandeira, os teus versos

São um só nome: – Adozinda

... ... ... ... ... ... ... ..,

Vai ao berço onde ela dorme,

Tu só, e a tua Ernestina;

Fitai ambos, deslumbrados,

Essa pomba pequenina;

 

Dai-lhe um beijo á face bela,

Que tem da infância os matizes...

Oh, sim! Beijai-a mil vezes

E dizei: «Somos felizes!»

Meu avô também foi atingido nas referidas sextilhas.

Um dia o Joaquim Vaz, formoso doutorzinho,

Quis fazer uma aposta e fê-la com um moinho.

Era a qual mais veloz cem carros moeria

Ou (perdão, se isto é feio!) as unhas roeria

Moeu a azenha um mês, foi do milho o verdugo

Mas, então, já o doutor estava no sabugo.

 

Quando a eucaliptus-mania

Veio à de Santa Maria

Terra histórica e brilhante,

Já o doutor Joaquim Vaz

Se avistava por detrás

Dum eucaliptus - gigante.

Esta última, refere-se aos eucaliptos, hoje frondosos, do parque da Casa das Ribas.

Com andar do tempo vão-se perdendo os elementos de identificação das pessoas que Guilherme Braga envolveu nas quadras que fez naquela noite de Carnaval de 13 de Fevereiro de 1872.

Por isso e creio que com muita vantagem, aqui deixo exarado o que me é possível esclarecer, socorrendo-me de informações que ainda se mantêm, de tradição, na memória de alguns e, sobretudo, por umas anotações a lápis que encontrei no exemplar que tenho das poesias reunidas por Dr. Rodrigo Veloso, ditadas por meu avô Dr. Roberto Alves de Sousa Ferreira e escritas pelo próprio punho de Antero de Figueiredo.

Manuel Bento: Manuel Bento de Almeida Teixeira, meu tio, primo co-irmão da mulher do poeta.

Bazílio Lima: amanuense da Fazenda da Feira.

Toscano: António Toscano Soares Barbosa, meu tio, que foi contador no Tribunal da Feira, casado com / 66 / D. Maria Carolina de Almeida Teixeira, irmã daquele Manuel Bento, que foi contador no tribunal da Feira.

Magalhães: Francisco Vitorino Barbosa de Magalhães, amanuense da Fazenda da Feira – irmão do Dr. José Maria Barbosa de Magalhães, que foi distinto advogado em Aveiro.

... ... ... ... ... ... ...

Quando esse anjo se casar

Há-de ele ir de trambolhão

Puxado por seis mosquitos

Na casca de um mexilhão

Dr. Godinho: Dr. António Ribeiro Godinho.

António Maciel de Lima:

Augusto Cezar: Augusto Cezar Teixeira de Lima.

Dr. Ferrão: Dr. Bernardo José Pinto Ferrão, conservador do registo predial da Feira, pai de D. Fernando Tavares e Távora, da casa de Ramalde.

António Maria: António Maria Ferraz de Lima – pai de Francisco Maciel Ferraz de Lima – o grande comedor da marmelada.

José Pedrosa: José Adriano da Silva Pedrosa, que foi escrivão de direito na Feira.

Joaquim Vaz: Dr. Joaquim Vaz de Oliveira, meu avô, advogado, casado com uma prima co-irmã da mulher do poeta.

                         OS DO BOSTON

Almeida: administrador dos tabacos.

Veiga: Dr. João da Veiga Campos, médico pela Universidade de Coimbra, filho do tabelião que foi da Feira – Manuel da Veiga Campos.

Francisco Lima: Francisco Maciel Ferraz de Lima, que adiante será referido, ao tempo funcionário da Conservatória do registo predial e mais tarde secretário da administração do concelho da Feira.

Quim Teixeira: Joaquim Eduardo de Almeida Teixeira, tesoureiro da Câmara Municipal da Feira, primo co-irmão da mulher do poeta.

AS SENHORAS

... ... ... ... ... ... ...

Não digo mal das Marias,

Nem esta cousa as aterra,

Se eu murmurasse de alguma...

Há mais Marias na terra.

... ... ... ... ... ... ...

Refere-se à mulher, que também se chamava Maria.

Maria do Rosário: D. Maria do Rosário Corte Real – prima co-irmã do conselheiro José Luciano de Castro, do primeiro Conde de Fijô (Dr. António) e do Dr. Augusto de Castro: viveu no lugar de Fijô.

Francisquinha Estefânia: D. Francisca Estefânia Teixeira Guimarães – irmã mais nova da mulher do poeta.

... ... ... ... ... ... ... ...

Das meninas do Castelo

E das meninas da Eira

Não há ninguém que não goste,

E não gostar fora asneira.

Pudera! Se estas senhoras

Contam lá no grémio seu

Nada mais e nada menos:

Duas Marias... do Céu!

As meninas do Castelo: eram as irmãs solteiras de meu avô Dr. Joaquim Vaz: Rita e Maria do Céu.

As meninas da Eira: eram as irmãs do mencionado Francisco Maciel Ferraz de Lima, que viviam no lugar das Eiras: uma delas, que ainda conheci, chamava-se Maria do Céu.

Veigas: irmãs do já mencionado Dr. João da Veiga Campos: uma delas, Albertina, casou com o Dr. José de Melo Giraldes Sampaio de Bourbon irmãs do primeiro Marquês da Graciosa), quando era juiz na Feira.

Ribeiros: há dúvida se são as filhas do dono de um estabelecimento comercial, que ao tempo existia na esquina da Praça Velha, ou umas primas da mulher de Guilherme Braga.

Rosinha Apolinário: deve ser a filha do advogado de provisão José Apolinário da Costa Neves.

... ... ... ... ... ... ... ...

Mas quem nos merece o resto

Entre as que mais nos consomem

É o morgado d'Aregos,

Donzela vestida d'homem

...         ...         ...         ...         ...

O Morgado de Aregos: deve ser Alberto Pinto de Sousa Cochofel, de casa de Pousão, de Resende.

Doutor Bandeira: Dr. Manuel Augusto Correia Bandeira, advogado na Vila da Feira.

Ernestina: D. Ernestina Ribeiro Bandeira, mulher do anterior.

Adosinda: Adosinda Bandeira – filha destes.

Posso esclarecer, quanto à poesia transcrita a fls. 181 do aludido livro do Dr. Rodrigo Veloso: / 67 /

Ti Manel: Manuel Vaz de Oliveira, irmão de meu bisavô Joaquim Vaz de Oliveira Júnior, funcionário da Câmara Municipal e que no meio familiar era conhecido, por todos, por tio Manuelzinho. Bichá era um cão da Terra Nova que existia na casa das Ribas, onde Manuel Vaz vivia.

Miguel do Caco: Manuel Pereira Soares, moço de recados muito popular.

 

A 7 de Abril de 1872 realizou-se um baile de costumes, em casa dum irmão do pai da Maria Adelaide, Joaquim José Teixeira Guimarães, que vivia na rua Direita (hoje do Dr. Roberto Alves) – edifício que se segue imediatamente para sul, à casa dos herdeiros de José Soares de Sá.

Em virtude de um desentendimento que surgiu entre aquele Joaquim José e o seu filho Manuel Bento, por um lado e o já referido Francisco Maciel Ferraz de Lima por outro lado, devido ao destino dado aos sobejos daquele baile, em doces e vinhos, este recorreu à imprensa escrevendo, com data de 25 desse mês, um artigo, que foi publicado no «Primeiro de Janeiro» de 4, de Maio seguinte.

Esta imprudência deu lugar a uma polémica muito desagradável. Guilherme Braga, sob o pseudónimo «Asmodeu», tomou a defesa do tio Joaquim José e de seu primo Manuel Bento, num artigo que, intitulado «Maciel e os doces», se publicou no «Diário da Tarde» de 8 seguinte.

Teve réplica do Francisco Lima (que ainda conheci, pois faleceu em 14 de Janeiro de 1932, a quem todos chamavam o Xico Lima) no «Primeiro de Janeiro» de 15, em comunicado intitulado «Ainda os doces da Feira», sob o pseudónimo de «Cameli». Respondeu, de novo, Guilherme Braga, no «Primeiro de Janeiro» de 24 seguinte, em artigo intitulado «Asmodeu e Maciel», assinando-se com o mesmo pseudónimo de «Asmodeu».

Entraram então na contenda, respondendo ao Lima, Asmodeu 2.º (que parece ser um sacerdote) na «Gazeta do Povo» n.º 761 de 17 de Maio e um «leitor» (a quem Francisco Lima chama «criança que largou há pouco o a, b, c») no «Distrito d'Aveiro» n.º 37.

Francisco Lima ainda respondeu no «Primeiro de Janeiro» de 29 seguinte: firmou o artigo, que intitulou «ainda a questão dos doces», com o seu nome completo, declarando, no final, que não voltaria à imprensa para discutir o caso.

E assim terminou a nova guerra do «Alecrim e da Manjerona» que nunca devia ter começado.

No dia 19 de Fevereiro de 1867, data que não consta do citado livro do Dr. Rodrigo Veloso (fls. 185) mas está bem expressa no original que tenho nos papéis de família, escreveu, na Vila da Feira, «Protesto» – paródia a um jogo de manilha em que:

... ... ... ... ... ...

Tanto eu como meu sogro

Chupámos ontem um logro.

... ... ... ... ... ...

E assinar agora vão

A supra declaração,

Por ser justa e verdadeira,

Primeiro – Guilherme Braga

Segundo – João Teixeira.

Em data que não posso precisar, escreveu, em Espinho, «Petição» (cit. livro do Dr. Rodrigo Veloso fls. 188) onde solicita, em nome de «Luísa», a seu pai, referido Dr. Joaquim Vaz, autorização para sair, em passeios com o poeta: tenho estes versos escritos por este meu avô. 

          Meu papá

        Diz D. Luísa

 

Que sendo tempo de férias

Quer respirar essa brisa

Que anda nas regiões etéreas

E sopra à beira do mar...

... ... ... ... ... ... ...

E além disso, este arcanjo

Pede, assim como já disse,

Que se dê plena licença

Para sair noite e dia

Dos primos na companhia

Por exemplo – ouvir a missa –

E como isto é de justiça,

 

P. pois, ao seu papá

Que defira já, já, já,

Com bondade e boa fé.

E R. Mc.e

A rogo seu primo

Guilherme Braga

 

Respondeu, meu avô.

 

Visto este requerimento

E verso e forma legal,

Apesar de tanto vento

Que levanta o areal,

Eu não posso indeferir

Pretensão que vem a rir!

/ 68 /

Fica pois a minha praga

Ao dispor do primo Braga

E com muito carinho

 

Em Espinho.

                        J. Vaz

No arquivo de meu avô Dr. Roberto Alves de Sousa Ferreira encontrei, por letra deste, uma cópia de versos de Guilherme Braga com a seguinte legenda: «Improvisados nas salas do Ex.mo Dr. Bandeira, em a noite de 12 de Fevereiro de 1874 (o quatro resultou de uma emenda).

Se foi feito nas salas do Dr. Bandeira deve reportar-se a 13 de Fevereiro de 1872 (e neste caso as três crianças são o Dr. Bandeira, a mulher e a filha Adosinda).

Se são de 12 de Fevereiro de 1874 foram feitas no Carnaval desse ano, nesta Casa das Ribas.

Não sei se dizem respeito a meus avós paternos que, em Fevereiro de 1872, tinham apenas três filhos, meu pai e suas duas irmãs ou ao Dr. Bandeira, sua mulher e filha Adosinda – «as três crianças».

Creio que são inéditos e, por isso, os transcrevo:

Eu peço um brinde à mãe que sabe ser formosa,

E adornar-se gentil, risonha, a conversar

Ao coração materno, ao coração d'esposa,

Luz, encantos, amor, próprios daquele altar.

 

Ao nobre cavalheiro – alma que se ilumina

De tudo quanto é belo e santo e justo e bom,

Que junta ao seu talento e educação mais fina,

E às regras da bondade as regras do bom tom!

E, como eu vejo em tudo um raio das esp'ranças

Que doiram o porvir dos extremosos pais,

Brindo com santo orgulho, eu brindo às três crianças

Que são na terra, aqui dos anjos os iguais.

Aproveito a oportunidade para anotar que, entre os que se têm referido ao baile de máscaras em que Guilherme Braga fez os aludidos epigramas, se tem estabelecido grande confusão: uns atribuem-no a 13 de Fevereiro de 1872 e outros a 12 de Fevereiro de 1874.

Não resta dúvida que foi em 1872 por muitas razões de peso entre as quais se conta a referência ao facto do Dr. Ferrão estar ainda há pouco na Vila da Feira e ao facto de o poeta, em 1874, já estar muito doente.

Porém, há outro decisivo: entre as senhoras por ele referidas na poesia «Senhoras» encontra-se a Francisquinha Estefânia, irmã de sua mulher, que faleceu no Porto, em casa do poeta, em 20 de Setembro de 1872.

Assim, Alberto Moreira tem razão quando atribui esse baile a 13 de Fevereiro de 1872 («O Tripeiro» de Fevereiro de 1960, fls. 306).

A confusão deve derivar de, em Fevereiro de 1874, segundo creio, se ter festejado o Carnaval nesta Casa das Ribas, no qual comparticipou Guilherme Braga.

Atesta-o o desenho feito por este, que se reproduz, em que ele figura vestido de mulher, com um turbante e leque, na companhia de meu avô (Joaquim), de minha avó (Libânia), minha tia (Luísa) e meu pai (Eduardo).

Este desenho, tem a legenda «Guilherme e o Dr. Joaquim Vaz com sua esposa e filhos, no Carnaval de 1874, no baile realizado na Vila da Feira – Des. inédito por Guilherme Braga e o primeiro que do Poeta se publica» (Alberto Moreira – O Carnaval de outrora «O Tripeiro» de Fevereiro de 1960).

Encontro a confirmação, embora com erro do local em que ele teve lugar, na carta escrita pelo Dr. Jaime Duarte Silva – ao «Correio da Feira» em Setembro de 1941.

Este jornal, no seu número de 30 de Agosto de 1941, na secção «Há 40 anos» e com o título Guilherme Braga, relata um episódio ocorrido entre o poeta e um merceeiro da cidade do Porto, quando este solicitou àquele uns versos para a campa de um seu filhinho. O poeta atendeu-o escrevendo um belo acróstico que o merceeiro recebeu delicadamente mas com tal reserva, que, Guilherme Braga, compreendeu não ter agradado, estabelecendo-se então o seguinte diálogo:

– «É que... o que nós procuramos era...

Era, assim, disse a mulher, coçando o cascudo, uma coisa em que se dissesse que o menino era muito estimado por todos e que eu e mais o meu home é que mandamos fazer aquilo... Sim o sr. Guilherme bem me entende.

– Já vejo que não serve...

– Mas o Sr. pode fazer outros.

Guilherme Braga encolheu os ombros e escreveu sobre uma folha de papel de embrulho.

Aqui jaz o Antoninho

Que de todos foi benquisto

O seu pai e sua mãe

Lhe mandaram fazer isto.»

Acrescentou o articulista que quando lhe perguntaram o preço da quadra, o poeta respondeu que era uma libra e que, como isto causasse estranheza, ele retorquiu: «É caro mas é bom: se servissem os outros, mais fáceis de fazer, custariam apenas meia libra, mas estes são muito mais difíceis». / 69 /

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A propósito desta notícia é que o saudoso Dr. Jaime Duarte Silva, escreveu uma carta àquele jornal, datada de 31 de Agosto desse ano de 1941, confirmando este episódio embora atribuindo ao poeta uma quadra diferente mas com o mesmo sentido.

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Casa das Ribas – além do Castelo da Feira – onde Guilherme Braga viveu alguns dos últimos meses da sua vida.

Nesta carta o Dr. Jaime Duarte Silva, reportando-se à informação colhida de seu pai, António Augusto Duarte Silva, que foi escrivão nesta Vila da Feira e depois na cidade de Aveiro, diz:

«O caso passou-se, contava-o o meu Pai e ele o referiu numa festa do Castelo (como vulgarmente era conhecida a casa das Ribas). Nessa festa Guilherme Braga, vestido á oriental, foi num baile de carnaval e fazendo-se acompanhar por um Secretário, também à oriental e que era Francisco Vitorino Barbosa de MagaIhães, irmão do Dr. Barbosa de Magalhães que foi um grande aveirense, e tio do grande professor e advogado Dr. José de Vilhena Barbosa de Magalhães, disse a cada dama, como a cada cavalheiro, de improviso uma quadra (nesta parte há confusão com o baile de carnaval de 1872 em casa do Dr. Manuel Bandeira). Suponho que algumas existem ainda interessantíssimas entre as quais, a melhor a dirigiu ao «Castelão» (referência ao meu avô Joaquim Vaz, sendo possível que esta fosse a poesia a que atrás me refiro). Pois nessa noite que enchia as recordações a meu Pai, contou Guilherme Braga que, em Gulpilhares, perto de Gaia, marido e mulher o procuraram pedindo-lhe um soneto para apor a um mausoléu que haviam feito para depositar aí o cadáver do cunhado e irmão. Parece que o soneto saiu de primeira ordem. Não gostaram: faltava o nome do morto Maldonado e a referência a quem pertencia. Guilherme Braga rápido recebeu o papel onde tinha escrito o soneto e noutro escreveu:

Aqui jaz o Maldonado

Que foi de todos benquisto

Sua irmã e seu cunhado

Mandaram aqui pôr isto. / 70 /

Saíram contentíssimos. E a paga que Guilherme Braga recebeu foi a alegria deles».

Nota – O que está entre parênteses é meu comentário.

 

Segundo um apontamento que encontrei nos papéis do meu arquivo, Guilherme Braga em 13 de Fevereiro de 1874 escreveu, da casa das Ribas, uma carta a Cândido de Figueiredo: não conheço o seu texto.

Em data que não posso precisar, mas que talvez esteja relacionada com a festa do carnaval na casa das Ribas em 1874, escreveu os versos que se publicam em fotografia:

O nobre Príncipe Vaz

Mais a sua companheira

Aos condes da Lavandeira.

convite feito ao Dr. Manuel Augusto Correia Bandeira e mulher («Condes da Lavandeira») para cearem na casa das Ribas, do Dr. Joaquim Vaz («Príncipe Vaz»).

No verso diz: Aos excelentíssimos Condes da Lavandeira por ordem de S. A. o Príncipe Vaz».

Fez outros versos de convite, para a mesma ou outra ceia, aos «Duques de Aveiro» (referidos António Augusto Duarte Silva e mulher, pais do Dr. Jaime Duarte Silva).

 

Aos nobres Duques d'Aveiro

por ordem de S. A. o Príncipe Vaz

Aos nobres Duques d'Aveiro

Saúde, paz e dinheiro.

 

Meu amo, o príncipe Augusto

Joaquim Vaz e sua Esposa

Tiveram lembrança airosa

E o desejo nada mau

De vos ter aqui á ceia

De couves com bacalhau.

 

Não há perdizes, nem gamo,

Há palestra e bom conforto.

Pelo príncipe, meu amo,

Guilherme, Duque do Porto

Esta conforme e me apraz

O mordomo «Manuel Vaz»

(assinatura do poeta)

/ 71 /

Guilherme Braga veio para a casa das Ribas em 7 de Fevereiro de 1874, na esperança de melhoras na terrível doença que lhe despedaçava os pulmões: aqui se manteve cerca de dois meses em ambiente familiar de muito carinho e amizade.

A 27 do mesmo mês escreveu a Bulhão Pato a conhecida carta que este publicou em «Sob Ciprestes», onde classifica Guilherme Braga como «um grande poeta, um poeta de raça, um poeta de primeira sorte» (fls. 313).

Motivou-a uma outra que Bulhão Pato lhe escrevera entusiasmado com a leitura do «Bispo», dado à publicidade pouco tempo antes – «onde brilhavam, a espaços, por entre muito talento, as faíscas do verdadeiro génio» (cit. ob. fls. 314).

«Poucos dias depois da minha carta recebi a resposta do poeta. Estava ele numa quinta nas proximidades da Vila da Feira, em casa de um parente e dedicado amigo – para respirar o ar lavado e salutar dos campos, a ver se cobrava forças e resistia à enfermidade, que anunciava, com os primeiros rebates, a carga fatal!» – (cit. ob. fI. 319).

Já muito doente e desanimado, o poeta exprimindo o seu grande sofrimento, lamenta-se dizendo «...Não sabe de certo que estou doente e com o espírito grandemente afectado porque me sinto definhar dia a dia, porque vou perdendo gradualmente as forças, e, às vezes, tenho medo. Deixe-me conversar consigo, como se já nos conhecêssemos há muito. Tenho medo de morrer: acobardo-me diante desta ideia que vem a espaços desfazer todas as minhas esperanças, sobretudo as que doiram o futuro do meu filho, que é uma criança de seis anos. Já vê que a sua carta não podia deixar de impressionar-me.

Há vinte dias que saí do Porto em busca de águas puras, de pinheirais restauradores, de bons ares. Acolhi-me a uma das quintas mais afamadas destas dez léguas em torno.

Aqui estou no meio de parentes que me desvelam, tendo diante dos olhos horizontes vastíssimos, à volta de mim tudo quanto pode desejar um cismador enfermo e todavia cá tenho no espírito o mesmo negrume que o obscurecia na cidade poeticida, onde morreram Soares de Passos, Júlio Dinis, Henrique Augusto, Alfredo de Carvalho, Pinto de Almeida e onde engorda o comendador C.., e se torna obeso o capitalista P...» (cit. ob. fI. 320).

«Eu não posso aturar uma cousa que há aí que intenta insurreccionar-se contra a forma, e apenas se revolta contra o senso comum.

Para que há de a gente cansar-se com eles, com os propagandistas daquele paradoxo erradamente atribuído a V. Hugo: Le beau c'est Ia laideur! Não valem o trabalho, nem o tempo perdido, nem a paciência gasta. Para mim o poeta deve ser como o escultor, e seria muito para ver uma Vénus, a ideia de beleza, a quem o artista representasse no seu estado interessante de seis meses, com uma corcunda de dromedário e um pé de baronesa saído da praça da Figueira!

Perdoe estes sorrisos de um doente, que se está deliciando em palestras com o Bulhão Pato a uma distância de cinquenta léguas».

 

Em 7 de Março seguinte escreveu uma nova e última carta a Bulhão Pato, num momento esperançoso, próprio da sua doença.

«Estou muito melhor, graças a este céu azul, a este sol esplêndido, a estas árvores onde já se denuncia a primavera, a estas avesitas que me acordam todas as manhãs, como meninas bem educadas, que vêm dar os bons dias a quem as cantou noutro tempo, quero dizer, a quem cantou noutro tempo as mamãs, as tias, as avós deste rancho de palradeiras, de chilreadoras vivas e alegres... O que é certo, meu amigo, é que sinto o espírito desanuviado diante deste horizonte límpido.

Imagine-se comigo à janela do meu quarto. De um lado um Castelo em ruínas, o velho Castelo da Feira, cuja origem se perde na noite dos tempos. Do outro lado pinheirais vastíssimos, largos campos, onde a água corre por toda a parte. Em frente um vale, que está pedindo ao visconde de Almeida Garrett que ressuscite para descrevê-lo, assim como as casinhas brancas que se mostram de onde a onde, no pendor das colinas que as cercam; lá ao longe quatro ou cinco pinheiros destacados uns dos outros, como sentinelas perdidas, a cruz de uma igreja solitária – uma linha branca, que vem a ser não sei quantas léguas de areia e, muito mais longe ainda, o mar, o mar azul e sereno cheio de sol, confundindo com o céu, admirável fundo de um quadro indescritível!

Se eu tivesse saúde fazia versos, muitos versos, um volume de versos, a tudo isto» (cit. ob. fls. 322 e 323).

Em seguida e na mesma carta:

«...Quer ouvir uns verses que cismei há dias, no primeiro passeio que dei por aqui? Hei-de conclui-los... Quando os concluirei eu?

Vou subindo a montanha. Alongo a vista

Por terra ,e mar e céus. Tudo contrista

Meu pobre coração.

            De fim da tarde à luz amortecida

            Parece dar-me o adeus da despedida

                        A voz da solidão!

/ 72 /

 

Vejo além, a brincar, duas crianças;

Riso, prazer, saúde, amor, espr'anças;

Eis o que vejo além:

E, por entre os sobreiros da colina,

Passa um raio de sol que as ilumina

Com um olhar de mãe!

...   ...   ...   ...   ...   ...  

Sou moço ainda, e sinto-me acurvado

Sob um peso tremendo. O condenado

Apela para Deus:

Mas Deus, o Deus magnânimo e sublime,

Não quer pesar as provas do meu crime,

Nem ouve os rogos meus.

 

No infinito, no eterno, eternamente

Jaz, no abismo insondado, o omnidormente,

Sem as formas de ser.

E ouve-se rir na sombra a enorme esfinge

Quando esta ideia víbora nos cinge:

«É preciso morrer!»

... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

             (cit. ob. fls. 322 a 327)

 

Nestes versos há um doloroso confronto entre o ambiente que o cercava, da casa e quinta (implantadas numa colina que descai de nascente para poente, onde vivia calmamente e era tratado com amizade e carinho, a que não faltava o sorriso das duas crianças a que se refere (minha tia Luísa e meu pai) e entre o que lhe oferecia o seu sofrimento físico e moral provocado pela implacável doença que o minava e à sua adorada mulher.

É um grito desesperado de um jovem, exuberante de talento que se vê perseguido de perto e quase a ser alcançado, sem forças nem meios, para se defender e que só confia, para sua salvação, no amparo e piedade divina.

Finaliza a carta dizendo:

«Depois duma maçada em prosa, uma maçada em verso!

Tenha paciência.

Os doentes são como os pequerruchos: não se lhes pode dar confiança, porque logo abusam dela.

Escuso dizer-lhe que, depois do meu amigo e primo Vaz, é o Bulhão Pato a primeira pessoa que lê esses versos. São íntimos, dos que se escrevem para não verem a luz, dos que se guardam para ficarem na sombra. Se minha mulher os lesse, tínhamos cena. É uma criança de vinte e seis anos, que está muito pior do que eu acerca do meu estado de saúde. Tem por mim um afecto exuberante que dura há oito anos sem que o toldasse uma nuvem.

Eu sou por ela o que sou por meu filho – um doido...!» 

Naquele mesmo dia 7 de Março o poeta escreveu a sua mulher, da casa das Ribas – «Maria Adelaide... Não te posso escrever muito, mas felizmente não é por falta de saúde: é porque tendo respondido ao Bulhão Pato ele escreveu-me uma longa carta a que tive de responder hoje porque já a recebi há dias, e também me estendi, o que me cansou e me impede de estar agora a escrever mais. O preciso para te assegurar que estou melhor, já é bom, não é?.. Teu d'alma Guilherme».

No número 1 das citadas «Vespas e Mariposas», publicou um artigo «O Castelo da Feira» datado da «Quinta das Ribas, 17 de Março de 1874».

Dele extratamos os seguintes períodos, sincero lamento pelo estado de ruína e abandono a que estava votado o castelo, aquele que acompanhou o génio do poeta, ajudando-o, pelo ambiente que lhe ofereceu, a compor «Cadáveres», comparticipando, assim, nesta bela criação.

«Aquelas ruínas alumiadas pela lua produzem um efeito maravilhoso, fantástico. Do Castelo apenas existem inteiras as quatro paredes do alcaçar, com as suas largas torres cobertas de heras: mas, ainda assim, é realmente admirável aquele edifício negro, alto, dominando a colina, destacando no azul, recortando em pirâmides e ameias o disco luminoso do luar»...

«Ó Castelo! Eles não fazem caso de ti, mas eu sei que o teu alcaçar se não esboroará facilmente de cima a baixo, no curto espaço de dois séculos. Eu sei que eles hão de passar, fazendo muito rumor à volta de ti, com correios à portinhola, com rangedeiras nas botas e na laringe, indo sumir-se afinal numas covas onde não caberia a pedra mais pequena dos teus vastos muros. Tu ficarás de pé, à beira do teu fosso, enquanto eles irão caindo noutro – no fosso da Eternidade; eles todos; todos os que te desprezam e todos, os que te insultam; – os ministros como os bacorinhos» (Correio da Feira, número 2680 de 6 de Março de 1950 e «O Tripeiro» de 15 de Outubro de 1927 – fls. 318).

 

Página 73. Clicar para ampliar.

 

Página 74. Clicar para ampliar.

 

O poeta deixou a casa das Ribas e pela última vez, no dia 13 de Abril de 1874, escrevendo a meu avô uma carta, no dia seguinte, que possuo e julgo ser inédita, descrevendo, com espírito, o sacrifício da sua tormentosa viagem até «à pátria de Alberto Pimentel», onde chegou altas horas da noite. / 75 /

Nela afirmava a sua gratidão «ao meu am.º e a toda a família do Castelo».

Por aquela referência vê-se a alta consideração que ele tinha por Alberto Pimentel que mais tarde, depois da sua morte, tanto o viria a honrar e enaltecer nos seus «Homens e datas» e «Através do Passado».

Em 29 de Abril seguinte, já do Porto, escreveu nova carta a meu avô, a última que eu conheço, a propósito do aniversário natalício da mencionada minha tia Luísa, que ocorria no dia seguinte.

«É que eu, lembrando-me a 29 de que o dia seg.te era o 30.º não podia deixar de saudar daqui a Luísa!...»

Refere-se à constante tortura do seu sofrimento, descrevendo o descalabro da sua saúde.

Depois de dizer que «A cabeça principia de dizer à mão que não escreva mais» – finaliza com os seguintes versos:

Mil parabéns á Luísa

A quem por força devia

A musa do primo Braga

Fazer versos neste dia!

Não os faz, por causa justa!...

Mas do pai a mente altiva

Que diga o que há a esperar-se

Dum poeta em carne viva!

 

Em 26 de Julho daquele ano de 1874, o poeta faleceu no Porto: comentando amargamente o seu falecimento, Bulhão Pato, no seu citado livro (fls. 329), exclama «Perdeu Portugal um grande poeta, para mim o maior dos nossos dias».

Passado pouco tempo – a 1 de Outubro desse ano – sua mulher, a bela Maria Adelaide, foi ao seu encontro, para dormir a seu lado, no cemitério de Agramonte o sono eterno.

 

Quis Deus unir-te na mágoa

Das minhas horas fatais,

Flor mimosa ao duro tronco

Batido dos vendavais.

 

Sobre mim ruge a tormenta...

Ai! Nunca o céu me sorri,

E a mesma dor, que me verga,

Passa também sobre ti!

 

Vinte e dois anos enfloram

A c'roa que o céu te deu,

E já sentiste os espinhos

Entre essas rosas do céu!

 

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/ 76 /

A mulher de Guilherme Braga não o acompanhou na sua última estadia na casa das Ribas (7 de Fevereiro a 3 de Abril de 1874) por certo porque então já devia estar doente, pois morreu tuberculosa sessenta e sete dias depois do falecimento do seu marido e para fazer companhia ao único filho que lhes restava, Guilherme Victor (em quem o pai tantas esperanças depositava) e a seus pais, com quem ela vivia, o que claramente se evidencia do artigo de Alberto Moreira («O Guilherme Braga Júnior», no «O Tripeiro» de Junho de 1957, fls. 53) quando diz que, a partir da morte do poeta, o filho ficou «na companhia da desolada mãe e dos avós maternos, mas em circunstâncias muito precárias, vivendo esta enlutada família do auxílio do Dr. Alexandre Braga e de uma pequena mesada que o abastado Joaquim Teixeira (da Vila da Feira) facultava a seu irmão João José Teixeira Guimarães, sogro de Guilherme Braga».

Penso que aquele João José, irmão do Joaquim Teixeira (já falado Joaquim José Teixeira Guimarães) e sua mulher, sogros de Guilherme Braga, viveram no Porto, muito tempo, com este e com sua filha Maria Adelaide, o que talvez já sucedia quando faleceu aí – a filha Francisca Estefânia, em 1872.

O João José deve ter morrido no Porto, porque o seu óbito não consta do registo paroquial da freguesia de S. Nicolau da Feira. Sua mulher regressou à Vila da Feira, depois do seu falecimento, pois aqui veio a falecer, no lugar das Eiras em 20 de Outubro de 1897, com 74 anos: era filha legítima de José Francisco da luz e de Maria Pinto de Miranda, constando do registo do seu óbito que, então, já não tinha filhos.

Com a trágica morte do Guilherme Victor, em casa de seu tio Dr. Alexandre Braga, em 22 de Julho de 1890, quase 16 anos após a de seu pai, desapareceu o último filho de Guilherme Braga, que foi o primeiro por nascimento, extinguindo-se, assim, toda a sua descendência.

Lembrando, respeitosamente, a memória do genial poeta manifesto a esperança de que lhe seja prestada condigna homenagem quando, em 1974, se contar o primeiro século sobre o seu falecimento.

Guilherme Braga se passou no firmamento da sua vida com a rapidez de um meteoro incandescente, firmou o seu génio no céu das letras pátrias, com o esplendor de uma estrela muito viva: não foi favorecido pela sorte, a não ser no seu casamento de amor.

Por isso, bem disse Pedro Lima no seu já referido prólogo «Cedo, bem cedo ainda aquele espírito nos deixou, indo esconder-se, para sempre, na eterna aurora dos mundos ignorados, aonde o bom trabalhador recebe o salário acumulado da sua virtude: essa paz serena e pura que a terra mesquinha e avara lhe havia negado».

...e sentindo que a alma se libertava do seu corpo torturado, despediu-se da vida, exclamando:

Meu Deus, sofre-se assim

e o céu cheio de estrelas...

 

páginas 51 a 76

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