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N.º 10

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1970 

Antologia Aveirense

ALEXANDRE DA CONCEIÇÃO

Por Frederico de Moura

Seria impossível abordar a personalidade literária de Alexandre da Conceição sem, ao menos esquematicamente, lhe dar coordenadas que o localizem.

Com efeito, formular juízos de valor acerca de alguém que fez proeminência em qualquer departamento de actividade intelectual sem, previamente, o situar, conduz, de um modo geral a visões deformadas, quer por adelgaçamentos da personalidade em estudo quer, ao contrário, por engorgitamento de méritos, qualidades e defeitos que deturpam o retrato que se pretende.

No caso de Alexandre da Conceição, individualidade propensa a exageros temperamentais que lhe comunicavam uma combatividade robusta, o problema avoluma-se de dificuldades, dado que a sua actividade se situa numa época de transição entre os últimos lampejos de romantismo e a erupção vulcânica e deslumbrante da escola realista, ou, colocado o problema em termos de balizas concretas, entre o prestígio absorvente de Camilo Castelo Branco e a arrojo inovador de Eça de Queirós.

Alexandre da Conceição - Clicar para ampliar.

Não se tinham, ainda, esvaído os últimos suspiros do «Noivado do Sepulcro» recitado ao piano nos serões familiares e lavrava, concomitantemente, como fogo em estopa, uma super valorização dos factos científicos que enterrava as raízes no positivismo Canteano, de que Teófilo Braga se arvorava patriarca no chão lusitano e que havia de aglutinar os jovens do tempo como um íman congraçante.

De um lirismo deliquescente e tantas vezes clorótico, resvalava-se para um culto, quase de seita, da positividade da ciência que apunha à indagação de cariz metafísico uma pesquisa afanosa e sistemática de factos.

Por outro lado a instituição monárquica, com todo o peso secular da sua tradição, começava a ser posta em causa por contestantes aguerridos que, ao mesmo tempo que investiam com o trono, não deixavam de dirigir as suas invectivas assanhadas contra o altar.

Anti-metafísica, anti-monárquica, anticatólica, esta geração desembocava no positivismo, no republicanismo e no livre-pensamento. O que anti-eram conduziu pelo caminho do combate, ao que foram, mas não foi de pé para a mão, que os laivos marcados da tradição desapareceram da obra que deixaram atrás de si.

E, assim, a transitoriedade que nascia da ebulição das refregas, poluiu, em grande medida, o que na obra desta geração havia de permanente. O espírito polemizante que irrigava o trabalho dos escritores não foi capaz de impedir que este pendor para a disputa acalorada das ideias parasitasse e infectasse o espírito reflexivo de modo a impedir que os argumentos e, por vezes, os sofismas que eram a linguagem das contendas, soterrassem, em grande medida, o que de essencial existia na mensagem que tinham a transmitir.

É neste clima de estreloiçada que surge na campina literária o jovem Alexandre da Conceição.

Nascido a 16 de Outubro de 1842, em Ílhavo, trazia consigo um estigma que pode estar na base de algumas das suas atitudes mais violentas e intempestivas.

Realmente, o poeta das «Alvoradas» era filho natural do Dr. Bernardino Simões da Conceição, médico partidista na vila, e de sua governanta Joana Marques de Carvalho, que segue os caminhos de seu amo quando este se desloca para Pinhel a cujo partido médico concorrera, só regressando a Ílhavo quando este vem a constituir família legal casando com uma senhora daquela localidade.

Que a bastardia o tenha tocado interiormente, traumatizando-o na profundidade, é coisa que para ser avaliada não precisa de grande penetração psicológica. Na verdade, a leitura atenta da sua obra, quer em verso, quer em prosa, revela, profusamente, a sua / 33 / preocupação hipervalorizadora do esforço individual do homem com postergação, concomitante, de todas as razões de sangue e de origem. «Super-compensação de interioridade voluntariamente corrigida», segundo a terminologia da Psicologia individual de Alfredo Adler, aparece testemunhada a miúdo, e nitidamente, na sua poesia «Pergaminhos».

Certo é que sempre o seu pai, exuberantemente, lhe deu o amparo de uma paternidade que o seguiu amorosamente.

Frequenta a Escola Politécnica do Porto, onde obtém o seu diploma de engenheiro, e naquela cidade foi companheiro de sonhos e boémia de Guilherme Braga, Custódio Duarte, Ernesto de Almeida, Dias de Oliveira e Pedro Lima na revista literária «Grinalda». Colabora activamente no tricentenário de Camões. Colabora, também, assiduamente, no «Século» de Magalhães Lima e é companheiro de lutas cívicas de Latino Coelho, Elias Garcia, Rodrigues de Freitas, José Falcão e Augusto Rocha. Estes últimos – José Falcão e Augusto Rocha – viriam a apadrinhar o registo de seu filho Alexandre no primeiro registo civil efectuado na cidade de Coimbra.

O Dr. Emídio Garcia, filho do lente do mesmo nome, em carta dirigida a Feio Terenas, refere-se-lhe nestes termos:

«A plêiade de homens insignes que acompanharam meu pai na fundação da «Associação Liberal de Coimbra» e do «Centro Republicano», era composta por Bernardino Machado, José Falcão, Augusto Rocha e Alexandre da Conceição, distintíssimo engenheiro e Poeta de raro merecimento que as novas gerações mal conhecem».

 

E Guilherme Braga definiu-o assim:

«Alexandre, o que vê na linha do horizonte

A luz que há-de dourar a mais humilde fronte

E que adora essa luz, como os índios o Sol».

 

Em volume deixou, apenas, Alexandre da Conceição o livro de poemas «Alvoradas» e um livro de prosa «Notas» que em subtítulo especifica o seu conteúdo ao esclarecer que se trata de «ensaios de crítica e literatura».

Em 1891, dois anos após a sua morte, um grupo de amigos, tendo à frente o Prof. Teófilo Braga, recolheu no seu espólio poético as poesias que publicaram sob o título de «Outonais». Muita coisa, porém, ficou perdida na efemeridade de publicações periódicas e,

possivelmente, do mais lúcido e mais importante que a sua pena produziu. Como amostra da actividade literária do poeta ilhavense, vou dar a indicação, que está longe de ser exaustiva, de algumas publicações onde colaborou com mais ou menos assiduidade. De momento e que nos lembre, cooperou com os seus escritos na «Grinalda», na «Revista Literária» (1877), na «República das Letras» (1875), no «Protesto» (1875), no «Pirilampo» (1879), na «Evolução» (de que foi redactor) (1876), nas «Vespas e Mariposas» (1874), na «Pérola» (1877), largamente no «Século», etc., etc.

Mas a sua actividade literária vem a ser prejudicada pelo exercício absorvente da sua profissão de engenheiro, que exerceu na Figueira da Foz e, sobretudo, em Viseu e em que se mostrou um profissional distinto, como o demonstrou em notável trabalho sobre Caminhos de Ferro que apresentou na Exposição Industrial de Coimbra de 1884.

Mas foi, com certeza, a sua polémica com Camilo o facto da sua vida literária que lhe deu mais relevo e projecção no futuro.

No número 2 de o «Século», em 5 de Janeiro de 1881, Alexandre da Conceição publicou, na secção «Biografia», uma Crítica à «Corja» do Gigante de Ceide que dizia assim:

«Apareceu «A Corja» do Sr. Camilo Castelo Branco em continuação do «Eusébio Macário».

Ambos estes trabalhos literários têm por intuito confessado lançar sobre a escola realista, de que é representante em Portugal o Sr. Eça de Queirós, todo o ridículo e todo o descrédito que as péssimas coisas e as péssimas acções merecem às consciências.

É deplorável que o Senhor Camilo Castelo Branco, cujo talento literário e cuja elevação artística são de primeira ordem, se tenha neste assunto deixado obcecar pelas suas pequenas vaidades de Seita, até ao ponto de ter do autor do «Primo Basílio» somente esta estreita compreensão: de que é, apenas, um romancista ridículo!»

E depois de variada consideração acrescenta:

«A Corja é como romance uma banalidade suja e como crítica do realismo um esgar grotesco e lastimoso».

A propósito da primeira parte do volume – «Poetas e Raças finas» – Alexandre da Conceição acrescenta:

«Até, porém, nesses estudos o Sr. Camilo Castelo Branco revela o seu velho azedume rabugento e opressivo contra os melhores talentos da moderna geração de escritores portugueses e, particularmente, contra o Sr. Teófilo Braga a quem nega toda a autoridade moral

E ajunta:

«Que o Sr. Teófilo Braga seja, por vezes, em assuntos de crítica histórica, um pouco fantasioso e / 34 / precipitado, que, como confessado positivista, esteja muitas vezes em contradição com a filosofia que diz professar, etc., etc., é uma coisa.»

Foi o rastilho! De S. Miguel de Ceide não se fez esperar a resposta ensopada em sarcasmo:

«Dá-me vontade, depois desta sua aversão ao sujo, ao despeitorado, à desonestidade, à Corja, lembrar-lhe que se assine Alexandre da Conceição Imaculada

E a contenda prolongou-se num «dize-tu», «direi eu» que, em crescendo, se vai avolumando em paroxismos de insultos, em espasmos de despejamento até, quase chegar, à linguagem obscena e à devassa da vida íntima.

Difícil era a alguém aguentar-se contra o estadulho de marmeleiro nodoso manobrado pela mão crispada de Camilo; impossível se tornava competir com o agudo sentido do ridículo e com a chalaça rude, e peninsular de cepa, do Gigante de Ceide.

Da casa de São Miguel choviam as chufas mais cruéis sobre o poeta das «Alvoradas» que – é justo reconhecê-lo – se aguentava na refrega com uma firmeza de cerne.

O romancista do «Esqueleto» acariciava o seu antagonista «pedindo licença às bestas para lhe chamar Conceições» enquanto o escritor ilhavense, afinando pelo mesmo tom, proclamava:

«Acabou-se a palha com que a azémola das «Ribaltas» tirou o ventre de misérias».

Caiu-se na epilepsia dos insultos e da linguagem desbragada, e os espíritos superiores e de opinião equânime não deixaram de deplorar esta lamentável contenda.

Teófilo Braga, por exemplo, refere-se nestes termos à controvérsia:

«A luta provocou interesse, mas era um espectáculo desolador ver espíritos com o poder de direcção desvairarem quase, até à obscenidade. Ambos ficaram mal; e ambos obedeciam à neurose de que foram vítimas. Camilo suicidou-se no desespero da doença. Alexandre da Conceição sucumbiu também a um esgotamento nervoso, uma forma de suicídio imposta pelo temperamento».

E o próprio Camilo Castelo Branco, em carta dirigida a Emídio Navarro, após a morte de Alexandre da Conceição, escreve:

«Creio que já ninguém se lembra hoje de Alexandre da Conceição falecido há 15 dias. Recordo-me eu, com saudade, porque a sinto dolorosamente desse tempo em que ele e eu, com grande gáudio das galerias, esgrimimos algumas frases insensatas, talvez aleivosas, e de todo o ponto inúteis. Caímos ambos quase a um tempo nas trevas eternas" mas ele mais feliz, porque as não pode apalpar com os braços inertes cruzados sobre o peito.

Permita-me V. S.ª que eu lhe ofereça e ao seu jornal, esta bagatela que representa a reconciliação entre dois mortos.»

Esta carta, escrita em 24 de Outubro de 1889, remetia para publicar no jornal de Emídio Navarro, o soneto que a seguir se transcreve:

     ALEXANDRE DA CONCEIÇÃO

(Ao Senhor Conselheiro Emídio Navarro)

 

Bem me lembro que o vi na juventude,

Rosado pela aurora dessa idade.

Eram prismas de amor e de amizade

Os carmes do seu místico alaúde.

 

Sendo fatal que degenere e mude

A crença e o afecto e o bem da mocidade

Sangraram-lhe o peito espinhos de vaidade

Nos arranques da brisa azeda e rude.

 

Mais tarde o encontrei. Já era um homem

Ralado por desgostos que o consomem

E põe na face um gesto acre e sereno;

 

Se o seu bondoso riso era apagado

Restava-lhe este honroso predicado:

Pregando o Socialismo era sincero.
                     Camilo C. Branco

 
E o próprio Silva Pinto, que na polémica tinha tomado aguerridamente partido ao lado do romancista do «Amor de Perdição», presta sentida homenagem, na imprensa do Porto, ao seu antagonista de outros tempos.

*

*      *

Vida intensíssima de luta por ideais, a sua obra poética está adstrita a uma permanente posição de combate: de combate pela República e pelo Socialismo, e de combate contra a Igreja que é expresso num anti-clericalismo cuja acidez atinge, por vezes, paroxismos rábicos.

Numa pequena antologia que publicamos no fim destas considerações, procuraremos testemunhar este pendor do autor das «Outonais» que, profundamente poeta, não soube, ou não foi capaz de se eximir, ao circunstancial que lhe impregnou quase toda a produção com uma seiva polemizante. / 35 /

A sua actividade profissional de engenheiro distintíssimo afastou, quase totalmente, Alexandre da Conceição das lides literárias, porque, sendo pobre, a necessidade de sustentar a família o obrigou a uma existência pragmática de que algumas vezes se lamentava. Assim, numas quadras dedicadas à actriz Beatriz Rente, e deplorando de não poder assistir ao seu benefício escreve:

 

Beatriz, estou enguiçado

– vê lá tu o meu suplício –

inda este ano não me é dado

ir ver o teu benefício.

 

Há uma estrada na Beira

que me exige nesse dia

uns versas de alvenaria,

um soneto com soleira.

 

Uma segunda, esquisito!...

Vê lá tu se isto é possível,

pede-me estrofes de nível

e carmes... de teodolito.

 

Uma terceira... – Que tola,

imagina tu que estrada –

quer rimas de bandeirola

e amor de pedra britada.

De modo que enquanto a corte

te faz do aplauso tributos,

canto eu musas de suporte

e imortalizo aquedutos.

 

Enquanto Lisboa inteira

te aplaude a paga e o talento

eu apanho pela Beira

poemas de chuva e vento.

 

Pela tua estrada há flores

Pela minha há... cantoneiros;

Tu tens mil admiradores

Eu tenha alguns empreiteiros.

 

São diversos os ideais

que nos levam à vitória:

tu pela estrada da Glória,

Eu por estradas... reais.

 

Da mesma forma, em Novembro de 1884, num soneto escrito no álbum de José Coelho da Motta Prego lamenta-se:

«Tem-se-me a pouco e pouco ido apagando

A inspiração juvenil da poesia,

Como se apaga a clara luz do dia,

À medida que o sol nos vai deixando.

 

Hoje é noite cerrada e às vezes, quando

procuro pela sombra a fantasia,

encontro-a sempre inerte, morta e fria

branca Ofélia que as águas vão levando.

 

Pálido, fulminado, triste, absorto,

fico, então, como um pai junto de um berço

ao encontrar ali um filho morto.

 

Fechou-se-me o poema do Universo

nem ouço aquela voz, o meu conforto

que antigamente me falava em verso.


Tendo começado a sua actividade literária incorporado na fileira do Romantismo como em 1865 provou com a publicação do seu primeiro livro a que deu o título de «Alvoradas», Alexandre da Conceição virá a assentar praça nas lutas do realismo, de que viria a ser um defensor ofegante e um crítico entusiasta, ao mesmo tempo que, em matéria filosófica, opta pelo positivismo, arvorando Augusto Conte no pontífice do saber científico de que era devoto incondicional.

Datam desta conversão as suas diatribes iracundas contra o fenómeno religioso, designadamente contra o catolicismo, e particularmente contra o clero, que ele considerava como o exército guardião das cisternas do obscurantismo. Antidogmático militante, é após esta mutação que surgem os seus poemas de combate mais exacerbado com a «Réplica a um Católico», «A um Padre», «Resposta a um Católico», «Cristo», «Os Jesuítas», etc., onde vibra um clarim de guerra e onde é fácil anotar algumas semelhanças com a acidez e a verrina de Junqueira na «Velhice do Padre Eterno», publicado pela primeira vez em 1885, embora só em 1887 tenha aparecido refundida e acrescentada de modo a ficar como hoje a conhecemos.

Em 11 de Outubro de 1889, Alexandre da Conceição, exausto talvez de uma luta que não consentiu uma lacuna de ócio, fechou definitivamente os olhos na cidade de Viseu, onde desempenhava distintamente as funções de Director de Obras Públicas do Distrito. Provisoriamente inumado no jazigo do Conde de Prime, veio posteriormente a ser trasladado para campa rasa no cemitério daquela cidade, onde a ternura de suas filhas ergueu um mausoléu que assinala a nesga de chão que guarda os seus restos mortais.

 

Sumaríssima nota sobre a vida do escritor ilhavense, não se pretende neste escrito ir além de uma simples notícia que lembre um artista, hoje quase totalmente esquecido e que, sejam quais forem as limitações de que se cerque o seu contributo, deixou uma obra onde há muito que aproveitar e onde empunhou o facho do progresso e da mocidade com um «élan», ainda agora, credor de homenagens. / 36 /

Frederico de Moura

 

                     A JOSÉ ESTÊVÃO

Levava após de si – Orfeu da liberdade –

No encanto da palavra o espírito e a vontade.

Como um vento que leva as folhas dum olmeiro.

Neste homem tudo foi viril e verdadeiro:

Onde existisse um erro, um despotismo, um crime,

Lá estava aquela voz vibrante, audaz, sublime,

A combate-lo em face a e erguer pelo direito

– Missionário da luz – um culto em cada peito.

A sua grande força, a sua inspiração

Vinha-lhe toda a flux do imenso coração,

Do forte coração altivo e generoso.

Que nunca conheceu rancor vitorioso.

Tudo nele era grande: a palavra, o talento.

A voz, o entusiasmo, a forma, o pensamento.

O culto do dever, o amor da liberdade.

A índole leal e a simplicidade

Do seu coração de ouro, ao qual toda a vitória

Aumentava a bondade – esta suprema glória.

Político de ideia, abominava a intriga

– Cabala que transforma a política em briga

De egoísmos brutais. Carácter franco e aberto

Combatia de pé e a peito descoberto

Despreocupadamente. E assim em quanto os fracos,

Os hábeis, os subtis, os nulos e os velhacos

Subiam em tropel a escada do poder,

Ele ficava sempre em baixo a combater,

Tranquilo, colossal, forte, sereno, austero,

Como guerreiro antigo, ou como herói de Homero.

...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...

Depois veio a justiça inflexível da história

E, envolvendo na luz da sua imensa glória

O simples combatente, o forte lutador,

Ergueu-lhe um pedestal todo feito de amor,

E amarrou ao escárnio – o panthéon dos fracos –

Os hábeis, os subtis, os nulos e os velhacos.

                     Figueira – Abril de 1881.

 

                NUM TÚMULO

Envolve-se a existência em dois mistérios,

Berço e campa – dois óvulos diversos

Dos berços faz-se o pó dos cemitérios,

Das campas sai o pólen dos berços.

 

Misterioso círculo da vida

Que esmaga em cada giro uma alma, um ente,

Que rasga em cada volta uma ferida,

Que deixa em cada sulco uma semente.

                          1876

 

               PERGAMINHOS

Não me esmagam mulher os teus sorrisos;

Eu tenho mais orgulho do que pensas

E rio-me também;

É debalde que tentas humilhar-me,

Porque eu ouso pensar – vê tu que insania! –

Que também sou alguém.

 

Alguém que veio ao mundo sem família,

Um produto do acaso, um pária, um mísero,

Um enjeitado enfim,

Um ser sem protecção das leis canoniais,

Filho sem pai no assunto do baptismo,

Mas um ser, inda assim.

 

Levantou-me da estrada do infortúnio

Um homem que entendeu que um filho espúrio

Tem jus à protecção,

Um homem que entendeu que é vil e infame

Atirar para o Iodo dos hospícios

Uma alma em embrião. / 37 /

 

É que eu vi as premissas da vitória,

O aplauso espontâneo dos estranhos

Incitar-me a seguir,

É que eu via diante de meus passos

Rasgar-se ampla, infinita, luminosa

A estrada do porvir.

 

Se alguma cousa sou a mim o devo,

Ao meu trabalho honrado, ao meu estudo,

Ao amor de meus pais,

À força de vontade, à inteligência,

À sociedade pouco, às leis bem menos...

E a ti não devo mais.

 

E és tu que vens falar-me em pergaminhos?

E és tu que vens falar-me nas riquezas

Que o destino te deu?

Eu não troco os meus louros de poeta,

As conquistas do estudo e o meu futuro

Por tudo quanto é teu.

 

Não me compares pois à horda ignara

Que te adora os sorrisos pelo ouro...

Eu tenho coração,

Tenho por pergaminhos o trabalho,

Por tesouro a minha inteligência

E a honra por brasão.

 

Nós, os homens que andamos procurando

À luz do coração por este mundo

Os caminhos do bem,

Como trazemos alto o pensamento,

E a fronte erguida ao céu, temos orgulhos,

Bem vês, como ninguém.

Alexandre da Conceição

 

*

*       *
 

O TOMÉ RONCA

I

O Tomé Ronca era um robusto pescador ilhavense, alto, musculoso, tranquilo e solidamente construído como um lutador romano. Tinha apenas vinte e oito anos e era já arrais duma companha. Conquistara este lugar proeminente entre duzentos companheiros de trabalho, por actos dum heroísmo brutal e imperturbável.

Tomé Ronca tinha a força muscular de um atleta e a coragem impassível dum duelista. Nunca deixava de ir ao mar por mais ruim que ele estivesse, senão quando a sua companha se recusava terminantemente a segui-lo.

Tinha um silogismo acerca de naufrágios; não acreditava neles, pela razão óbvia de que, sendo o barco de tábuas e não indo as tábuas ao fundo, é claro que não ia ao fundo o barco.

No inverno os pescadores de Ílhavo vão trabalhar para o Tejo, e, antes da abertura do caminho-de-ferro do norte, faziam a viagem a pé, em bandos, seguindo todo o litoral. Por ocasião de uma dessas viagens, o Tomé Ronca ao passar em Buarcos viu um barco desarvorado e sem governo a 400 ou 500 metros da costa, em riscos de se despedaçar contra os rochedos que o cabo Mondego manda para o mar como raízes duma árvore enorme, e sem que ninguém se atrevesse a acudir àqueles desgraçados, que faziam sinais de desespero e soltavam gritos aflitivos. Na praia ia uma confusão e um alarido indescritíveis. Os homens praguejavam desordenadamente e as mulheres corriam desatinadas pela praia soltando gritos ululantes, que o vento e o forte sussurro das vagas confundiam e dispersavam no ar dando-lhes vibrações elegíacas e confrangentes.

Tomé Ronca aproximou-se do grupo mais numeroso dos homens com os olhos iluminados, e sentindo os arrepios sagrados do seu heróico entusiasmo de homem do mar, clamou como um trovão para o grupo:

Eh! Almas do diabo! Então não há aí um raio do diabo que acuda àquela gente?

– Quem é que lhe há-de acudir, com o mar que faz? – Perguntaram os do grupo assomados e em tom de desespero.

– Quem Ihe há-de acudir?... Acudo-lhe eu, já que vocês, seus almas do diabo, nem para fiar na roca servem.

E às últimas palavras Tomé Ronca pegava na ponta duma corda, recomendava que Iha fossem largando, e lançava-se ao mar com ela atravessada nos dentes.

Houve então dez minutos duma ansiedade indescritível e opressiva.

Na praia todo o alarido cessou como por encanto, e aqueles centenares de olhos estavam fixos num ponto, que as vagas ora encobriam ora balouçavam no dorso encrespado, mas que se aproximava constantemente do barco perdido! As mulheres sentiam as crispações do entusiasmo religioso que as envolve na missa em dia de festa, quando os sons do órgão reboam como um coro de anjos pelas naves do templo, e aos homens parecia-lhes que o vento, que lhes revolvia os cabelos, lhes enchia o peito duma vida desconhecida e vigorosa.

A ansiedade começava a ser aflitiva quando finalmente o Tomé Ronca, a alguns metros apenas do barco, atirou certeiro com a ponta da corda aos náufragos e continuou a nadar para eles. Na praia houve uma explosão triunfal de alegria e de entusiasmo. Às raparigas solteiras acudiu-lhes indistinta e / 38 / confusamente à imaginação a ideia de se o Tomé Ronca seria casado, e os homens sentiram uns vagos ciúmes daquela intrepidez heróica.

O Tomé Ronca agarrou-se enfim ao barco, içou-se para dentro e daí a instante fez sinal aos de terra para que puxassem.

Passados alguns minutos, o barco estava varado na costa e salvos todo os tripulantes. O Tomé Ronca foi levado em triunfo até à primeira taberna, e aí, depois de mudar de roupa, bebeu sossegadamente um vintém de aguardente e sobre um bocado de broa meia canada de vinho.

Ficou como um rei, e daí a duas horas seguia viagem para Lisboa tão indiferente e humilde como qualquer dos seus descalços companheiros.

Quando chegou a Lisboa começava então a germinar no cérebro do sr. José Silvestre Ribeiro a grandiosa ideia, hoje realizada, da sociedade protectora dos animais, nos quais se não incluem os homens e particularmente os pescadores valentes.

Doutra vez o Tomé Ronca, já arrais, embirrou em querer ir ao mar, apesar da companha oferecer resistência a isso por ver o mar muito picado. O Tomé Ronca conseguiu convence-los despejando sobre eles toda a casta de injúrias grossas, chamando-lhes mulherengos e exibindo em tom de mofa o seu argumento predilecto: que o barco era de tábuas e que as tábuas não iam ao fundo. Lançou-se o barco ao mar, com mil diabos, entre um praguejar e um berreiro infernal.

Sabe-se que os barcos da costa de Ílhavo não têm leme nem aparelho para vela. A direcção é dada ao barco pelas cordas da própria rede que ele leva dentro. Na ida para o mar a ponta de uma das cordas fica bem amarrada em terra, e o arrais, que vai em pé à popa do barco, desenrola a corda à medida que este vai avançando, dando voltas com ela na bica da ré, quando a quer aguentar contra o impulso das vagas ou para as esperar à distância conveniente, Percorrida a distância medida por esta primeira corda, é a rede lançada ao mar, e, na volta para terra, é a segunda corda da rede, que serve, do mesmo modo que a primeira, de governo, tendo por ponto de apoio a própria rede, que fica ao largo e que só é começada a puxar depois que o barco está encalhado em terra. O trabalho do arrais, o mais melindroso e o de maior responsabilidade, consiste em dar a tempo as voltas com a corda na bica da ré, sustentando o barco ou deixando-o avançar pelo impulso dos remos, segundo as exigências da vaga.

Naquele dia o Tomé Ronca descuidou-se um segundo, não reparou bem numa onda, e, julgando-a menos puxada, deu apenas uma volta na bica. A onda, porém, foi temerosa, ergueu o barco a uma altura enorme, cavou-lhe à proa um abismo, para o qual o barco começou a resvalar, fazendo correr a laçada singela da bica.

O perigo era eminentíssimo, porque a alguns metros de distância erguia-se já outra vaga enorme, que rebentaria como um dilúvio sobre o barco submergindo-o! O Tomé Ronca compreendeu num Iampejo o perigo da situação, agarrou a corda com toda a potência dos seus músculos de bronze, por já não ter tempo de dar segunda laçada, e sustentou o barco no declive! A corda ainda resvalou alguns centímetros, mas a onda quebrou um pouco à frente da proa, passando fumegante de espuma por baixo do barco, que a galgou como uma gaivota, embalando-se-lhe no dorso arrepiado e colérico. Estava passado o perigo e o barco continuou a avançar para o mar sem outro transtorno.

Transposta a pancada do mar o arrais pediu a um dos da companha que fosse para a ré, e então viu-se o que sucedera: a corda, ao resvalar, quando o arrais com mais força a segurava, tinha-lhe levado a pele das mãos; ele sentira a dor cruciante da corda a morder-lhe as carnes em sangue, mas não contraíra um músculo da face, nem deixara afrouxar a corda um segundo, aliás estavam todos perdidos.

Nos estaleiros de Aveiro e de Ílhavo constroem-se uns barcos de fundo chato, muito apreciados dos pescadores do Tejo e que vão para ali por mar, carregados de sal ou de madeira, tripulados apenas por dois homens, que levam por único instrumento náutico um relógio de sol de trinta réis. Chamam a estes barcos enviadas.

Um dia o Tomé Ronca, com o auxílio de algumas moedas que pediu emprestadas, comprou uma enviada, carregou-a de sal, arranjou um companheiro de viagem (o João Chincha) e deliberou levar o barco ao Tejo.

A enviada saiu uma madrugada da Malhada de Ílhavo e dirigiu-se para a barra a fim de esperar ali a maré e vento favorável. Eram oito horas da manhã quando o Ronca e o Chincha chegaram ao forte da barra de Aveiro. A maré estava quase em preia-mar, mas um vento fresco de oeste, ponteiro à barra, impedia a saída da enviada, que só pode navegar para Lisboa com um bom vento norte. O Ronca ficou desesperado com o contratempo, mas deliberou esperar pelo vento, visto que não tinha outro remédio. O João Chincha notou porém que lhe tinha esquecido a almotolia com o azeite, tempero indispensável a um pescador, e propôs ao arrais para ir a Ílhavo buscá-la numa carreira. O Tomé Ronca concordou e o Chincha partiu para Ílhavo a buscar o azeite.

Passada meia hora e quando a maré já começava a descer, o vento rodou para o norte, o Tomé Ronca meditou dois segundos no caso, rogou duas pragas pela / 39 / demora do Chincha, que ainda não tinha tempo sequer de ter chegado a Ílhavo, esperou impaciente mais três ou quatro minutos, e depois, tranquila e resolutamente, pôs todas as coisas em ordem: amurou a vela, prendeu-lhe a ponta da escota, içou-a no mastro, colocou-se ao leme e saiu barra fora, sozinho, a caminho de Lisboa, onde aportava daí a dois dias!

Quando o Chincha, às 10 horas, voltou à barra e soube que o arrais tinha saído sozinho com a enviada, limitou-se a dizer, depois de dois segundos de pasmo:

– O raio do home quer dar cabo da enviada! Como diabo há-de aquele malvado governar-se sem azeite?

E voltou para Ílhavo, apreensivo, meditando nas dificuldades em que o arrais se havia de ver... sem a almotolia!

Estes e outros actos de heroísmo tranquilo e despretensioso formavam em volta do Tomé Ronca uma atmosfera de inviolabilidade que o tornavam absolutamente respeitado e obedecido entre todos os pescadores da Costa Nova e particularmente entre os homens da sua companha. Por mais acesa e descomposta que estivesse a altercação, ou mais travada a desordem, em chegando o Tomé Ronca todos se acomodavam, porque o Tomé pegava num homem pelo peito, agarrando-lhe só com uma das mãos a camisola, e atirava com ele pelo ar a dez passos de distância, deixando-o estatelado e sem acordo na areia.

Numa noite entrou ele numa taberna em Ílhavo para beber meio quartilho. Na taberna estavam uns oito ou nove pescadores da companha do Galo, que andava em rivalidade com a companha Nova, de que o Ronca era arrais. O Tomé Ronca conheceu o perigo da situação, mas avançou tranquilamente para o mostrador da taberna pedindo meio quartilho. Entre os circunstantes estabeleceu-se um silêncio ameaçador, cortado apenas por alguns monossílabos duvidosos e agressivos. A taberneira percebeu também o perigo, empalideceu e ficou sem coragem para ir tirar o vinho.

– Então você fica-se aí pasmada, tia Maria? Dê-me cá meio quartilho, com um raio de diabos, praguejou o Ronca, senão tiro-o eu da barriga a estes bêbados que você aqui tem.

A esta provocação os assistentes ergueram-se ameaçadores, e um deles foi fechar a porta da taberna, para ali esfaquearem o arrais. Este deu um salto de gamo para a porta, agarrou no homem que a fechara, atirou com ele como uma pela por cima do mostrador contra as pipas, tirou a chave da porta, meteu-a no bolso, sacou dali uma navalha, que deu três estalos secos e metálicos ao abrir-se e disse a sorrir-se como uma hiena para o grupo:

– Agora é que se vai ver quem são os homens. Vocês, seus malandros, saem daqui quando me tirarem a chave do bolso, ou saio eu sozinha depois de os deixar aí estendidos nesse chão, cosidos a facadas. Vamos a isto!

E à luz enfumada e oscilante da candeia, a navalha cintilava-lhe na mão direita, fria, hirta e ameaçadora como a língua duma serpente.

Os da taberna pediram misericórdia, assegurando ao arrais que ninguém lhe queria fazer mal.

– Então para que fecharam a porta?

Ora fiquem sabendo que não são vocês que brincam comigo, e que a primeira vez que tornem a perder-me o respeito, eu migo-os a facadas, como quem miga salada.

E saiu pela porta fora tão tranquilo e direito como tinha entrada.

II

Esta natureza heróica e brutal tinha porém um domador: era a mulher, uma daquelas formosas mulheres de Ílhavo, levemente morena, de cabelos pretos, olhos escuros e doces, dengosa e meiga, e tendo na voz, aveludada e clara, aquelas entoações rítmicas, peculiares a quase todas as belas populações da nossa costa marítima.

O arrais sentia pela mulher um destes amores, que o povo chama cegueiras, e que são com efeito a fascinação de todos os sentidos.

A mulher, com o superior instinto de todas as mulheres, tinha a consciência deste amor do marido, e sentindo-se como envolvida na atmosfera protectora de uma paixão ampla e profunda, possuía a alegria comunicativa e luminosa que nos dá a plenitude da vida.

Nos poucos dias que o mar ou o trabalho da companha lhe permitiam ficar em casa, o Tomé Ronca é que acendia o lume, que lhe rachava a lenha, que não consentia à mulher o mínimo serviço. Era ele que lhe ia buscar a água à fonte e que lhe cozinhava a caldeirada. A mulher limitava-se a varrer a casa e a ralhar com fingida indignação ao marido por ele se intrometer nestas coisas, que não eram da sua conta.

– Ora sempre és bem confiado, dizia a mulher ao arrais, tentando inutilmente tirar-lhe a caldeira das mãos. Quem vir isto há-de dizer que eu sou uma mariola, que até precisa que o homem me faça o comer. Vai-te daqui! Ora o enguiço!

– Chama aí a vizinhança a ver se tu e toda ela são capazes de me tirar a caldeira desta mão. Vai fiar na roca, que para pouco mais tens força. Olha a / 40 / aranha! Arreda-te daqui, senão meto-te dentro da caldeira e cozinho-te para o jantar como quem cozinha um carapau.

Havia porém uma pequena nuvem no céu azul desta tranquila felicidade doméstica, nuvem que as circunstâncias converteram em cerração e mais tarde em temporal desfeito. O arrais, ao contrário do que se dá na maioria dos homens do mar, tinha pelas coisas de religião uma indiferença olímpica e por vezes agressiva. Não ia à missa nem se confessava; e quando por acaso a mulher o increpava por estas faltas, taxava os padres de malandros e a missa de geringonça. Radicaram-no neste voltairianismo inconsciente as patifarias de um padre que conhecera, ao tempo em que requestava a mulher com quem casara, e à qual esse padre ousara fazer no confessionário perguntas indecentes e propostas infames, que a noiva lhe contara por alto enrubecida de vergonha e de indignação.

O Tomé tinha querido logo dali ir esfaquear o padre; e foram precisos todos os rogos e todas as lágrimas da noiva para o padre ficar com as costelas direitas naquele dia.

Conservara, porém, um tal asco ao padre que o não podia ver sem empalidecer, e um dia que o encontrara numa das ruas de Ílhavo em ocasião em que a rua estava pouco concorrida, aproximara-se dele e dissera-lhe a tremer de raiva recalcada:

– Eh! Seu padre António! Você sabe o que perguntou no confissionário a minha mulher, quando ela era ainda minha noiva. Para seu bem e meu peço-lhe que se livre de se encontrar comigo em sítio de jeito, porque eu abro-o com uma navalha, como quem abre uma cavala. Lembre-se disto, porque eu não quero pagar por bom um maroto como você é.

O padre já não ouvira as ultimas frases deste discurso pouco académico, porque, mal tinham explodido as primeiras palavras, o padre percebera imediatamente que o melhor era ir andando.

Não tinha inclinação para o martírio este santo.

Em Arada, povoação a 5 quilómetros ao norte de Ílhavo, apareceram um dia três missionários a resgatar as almas da perdição mundana à força de berros, de inépcias, de confissões, de rosários, de livros, de missões e de correias de Santo Agostinho, outros tantos artigos de comércio rendoso, de que o fisco ainda não tomou conta.

A fama das virtudes dos missionários e dos benefícios espirituais das suas confissões correu por todas aquelas povoações com a rapidez dum terror sagrado. A imaginação popular, a inesgotável geradora do maravilhoso, criou em volta de cada missionário uma lenda mística, cheia de doçuras celestiais e de promessas de salvação eterna. Aqueles santinhos alimentavam-se a pão e água e dormiam vestidos sobre a terra fria, tendo por cabeceira uma pedra dura.

Um livre pensador de Arada averiguou o caso e soube que os missionários dormiam, como cerdos repletos, em excelentes colchões de folhelho de milho na casa onde estavam hospedados, e que os seus jejuns se limitavam simplesmente e precisamente à abstinência da água e do pão duro. O mais comiam tudo, desde o naco luzidio de toucinho indigesto até ao mais alourado peito de peru e à mais saborosa perna de vitela mamona. Beber é que só bebiam vinho... Coitados, uns santos! Pelo menos era o que o povo, esta eterna besta mansa, acreditava.

A mulher do arrais, a instâncias dum rancho de vizinhas, foi às missões de Arada num dia em que o Tomé tinha ido para a Costa Nova. E impressionada com a retórica apoplética e com a gesticulação abundante e desordenada de um dos missionários, pediu-lhe uma confissão geral, que, atenta a peregrina formosura da requerente, lhe foi logo concedida.

A mulher do arrais, entre outros pecados de menor tomo, confessou que o marido não ia à missa nem se confessava, e, fulminada de terror sagrado, ouviu o missionário negar-lhe a absolvição por viver em pecado mortal com um ímpio sem religião nem temor de Deus. À força de lágrimas e de rogos, conseguiu porém que o padre lhe deitasse a absolvição com a promessa formal e solene de, ou converter o marido à santa religião, obrigando-o a ir à missa e a confessar-se, ou a separar-se dele para sempre.

Assegura-se aos ingénuos que estes factos, afora as circunstâncias do local, são perfeitamente autênticos.

Há por aí uns sujeitos que, cônscios das próprias necessidades, arvoram a religião em freio, e que hão de talvez acoimar-me de fantasioso e jacobino, dando como falsa e caluniosa a exigência do missionário. Neste ponto declaro que sou simplesmente e estritamente verdadeiro.

Mas vamos ao conto.

O leitor dispensa-me da descrição das cenas ora ridículas ora trágicas, mas sempre deploráveis, que se deram daí em diante entre o Tomé Ronca e a mulher. O arrais teve ao princípio desconfianças de que a mulher estava doida, e começou a tratá-la com a paciência carinhosa com que se trata um doente caprichoso e querido; mas quando a viu aparecer-lhe um dia com os cabelos rapados e averiguou que tinha feito confissão geral aos missionários, atinou logo com a causa da sua desgraça.

Pensou sombriamente no transtorno da sua vida de família, na perturbação irremediável do seu futuro, na perda daquele amor da mulher que ele estremecia / 41 / como um louco, no constante martírio que o aguardava dali em diante, e depois de cavar alguns dias, como um taciturno coveiro, nestas ideias, tomou uma resolução selvagem e brutal.

Um dia de madrugada disse à mulher que ia para o mar, vestiu-se sossegadamente, considerou a mulher um instante com o coração repleto de lágrimas represas, deu-lhe um beijo rápido, que ela repeliu com um gesto de pejo e de terror, e saiu pela porta fora, mas em lugar de ir para a Costa Nova, tomou pelo caminho de Aveiro. Depois, já próximo de Aveiro, dirigiu-se para Arada, esperou à saída da igreja o missionário que lhe confessara a mulher, e cujo nome previamente averiguara, e ali, diante de todo aquele mulherio que beijava ao santo a fímbria da batina, numa explosão de raiva selvagem e de alucinação sanguinária, deitou-se ao missionário e deu-lhe dezoito facadas no peito, na cara, nos braços, no ventre, por toda a parte onde o encontrou no furor da sua fascinação homicida, e até que alguns homens, que acudiram ao berreiro descomposto e felino das beatas, o puderam desarmar e manietar.

Daí a um ano, o Tomé Ronca saía das cadeias da relação do Porto numa leva de presos para a África, degredado por toda a vida.

A mulher, essa, meia idiota e meio alucinada, pede hoje esmola pelas portas, e quando lhe dão dinheiro gasta-o em aguardente, e, depois de embriagada, insulta os transeuntes e passa as noites a berrar pelas ruas obscenidades repugnantes.

O rapazio apedreja-a e leva-a a um extraordinário ponto de irritação chamando-lhe em berros e em guinchos – Sarabéca.

Março – 1879.

 

páginas 32 a 41

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