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N.º 11

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1971 

Notas sobre a Vista-Alegre

A CAPELA DA SENHORA DA PENHA DE FRANÇA

Pelo Dr. Frederico de Moura

No arborizado e amplo largo fronteiro à Fábrica de Porcelana da Vista-Alegre de tão grandes tradições artísticas, ergue-se, à esquerda de quem olha o principal edifício daquela instituição fabril, a notável e interessante Capela de Nossa Senhora da Penha de França, monumento nacional, que data dos fins do século XVII.

Para além de um interesse puramente artístico – de que, aliás, se não suspeita ao encarar a fachada – o templozinho que não ostenta grandes promessas na fisionomia, tem a sua história curiosa a que não falta, sequer, um sublinhado doirado e lendário que lhe emoldura a origem de legendas e lhe corrobora as vicissitudes da fábrica com alguns episódios onde se topa, até, com o seu quê de pitoresca e de cunho sentimental que, aliás, se podem ler nas entrelinhas de algumas obras de arte guardadas para lá das suas paredes.

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Capela da Senhora de Penha de França, na Vista-Alegre.

As copas robustas e densas de clorofila das velhas árvores que a enfeitam projectando-Ihe na patina do calcário moreno da frontaria, uma ou outra mancha de sombra azulada, corroboram a anciania da pedra de uma intimidade recolhida.

Disse, aí para trás, que quem vê a fachada não tem indícios para adivinhar os motivos de beleza que encobre dado que, subtraída a imagem da Padroeira, de largos panejamentos abarrocadas, que num amplo nicho sobranceiro à padieira do portal domina o conjunto e onde há quem queira (mal quanto a mim) encontrar a dedada identificadora do talento de Laprade que, lá dentro, deixou a sua marca erudita e hábil no magnífico Túmulo do Bispo, pouca mais se encontra que mereça um apontamento referencial.

Como e porquê, surgiu aqui este pequeno escrínio de beleza num sítio que, ao tempo da sua construção, deveria ser pouco menos do que um terreiro desolado embora debruçado sobre o espelho cristalino de um braço da Ria que lhe passa à ilharga?

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Porque se terá erguido, na solidão do local, uma capela em que primores de escopro e subtilezas de pincel enobreceram a pedra, o estuque e os azulejos preciosos que lhe revestem as paredes interiores num silhar que sobe por eles acima?

Há sempre – quer se queira, quer se não queira – uma pontinha de mistério escondido na argamassa das juntas que seguram as pedras que crescem, a prumo, sob o impulso de uma vontade original que estimula a / 63 / imaginação dos arquitectos, os músculos dos pedreiros, o cinzel dos lavrantes e o pincel dos pintores, mormente, como no caso presente, quando se levanta do chão árido a florescência de um templo para que a gente tem hoje dificuldades em vislumbrar fiéis.

Tecto da sacristia- Ver nota

O núcleo populacional da Vista-Alegre – tudo o leva a crer – aninha-se, posteriormente, como os pintos à roda da galinha mãe, à volta das actividades fabris instaladas pela iniciativa, larga e arrojada, de José Ferreira Pinto Basto que, para além dos vidros, meios cristais e porcelanas que começou a fabricar e a enobrecer artisticamente, ainda encontrou disponibilidades para dar a sua colherada de argamassa e o seu gigo de pedras para rematar as torres sineiras da Capela.

Talvez que, a não terem existido certos amores secretos do Bispo D. Manuel de Moura Manuel e o fruto desses amores surgido, nunca as temporadas do prelado na sua quinta da Ermida se prolongassem o suficiente para lhe acicatar o interesse para a construção da Capela que hoje nos ocupa e que serve de delícia a turistas de visão selectiva.

Quem sabe se o velho Bispo de Miranda, Reitor da Universidade de Coimbra, quereria dormir o seu último sono neste exílio silvestre se não fosse a intenção de o dormir perto dos restos mortais de sua filha Teodora que escondera ciosamente, em vida, na sua Quinta da Ermida? De resto tudo leva a crer que não seria por modéstia que determinou a sua tumulação no meio deste silencioso exílio, se atentarmos no longo e prolixo epitáfio que Ihe assinala a jazida e na pompa tumular que lhe esmaga as ossadas e que ultrapassam, de longe, em sumptuosidade, o cursvs honorum das lápides funerárias da epigrafia latina e a exuberância de certos mausoléus dos príncipes do Renascimento.

Como quem pretende historiar tem que cheirar o bafio dos papéis velhos e vencer as alergias para o pó dos arquivos, socorro-me das informações paroquiais do Distrito de Aveiro de 1721, publicadas pela pertinácia beneditina de Rocha Madail, para catar alguns elementos que me dêem encosto a estas considerações. Assim, e na parte referente à freguesia de Ílhavo lá encontro que há mais «nesta freyg.a a Magnifica Capella de N. S.ª de Penha da franssa Cita na quinta da Vista alegre obra com o desvello do IIl.mo M.el de Moura M.el Bispo q. foi de Miranda obra m.to Magestoza e digna de memória e assim me pareçeo dar della notiçia Com toda a indeviduação»; para acrescentar, logo adiante, que «He esta fábrica de primoroza architetura p.ª q. ConCorreram os mais peritos e Insignes artistas q. pode descobrir a g.de delig.ª que Seu fundador fes aSin neste Reyno Como fora delle».

Foi pois a Capela mandada construir por D. Manuel de Moura Manuel, Reitor da Universidade de Coimbra e Bispo de Miranda, falecido em 1699.

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Tecto da capela de Nossa Senhora da Penha de França, na Vista-Alegre.

E porquê, então, aqui, na Vista-Alegre?

O aludido prelado passava grandes temporadas na sua, já referida, Quinta da Ermida a pouco mais de dois quilómetros deste local.

Ali, na paz campesina de uma pequena aldeia escondeu dos olhos ávidos dos seus contemporâneos, como um tesouro, a sua filha Teodora que confiava aos cuidados discretos de um fâmulo quando os seus deveres o obrigavam a abandonar o seu exílio voluntário. E é precisamente no regresso de uma das suas viagens a Miranda que a morte o surpreende trazendo-o, então definitivamente, para o repouso na sua Capela da Nossa Senhora da Penha de França que – quem sabe? – seria destinada a panteão do Antistete e de sua filha se não, também, da mãe de sua filha.

Como se disse, é no interior da Capela que residem os motivos de maior interesse do templozinho da Vista-Alegre, consubstanciados nas pinturas a fresco dos tetos da nave e da sacristia (onde também existem pinturas nas paredes), nos azulejos que revestem as paredes / 64 / da Capela até meio da sua altura e, sobretudo, no chamado "Túmulo do Bispo».

A pintura do tecto da nave representa a "Árvore de Jessé» e mantém-se, ainda, em muito bom estado de conservação subtraída a parte que cobre o coro e onde a humidade fez estragos bem patentes que se estendem às pinturas parietais. Trata-se, como é evidente, de uma representação, tradicional desde o século XII, da árvore genealógica de Jesus Cristo a partir do patriarca Jessé que é representado deitado, com o busto ligeiramente erguido e apoiado sobre o cotovelo direito; do seu ventre eleva-se um tronco que se divide e subdivide em ramos que sustentam os antepassados de Cristo, terminando numa corola que serve de trono à Virgem que é representada com o menino ao colo. Do mesmo pincel são, concerteza, as pinturas murais da sacristia, quer as do tecto de berço em que o centro é ocupado pelo brasão do Bispo no meio de uma profusão de grotescos que fazem lembrar, com muita nitidez, as pinturas a fresco da Sala de Exame privado da Universidade de Coimbra, o que inculca a ideia de o autor ser o mesmo, ideia, aliás, corroborada pela circunstância do reitorado daquele estabelecimento de ensino por parte de D. Manuel de Moura Manuel; quer nas paredes deste departamento onde também são de referir as pinturas que as decoram à direita de quem entra, e por de cima da caixa dos frontais, uma representação um tanto enigmática onde avulta uma figura de mulher com seu quê de pagão, servindo um simbolismo que não está bem explicado. Em frente, e sobre o arcaz dos paramentos, duas outras pinturas murais, uma representando uma «Anunciação» e a outra uma «Sagrada Família».

Notáveis, também, os painéis de azulejos do século XVIII representando cenas bíblicas e constituindo um alto silhar que atinge a meia altura das paredes. De registar, ainda, alguns belos mármores de Itália e a talha dourada de excelente qualidade.

Mas, e sobretudo, é notabilíssimo o túmulo do Bispo, esculpido em pedra de Portunhos e expressivo do cinzel erudito de um excelente escultor.

Recordando, à primeira vista, quer pela pompa, quer pela lavra especiosa, os mausoléus do Renascimento, a obra passou, por muito tempo, como sendo de origem italiana, até que, Virgílio Correia com base em provas documentais e já depois de 1940, identificou, sem sombra de contestação, a sua origem francesa.

Hoje não existem dúvidas de que a obra é de CIaude de Laprade que, aliás, trabalhou, também, e abundantemente, nos reformados Paços da Universidade de Coimbra.

Como aparece o Artista francês a trabalhar na Capela da Vista-Alegre? Há a tradição de que, durante uma das suas permanências na sua Quinta da Ermida, o Bispo, D. Manuel de Moura Manuel, foi procurado por Laprade, em grandes dificuldades económicas por falta de trabalho, oferecendo-lhe os cinzéis para lhe / 65 / esculpir o túmulo. Sucedeu, porém, que o escultor tendo encontrado o prelado de mau humor recebeu uma resposta desabrida:

– «Faça o diabo e deixe-me em paz...»

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Tecto da sacristia da capela de Nossa Senhora da Penha de França, na Vista-Alegre.

Laprade, longe de desanimar com a resposta que pretendia ser afastativa, tomou a palavra à letra e esculpiu, na verdade, uma estatueta do «Mefistófeles», que, passados dias, foi mostrar a D. Manuel de Moura Manuel. E com tanta felicidade o fez que a prova que apresentou diluiu todas as dúvidas que a sua penúria de vagabundo tinham acordado no solitário Bispo. E teria, assim, conseguido a encomenda do Mausoléu que hoje podemos admirar.

Mera tradição anedótica que correu e corre até, por escrito, não é verosímil que a origem do túmulo se encontre num exame que tivesse por tema a interpretação do diabo e, antes, é de crer que o conhecimento do escultor tenha vindo ao Prelado através dos contactos que com ele teria na Universidade onde era Reitor e onde o Artista trabalhou em obras de restauro, enriquecimento e valorização. É lícito supor que a presença de Laprade na Vista-Alegre tenha sido originada nesta circunstância, até, porque, também as pinturas a fresco, testemunham, com suficientes razões de semelhança, a presença dos pincéis que trabalharam nos paços das Escolas.

Parece-me pois legítimo estabelecer um nexo relacional entre o Reitorado de D. Manuel de Moura Manuel, as obras da Universidade, e a presença dos mesmos Artistas num e noutro local, sejam quais forem as precauções que se queiram tomar contra o perigo abissal das conjecturas.

E, de qualquer modo, e resumindo, o que interessa é poder sem quaisquer hesitações legítimas, afirmar a autoria de Laprade para o magnificente Mausoléu que é – sem sombra de dúvidas – o núcleo verdadeiramente aglutinante dos que ultrapassam a soleira do portal da Capela de Nossa Senhora da Penha de França.

O Túmulo situa-se numa espécie de nicho aberto na parede, junto da Capelão-Mor e do lado da Epístola e, embora de composição muito procurada e literária, é, como obra de escultura um excelente exemplar dos fins do século XVII. Como já se disse não pode deixar de lembrar, ao primeiro golpe de vista, o especioso da escultura tumular renascentista, quer pela sumptuosidade tão do gosto dos príncipes do «Quatrocento», quer pela técnica perfeitíssima, embora rebuscada.

Representa o Prelado em vestes de cerimonial, de mitra na cabeça, ligeiramente apoiado sobre o antebraço direito, de olhos abertos como que a contemplar a figura do Tempo que avulta no fundo, de expressão dura, boca entreaberta e longas barbas, empunhando a Gadanha da Morte. O damasco da casula, as rendas da Alva, o sagrado anel, tudo se encontra rigorosamente apontado e tratado e difícil se torna descer a pormenores descritivos sem alongar demasiadamente estas notas. / 66 /

No arco que remata o nicho tumular e como que a colocar perante os olhos do Bispo moribundo a precariedade da vida humana, anotam-se seis figuras representando caveiras com os crânios cobertos por uma mitra episcopal, um chapéu cardinalício, uma tiara papal, um capacete de guerreiro, uma coroa de rei e uma coroa de imperador. E a rematar a composição, uma figura da Morte encimada pelo «Memento Homo...» que adverte os que são dados a esquecer-se de que as grandezas do Mundo cessam naquela hora em que a pedra do túmulo os inuma na terra-mãe...

No caso presente é-se chocado pela antinomia patente entre tal profusão de motivos a demonstrar a fugacidade da vida humana e a pompa tumular tão inversa da dialéctica que o cinzel do escultor deixou escrita no calcário disponível.

Em frente desta sumptuosa composição pode ler-se uma extensa e laudatória lápide perfeitamente de acordo com o faustoso do Túmulo e tão distante do discreto «famulus Dei» que assinalava as tumulações das Catacumbas.

Sobre a porta da sacristia vê-se, ainda, um outro sarcófago constituído por uma arqueta tumular onde se pode ver uma figura de mulher de amplos paramentos, segurando um medalhão com uma figura de criança. Não se sabe ao certo de quem são os restos mortais ali guardados, mas supõe-se que se trata da jazida da já referida Teodora, filha de D. Manuel de Moura Manuel e que teria constituído o motivo das suas largas temporadas na Quinta do Paço da Ermida, onde a escondia como um tesouro entregue ao cuidados de um fâmulo.

Merecia a Capela da Vista-Alegre que sobre ela se escrevesse um estudo monográfico que o condicionalismo em que se elaborou esta nota descritiva não pode comportar e que implicaria atenção minuciosa e trabalho de investigação a que o autor não pode lançar mão, não apenas por falta de tempo, mas também, e principalmente, por falta de fôlego. Em todo o caso, e para além das insuficiências lealmente confessadas, noutra altura voltarei ao assunto mais repousadamente se encontrar disponibilidades de tempo para o fazer.

Por agora limitei-me a abordar tangencialmente um tema que me solicita, com a finalidade, apenas, de chamar a atenção para um templozinho, onde há motivos de interesse para amadores e estudiosos e que, lamentavelmente, ainda não encontrou quem, profundamente, se lançasse sobre ele.

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Túmulo do Bispo

Se com esta simples abordagem servir de estimulante a quem disponha de ferramentas e de gosto para realizar obra de mérito, dar-me-ei por satisfeito e compensado passando, gostosamente, de autor sumário a leitor interessado.

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NOTA - A legenda está incorrecta, uma vez que se trata do tecto do corpo principal da capela. - (HJCO)

Visita virtual à capela da Vista Alegre

páginas 62 a 66

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