Acesso à hierarquia superior.

N.º 6

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1968 

Elementos para a História de Castelo de Paiva

Excertos da monografia editada pela Câmara Municipal de Castº de Paiva

Pela Dr.ª Margarida Rosa Moreira de Pinho

 

ORIGEM ETIMOLÓGICA DE «CASTELO DE PAIVA»

Primitivamente, o Concelho era designado pela palavra «Paiva» e só há cerca de um século passou a designar-se «Castelo de Paiva», visto que, sendo a acta mais antiga – existente hoje no Arquivo da Câmara – de 1850, é na do dia 4 de Março de 1852 que aparece o nome de «Castelo de Paiva» para designar o Concelho. Até então encontrava-se sempre «Concelho de Paiva».

«Paiva» é nome muito antigo, pois já se lê num documento do ano de 883 para designar o rio Paiva:

 

            «fere a pauia ... et inde

            iuso a pauia ...» (1)


Edifício dos Paços do Concelho de Castelo de Paiva.

 

Ignora-se qual a origem etimológica desta palavra. Percorrendo, todavia, a toponímica portuguesa, vê-se que o elemento «av» predomina nos nomes que designam regiões onde corre água. (2) Está neste caso a do rio «Pávia»; a terra banhada por ele passou a denominar-se terra da Pavia. Por metátese, mudou em «Paiva».

A palavra «Castelo», que, junto a Paiva, forma hoje o nome do Concelho, deve ter vindo da povoação do Castelo, junto da foz do rio Paiva, que ali desagua no Douro.

A povoação do Castelo aparece já com este nome num documento do ano de 1432, pelo qual Diogo Soares dá ao Abade do Mosteiro do Paço de Sousa a leira da Mó, da freguesia de Sardoura, recebendo dele, em troca, um pedaço de campo, que está no «Castelo de Payva». (3)

É curioso aparecer já neste século o nome, que só no século XIX é escolhido para designar o Concelho.

Como outrora devia de ter existido nesta povoação do Castelo um «castro», onde ainda hoje existe o lugar do mesmo nome, a denominação de Castelo atribuída a esta povoação veio desse «castro», onde têm sido encontrados vestígios, e não dum castelo propriamente dito.

Há ainda, nesta povoação do Castelo, um lugar junto ao Rio Douro, e pouco abaixo do lugar de Crasto, com o nome de Castelo de Baixo. Aqui, devia ter existido outro «castro», tanto mais que há referências a um dólmen notabilíssimo, que aqui devia ter existido, mas de que hoje não há vestígios. Além disto, na confluência do Douro e Paiva existe um outeiro-ilhéu, outrora em comunicação com a «praia do Castelo» e em que houve, segundo a tradição, um castelo de mouros.

Não se deve tratar dum castelo de mouros, mas antes dum «castrelo», ou, então, duma vigia do castro, que teria existido no Castelo de Baixo, visto, no cimo do morro, existirem uns grandes penedos com vestígios dum talhe circular, que devia ter servido de base ou alicerce ao referido «vigia» ou «castrelo».

Daqui, o chamar-se a esta povoação e praia, junto da foz do Paiva, «praia do Castelo» e das designações de Castelo e Paiva (esta última atribuída já anteriormente ao rio e terra de Paiva) veio o nome de «Concelho de Castelo de Paiva», que aparece pela primeira vez, como já vimos, em 1852.

Castelo de Paiva é uma faixa de terra caprichosamente recortada entre as províncias da Beira e do Douro e por isso participa das belezas naturais dessas duas tão lindas e cantadas regiões. A luxuriante vegetação que a cobre de lés a lés, espalhada ao sabor da Natureza, ora nos lembra a visão da Beira com as suas leiras viçosas e férteis, ora a beleza agreste das altas serranias que são a imponente moldura do majestoso quadro duriense!

Assim vem atravessando os séculos e as gerações, tímida e dormente como todas as pequenas povoações, / 14 / sempre prejudicada no seu progresso pela projecção absorvente dos grandes centros populacionais.

O próprio rio, que a delimita e beija carinhosamente, escorre demorado e lento pelas veredas tortuosas do seu leito, apertado entre os salgueiros e os fetos que lhe decoram as margens e onde cantam rouxinóis enamorados, na tranquilidade bucólica das noites estivais. É a Natureza a imperar em todo o seu esplendor, livre dos artifícios da civilização que por ali não fez sentir ainda os seus efeitos.

No entanto, Castelo de Paiva tem, também, a sua história e os seus pergaminhos a atestarem a nobreza da sua origem e a galhardia dos seus feitos!

Foi nas cinzas do seu passado remoto que eu procurei os elementos de estudo – que são o objecto das despretensiosas notas que se seguem.

 

SITUAÇÃO GEOGRÁFICA, SOLO, SUBSOLO, ETC.

O Concelho de Castelo de Paiva, situado no extremo Norte do distrito de Aveiro, forma quase um quadrado. É actualmente limitado, a Norte, pelo rio Douro que o separa do Concelho de Marco de Canaveses, Penafiel e Gondomar; está separado, a Sul, do Concelho de Arouca por uma cordilheira de serras: a Serra Alta ou de Santo Adrião, Cerquidelo, Gamarão e a Serra da Vala; serve-lhe de termo, a Este, o rio Paiva, que o separa do Concelho de Cinfães; a Oeste, é limitado pelo rio Arda, Serra do Cabeço de Sobreiro e o Ribeiro de Areja, que o separa do Concelho de Gondomar.

No Cabeço de Sobreiro parte este Concelho com os de Gondomar, Feira e Arouca. O rio Arda separa-o do Concelho de Arouca. Está situado a 41º,25 de Latitude, e 0º,52 de Longitude Este do meridiano de Lisboa. É bastante acidentado e pouco extenso, pois tem apenas 108,284 Kms de superfície, sendo mesmo assim relativamente rico.

*

*  *

O solo desta região é muito fértil e, talvez tenha sido esta uma das causas de ter começado a ser povoada desde remotos tempos: disso são grandes os numerosos achados arqueológicos, testemunhos preciosos de antigas civilizações a que adiante nos referiremos detalhadamente.

No sopé de montanhas alcantiladas, estendem-se ridentes e férteis vales aproveitados nas mais variadas culturas.

Esta actividade de cultivo exercida pelo homem não se limitou apenas à planície, chegou mesmo à zona montanhosa, que, longe de ser improdutiva, está hoje completamente arborizada não existindo já baldios.

Por toda a parte se nota uma extraordinária exuberância de vegetação, o que dá à região um aspecto de viço e frescura que deslumbra.

Os montes, cobertos de pinheiros e, em menor quantidade, de eucaliptos, sucedem-se, formando pitorescas cordilheiras com cabeças e picos abruptos, que se alternam, dominando os vales tranquilos e verdejantes, estendidos a seus pés.

Esta verdura resulta, em grande parte, da abundância de água que jorra, a cada passo, correndo para os inúmeros regatos e ribeiros, que se entrelaçam e cortam a região, lançando-se todos nos rios Douro, Paiva e Arda, que quase circundam o concelho. A água, além de ser aproveitada para regar e fertilizar a terra, é também utilizada para fazer mover lagares de azeite, moinhos e azenhas de cereais e de linho, e fábricas de serração e papel.

O solo, como é bastante fértil, produz grande quantidade de cereais, sobretudo milho e centeio, batata, muita fruta, legumes, azeite e linho, assim como óptimo vinho verde, de que são exportadas centenas de pipas.

Cria gado de toda a qualidade, mas especialmente bovino, ovino e caprino. Há ainda bastante caça, sobretudo perdiz e coelho.

*

*  *

O sub-solo é ainda rico. Há minas de metais de várias qualidades; uma de antimónio chamada Cabranca, na Raiva, duas de chumbo no ribeiro de Terramonte e quatro de chumbo e zinco denominadas Guardunha, Ourães, Ribeiro da Castanheira e Serradelo. Todas estas ficam situadas na freguesia de Raiva.

Presentemente está em exploração uma grande mina de carvão de pedra, que começa no sopé do Monte Santo Adrião, na freguesia de Real, passa pela freguesia de S. Pedro do Paraíso, Raiva e vai até Germunde, em Pedorido.

Como a exploração tem sido feita intensamente no Pejão – freguesia de S. Pedro do Paraíso – denomina-se «Couto Mineiro do Pejão».

Nesta zona do Pejão, devia ter-se produzido, em épocas pré-históricas, um colossal incêndio, devido à incandescência mineralógica, de que resultaria o abatimento do terreno, na extensão de 1 800 metros. Assim, do Pejão ao rio do Fojo as rochas inclinam-se para Este e do Pejão ao Seixo seguem a direcção Oeste, bem como do Fojo ao Douro.

Confirma esta hipótese a quantidade de pó cinerário, que envolve parte do carvão fóssil nos sítios em que a chama deixou de actuar. Na Serra de Serradela, e paralelamente à zona carbonífera na direcção Este, até ao lugar da depressão, corre uma série de / 15 / rochedos de quartzo e xisto e, para Oeste, segue a direcção oblíqua, por lhe faltar apoio deste lado. (4)

Na parte Norte do Concelho – abrangendo as freguesias de Bairros, Sobrado, Fornos e S. Martinho – abunda o granito. Na parte Sul – compreendendo as freguesias de Real, S. Pedro do Paraíso, Raiva e Pedorido – o granito é substituído por quartzo e xisto, e a que vulgarmente chamam «pedra lousinha».

Aqui, a cada passo, aparecem bivalves fósseis, incrustados nos rochedos xistosos, bem como animais e vegetais – principalmente fetos.

O clima, devido à existência de abundante e densa vegetação, é seco e salubérrimo, e – como tal – excelente para cura de doentes que necessitem de bons ares. E, de facto, esta região é muito procurada por convalescentes de doenças pulmonares, principalmente.

 

A VILA DE SOBRADO

A pequenina e aconchegada povoação, que serve de sede ao Concelho de Castelo de Paiva, encontra-se situada no seu seio, mais dando a impressão de uma linda pomba branca, sobressaindo do ninho viçoso e verdejante que a acolhe.

A «Vila de Sobrado», ou «Sobrado de Paiva», ou simplesmente «Sobrado» (5) – tais são as designações porque é conhecida, vulgarmente, a sede do concelho – é um modesto e recatado burgo, perfeitamente enquadrado no tipo da vila provinciana. Necessário se torna salientar que, além daquelas designações, é ainda conhecido pela designação genérica de «Castelo de Paiva» – confundindo-se assim com o nome do Concelho.

Portanto, o toponímico exacto da povoação – ou seja, Sobrado – é precisamente o menos conhecido, fora do concelho.

Sobre o ponto de vista étnico, e até geográfico, a confusão atrás referida justifica-se plenamente, de tal modo a vida, os costumes, etc., da gente paivense gravitam em redor desta pequena mas linda povoação, que a região duriense embala ternamente, aconchegando-a nos seus montes e refrescando-a com os seus rios.

Nem o facto de escritores e artistas se terem esquecido quase completamente deste cantinho da terra portuguesa, a impede que lhe outorguemos os adjectivos a que as suas belezas naturais lhe dão incontestável direito.

Há-de chegar o dia – estamos certos – em que a sensibilidade de poetas e pintores se deixe prender e fazer vibrar pelas belezas naturais e pela graciosidade que rodeiam a tão esquecida vilazinha de Sobrado.

*

*   *

Sobrado de Paiva encontra-se optimamente situado – como já dissemos – no coração do Concelho, em lugar elevado e donde se desfrutam extensos e belos panoramas. Do seu ponto mais central – o Largo do Conde de Castelo de Paiva – partem diversas estradas, ao longo das quais se vai estendendo a povoação que comunica, mais ou menos directamente, com as sedes dos concelhos limítrofes (Arouca, Vila da Feira, Gondomar, Penafiel, Marco de Canaveses e Cinfães) e com a cidade de Aveiro, sede do Distrito, da qual dista 84 Km.

Este largo – que está enquadrado pelos edifícios mais importantes da terra, entre os quais se contam o dos Paços do Concelho, a Igreja Matriz, os «Correios», a Cadeia, etc. – é o sítio principal da Vila, constituindo mesmo o centro de todas as suas actividades.

O edifício da Câmara Municipal, embora sem arquitectura digna de registo, é espaçoso e arejado, e nele se encontram instalados o Tribunal e todas as outras repartições públicas. Foi construído em 1901. A sua / 16 / traça primitiva – que fora entregue a António da Maia Romão – foi posteriormente modificada por Michel Angelo Soá.

Anteriormente à construção deste edifício, os Paços do Concelho, o Tribunal e a Administração do Concelho estavam instalados no prédio quase fronteiro, onde actualmente está a Cadeia.

Quanto a esta nada se sabe de positivo acerca da data em que foi construída, ignorando-se igualmente quem foi o seu construtor. (6) Apesar de se tratar de um edifício sólido e relativamente amplo, a sua situação provoca acidentes desagradáveis para a moralidade pública, pelo que se impõe a sua transferência para outro local mais apropriado, que esteja isolado do meio social da vila.

A única igreja que existe na Vila é a Matriz, que se encontra situada no lado poente do referido Largo. É um templo pequeno e simples sem qualquer pormenor arquitectónico que mereça especial menção, apesar de interiormente estar sempre adornada com muito gosto. Foi mandada construir em 1737 pelos «Pintos da Boavista», (7) a 60 metros a oeste do local onde existiu a primeira igreja. A maior parte do seu antigo «passal» – que hoje não pertence à Igreja – tinha sido doado pela mesma família, sendo, então, o maior donatário o Padre Pantaleão Pinto de Miranda.

Em Sobrado há somente uma capela que é de propriedade particular, que se ergue na Quinta da Boavista, actualmente na posse da família do falecido Conde de Castelo de Paiva. (8) Num airoso e moderno edifício próprio, situado a nascente da Câmara Municipal, funciona uma estação de 2.ª classe dos «Correios, Telégrafos e Telefones».

Tem também o seu Grémio da Lavoura, cuja sede se encontra no mesmo Largo, bem como a sede da Legião Portuguesa, o cartório Notarial e o consultório médico do partido municipal.

No centro do Largo a que nos vimos referindo, ergue-se a estátua do 1.º Conde de Castelo de Paiva, Martinho Pinho de Miranda Montenegro, em tamanho natural, modelada em bronze pelo grande Mestre da escultura portuguesa, Teixeira Lopes, e assente num elegante pedestal de granito, rodeado por um bem talhado jardim.

Esta estátua foi inaugurada em 1927, graças à iniciativa duma comissão de individualidades locais, nomeada pela vereação municipal de então. O acto da sua inauguração – sincera e merecida homenagem do povo de Castelo de Paiva ao seu grande benemérito – constituiu um dos maiores acontecimentos festivos de que há memória em Sobrado.

Castelo de Paiva tem brasão, composto por um escudo em cujo centro se vê um castelo, tendo de cada lado um cacho de uvas. Tanto por baixo como por cima do castelo se notam dois traços curvos, paralelos, semelhando os dois rios limites do Concelho. O brasão é encimado por uma coroa mural com quatro torres ou castelos. (9)

Tem na margem esquerda da estrada que conduz à vizinha freguesia de Pedorido – um pouco distante da Vila – um Cemitério Municipal, espaçoso e arejado. Foi construído em 1911. Anteriormente, o cemitério ficava situado no centro da povoação, perto da Igreja Matriz. (10)

*

*  *

O feriado do Concelho é a 20 de Setembro.

A «festa» mais importante do Sobrado é a que se efectua em honra de Nossa Senhora dos Milagres, no terceiro domingo do mês de Julho.

Tem feira quinzenal, que foi criada aproximadamente há meio século, sendo cada vez mais concorrida, a ponto de hoje poder ser considerada a feira mais importante do Concelho. Efectua-se nos dias 6 a 21 de cada mês.

 

BREVES NOTAS ETNOGRÁFICAS

O povo da região de Paiva tem quase todo as mesmas características. (11) O homem dedica-se principalmente à lavoura. Nas épocas próprias, o da «beira-rio» também se entrega à faina da pesca. Cultiva a terra que lhe dá o pão de cada dia, e tira do rio o peixe com que se alimenta e vende nas povoações vizinhas. A mulher ajuda o homem nos trabalhos agrícolas, sem descurar o governo da casa.

Gente de índole pacífica, bondosa, e de ânimo aberto à caridade, é também respeitadora e submissa, mas quando alguém fere os seus direitos, rapidamente se torna ousada e valente, não recuando diante do perigo.

É ainda alegre, movimentada e atreita à frequência de festas e romarias, para onde vai a pé e a dançar, percorrendo por vezes enormes distâncias, carregada com cestos repletos de farnéis e garrafões ou cabaças de vinho!

A actividade e as características dos habitantes desta região estão em perfeita e íntima relação com a prodigalidade natural do meio em que vivem.

A ocupação predominante dos habitantes desta região – como dissemos – é a agricultura, de maneira que as casas se distribuem junto dos campos de cultivo e de preferência nas encostas, não existindo grandes núcleos de povoamento.

O material empregado nas construções é, numa parte do concelho, o granito e, na outra, o xisto. Nesta, as casas são escuras, da cor da pedra, apresentando-se / 17 / caiadas apenas uma ou outra, de lavradores mais abastados.

São normalmente dum andar, ficando no rés-do-chão os currais para o gado. Compõem-se apenas de dois ou três compartimentos, bastante espaçosos e que servem, a um tempo, de celeiro e casa de habitação.

O processo de cultivo dos campos é o tradicional. Usam a charrua ou arado, puxado por uma junta de bois, para sulcar a terra e a grade para a aplanar e alisar, sendo o lavrador quem lança a semente. Apenas uma ou duas casas, em toda a região, estão a seguir os processos modernos da agricultura, para o que constroem silos e vacarias com todos os requisitos, utilizando ainda as modernas máquinas nos trabalhos da lavoura.

Agora está a dar-se como que o êxodo dos campos, na ânsia de grandes lucros. Esta febre foi mais intensa durante a última guerra, desertando grande parte da população para a extracção do volfrâmio, no vizinho concelho de Arouca.

Agora, paralisada essa extracção, uma grande percentagem de trabalhadores está empregada na do carvão, vendo-se o lavrador, por vezes, quase só, a braços com o cultivo das terras. Apesar de tudo, embora não muito remunerados, os trabalhadores do campo têm uma vantagem sobre os de grandes lucros: é terem mais garantias de continuidade, produzindo o suficiente para viver e, contribuindo ainda – por não permitirem gastos supérfluos – para que os costumes se mantenham sem se corromperem muito.

A mulher trabalha ora em casa, ora no campo, ajudando o marido ou o pai. O seu trajo é modesto. Usa uma saia bastante rodada, geralmente de tom escuro, blusa clara, lenço de cores vivas na cabeça, xaile normalmente preto e socos ou chinelos nos pés. Hoje, porém, estão a deixar-se influenciar pela moda das cidades, começando a usar as saias «travadinhas», muito incómodas para os trabalhos do campo.

Os homens usam fatos vulgares, mas, normalmente, com camisas de linho caseiro ou estopa, de que é feito o «bragal», nome porque é conhecido o enxoval.

A ocupação da população que vive nas margens do Douro, sobretudo no Castelo – povoação na confluência do Douro e Paiva – é o comércio, feito através do Douro com a vizinha cidade do Porto. É feito em dezenas e dezenas de barcos «rabelos», que partem das margens do Douro para a Ribeira, no Porto.

Os barqueiros levam uma existência rude. No Inverno, arrostam com os rigores das grandes cheias e os horrores das tempestades, tendo como único resguardo uma mísera capa de oleado, e suportam ainda furiosas ventanias que, rugindo pelas escarpas das montanhas sobranceiras ao Douro, produzem furiosos redemoinhos na corrente.

No Verão, como não há água suficiente para os barcos deslizarem com facilidade, passam trabalhos para os arrastarem. Têm continuamente de saltar para a água a manobrar o «bicheiro» (composto por uma vara de 5 a 7 metros de comprimento, onde encaba um ferro de 2 bicos com a forma de U recurvado), de que se servem para impelir os barcos rentes à margem.

Quando, porém, o vento é de feição, içam as velas, vogando o barco tranquilamente, rio acima. Se seguem a favor da corrente, usam os remos, geralmente chamados pás; a vara, se há pouca água.

O local onde mais intensamente se faz o comércio com o Porto, é o porto do Castelo, que hoje possui um enorme cais que permite, mesmo durante o Inverno, a carga e descarga dos barcos. Aqui, a população adensa-se, manifestando uma psicologia diferente da do interior do concelho, devido ao constante contacto com a Ribeira – bairro comercial da cidade do Porto e local onde os barcos descarregam as mercadorias.

Como as sobrevivências étnicas são casos raros nas zonas litorais, de que esta é um pequeno exemplar e muito característico, os costumes diferem muito dos do resto do concelho.

A mulher, ainda à semelhança dos grandes centros piscatórios, como que se emancipa da tutela do marido. Na ausência deste, que parte ao domingo de manhã para só voltar ao meio da semana, é ela que trabalha, percorrendo enormes distâncias a vender o peixe vindo da beira-mar ou pescado no rio, e a comprar galinhas, ovos ou fruta que vão ou mandam vender ao Porto. Adquire assim uma tal independência, que é muitas vezes origem de desavenças com o marido.

Além desta povoação, fazem intenso comércio com aquela cidade, as praias de Pedorido, situadas na foz do rio Arda, e a das Fontainhas, na freguesia da Raiva.

A indústria local mais característica e antiga é a do linho. A ela vamos consagrar algumas breves notas.

Levados pelo espírito económico e independente de se bastarem a si próprios, os lavradores de Raiva cultivam e tratam o linho desde a sementeira até à confecção do bragal. Antigamente cultivavam-no com maior intensidade, notando-se agora que esta indústria está a decair um pouco.

As mulheres usavam-no nas camisas e coletes; os homens, só nas camisas. Tanto as mulheres como os homens vestiam, respectivamente, saias e calças de seriguilha – pano grosso, feito de lã e linho e tecido, com este, em teares manuais e hoje muito pouco usado.

A cultura do linho passa por diversas fases, algumas das quais muito trabalhosas, mas todas elas revestindo animação e colorido.

Após a sementeira e no mesmo dia em que é feita, o lavrador coloca no meio do campo do linho semeado / 18 / uma cruz enfeitada de flores, para que o arejo não dê na planta, quando esta começa a nascer.

O aspecto oferecido por um campo de linho florido é belo. A sua flor azulada é fina e delicada.

Findas as sete regas necessárias, está pronto a ser «arrincado», o que é feito pelos rapazes e raparigas, no meio de uma grande animação e alegria comunicativa, «botando cantas» que ecoam, com uma nota típica, pelos montes e valados.

São variadíssimas as canções, algumas muito características, como estas:

Ao cabo da leira

Ao cabo da leira do linho,

Lá vem a nossa patroa

Com a cabaça do vinho.

 

Vou cantar uma cantiga

Já que tanto ateimais.

Ouvir cantar quem não sabe

Não sei que graça Ih'achais.

 

Minha Mãe p'ra me casar

Prometeu-me quanto tinha,

Agora que me viu casada,

Deu-me uma agulha sem linha.

 

Algum dia p'ra te ver,

Dava cinco reis às almas.

Agora p'ra te não ver,

Dou dez reis e bato palmas.

A animação continua quando, a seguir à «arrinca» (12) o linho vai ser separado da linhaça através do ripo. As raparigas fazem as «mancheias» (13) que os rapazes ripam; ai daquele que não conseguir ripar todo o linho chegado, mais ai também daquela que não conseguir chegar o linho necessário para ser ripado! A troça é geral, sujeitando-se o preguiçoso a uma aboilada (14) em forma.


Rancho Folclórico da Casa do Povo de Castelo de Paiva.

No fim do linhar continua a alegria, começando a dança ao som da harmónica e dos cantares como estes:

Rapazes e raparigas

Saltai todos p'ró terreiro,

Ou pequeninos ou grandes

Toda a palha enche palheiro.

 

Eu perdi o meu chapéu

No terreiro a dançar.

Minha mãe não me dá outro

Em cabelo hei-de andar.

 

Maria, minha Maria,

Maria, meu ai Jesus,

Um dia que eu te não veja

Nem a candeia dá luz.

 

Maria, minha Maria,

Maria, meu Manuel,

Tu és a minha canastra

Eu sou o teu canistrel.

/ 19 /

A seguir é levado o linho em molhos, chamados «augadeiros», para o rio, onde fica alagado 8 dias, findos os quais é estendido no monte, a secar.

Depois de batido com o mangual e de devidamente escolhido, retirando qualquer erva, é levado para o moinho e puxado a bois ou azenha movida a água, onde é moído e posto em maçadoiras.

Em seguida é estriado e tascado com a espadela e o cortiço onde são separados os tomentos – fibra mais áspera do linho – do mais fino, que por sua vez é assedado no sedeiro, onde fica separado o linho puro da estopa fina e da grossa.

Estas fibras são fiadas aos serões longos de Inverno à volta da lareira, onde crepita uma fogueira viva e acolhedora. O processo usado na fiação é ainda o antigo, por meio de roca e do fuso, onde o fio enrolado formando as maçarocas de que são feitas as meadas, que são curadas em barrelas de água a ferver e cinza, durante 15 dias.

Nesta fase as meadas vão sendo estendidas ao sol a corar, para o que devem ser sempre «escarriçadas»(15),  isto é, postos os fios direitos em canas; de contrário, seria impossível dobar em meadas logo que se apresentarem brancas.

Estas são dobadas nas «paráboas» (16) e postas em novelos que depois vão ser urdidos no tear, sendo os fios dispostos de tal maneira que, passados pelos liços e pelo pente, fiquem prontos a ser tecidos.

Nestes teares são tecidos panos de linho simples ou enfeitados de maneiras diversas (colchas, tapetes, mantas feitas de tiras, de trapo velho), cobertores de lã, etc.

Como estes lavradores vivem do amanho da terra, dela colhem quase tudo aquilo de que necessitam para seu sustento, tirando partido de tudo.

*

*  *

Os habitantes desta região são naturalmente devotos, mas um tanto supersticiosos, tendo uns dias certos para início dos seus trabalhos.

O dia mais aziago é a quarta-feira. Neste, não deitam palha nas cortes dos suínos, porque é mau agoiro. No dia de Reis não recolhem lenha para casa, senão entrarão juntamente cobras, que se espalharão por ela. Neste mesmo dia não pegam na agulha para coser seja o que for; de contrário, qualquer animal que nascesse nesse ano viria aleijado.

Para as suas culturas confiam cegamente na protecção de Deus, considerando os anos maus um castigo divino.

Quando, devido à escassez das chuvas, surgem longos períodos de seca, os lavradores alarmam-se, dirigindo preces ardentes ao santo da sua especial devoção, para que este obtenha de Deus a vinda da chuva.

São muito características as ladainhas feitas em procissão da igreja de Real até à capelinha de Santo Adrião, situada no alto do monte do mesmo nome, donde se avista um esplêndido panorama. De todos os lados serras a perder de vista, divisando-se perfeitamente, em dias claros, a vizinha cidade do Porto.

No regresso conduzem a imagem de Santo Adrião, em procissão, para a Igreja – onde permanece uns dias – até que a chuva volte; e, de facto, sempre que as preces são feitas, não há memória de esta ter faltado.

Esta igreja, construída em 1737, encontra-se a 500 metros a sueste do local onde dizem ter existido a antiga igreja e se ergue hoje a capela de Santa Cristina. A confirmar a tradição podemos apresentar uma doação, do ano de 1036, ao mosteiro de Arouca, em que a »Villa de Penella» aparece limitada pelos lugares de Nogueira, Azevido e Campo da Igreja. Ora a capela de Santa Cristina está actualmente situada precisamente junto de Penela, onde devia estar também nessa altura, pelo que se vê no referido documento. (17)

Na parte exterior da referida igreja, no lado sul da sua capela-mor, existe, ainda hoje, cavada na pedra, uma medida com o feitio da cauda dum porco e respectiva ligação e que os fregueses que matassem porco tinham de encher para dar de côngrua ao pároco.

Este tributo, a que no local se dava o nome de conhecença, deve-se aproximar do antigo costume de Sabugosa, descrito por Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, no seu «Elucidário», sob a designação de corazil, pois num cunhal da parede da capela de S. Mamede daquele lugar existia também uma concavidade, de forma rectangular, que tinha de ser cheia de carne de porco, pelos moradores obrigados ao pagamento da referida contribuição.

Quase todos os lavradores são, à sua maneira, astrólogos. Pelo vento, conforme se apresenta o céu ou pelo movimento das nuvens, permitem-se fazer as suas previsões com toda a convicção, regulando por ela os trabalhos agrícolas.

____________________________________ 

NOTAS:

(1) – É o primeiro documento conhecido em que aparece esta designação – «Port. Mon. Hist.» – Dipl et Chartae –

(2) – Emmanuel Celesia – Dell'antichissimo Idioma dé Liguri; Génova, 1863, pág. 16: «...come aren nel dialetto Bretone significa fiume (rio) Ia radice ar, ares, aren, trapela nel verbo arúxentá del nostro dialetto e suona lavare, scia equare. / 20 / «Risolando all sua primitiva radice, ci ocorre av ou ava, che nell'antico slavo vale aqua.

«Ar era adunque Ia radice dei fiumi (rios). Talora modificasi foneticamente in Av, Ava, Apa e Sava»,

(3) – Tombo do Mosteiro de Paço de Sousa (pág. 16-v., no Arquivo da Universidade de Coimbra).

(4) – Américo Costa, in «Dic. Geográfico de Portugal e Ilhas».

(5) – A antiga «Vila» não era em Sobrado mas sim em Nojões, lugar da freguesia de Real, onde ainda hoje se encontram restos da antiga cadeia.

(6) – Não conseguimos descobrir a fonte de informação de que Pinho Leal se serviu para atribuir a sua construção à Casa de Bragança. Certamente foi o facto de este edifício ostentar na fachada as armas daquela Casa que «era senhoria donatária de grande parte deste concelho. (In «Portugal Antigo e Moderno», Vol. IX).

(7) – Assim é conhecida a nobre família proprietária do Solar da Boavista.

(8) – As capelas a que se refere Pinho Leal (cit. ob., Vol. IX), umas, desapareceram; outras, encontram-se em completa ruína.

(9) – A Associação de Arqueólogas Portugueses, sobre as armas e bandeira do Concelho de Castelo de Paiva, formulou o seguinte parecer: «Armas: – de prata, com uma faixa de negro carregado por um cacho de uvas acompanhado de duas romãs, tudo de ouro, filhados e sustidos do mesmo. As romãs abertas de vermelho. Em chefe e contrachefe, duas faixas ondadas de azul. Coroa mural de prata de quatro torres. Bandeira azul».

(10) – É voz corrente que a entrada deste cemitério foi construída com os restos das ruínas da capela de S. Sebastião, existente no cimo da Vila e perto da qual também se diz ter existido um cruzeiro que foi destruído para a abertura da estrada que por aqui passa. Porém, não existe qualquer vestígio, nem da capela, nem do cruzeiro, nem mesmo do pelourinho que Pinho Leal diz ter existido «na rectaguarda da casa da Câmara (actual cadeia) e quase escondido a um recanto».

(11) – Procurámos aturadamente qualquer estudo sobre o tipo antropológico do homem de Castelo de Paiva. Nada encontrámos, porém, é que de facto, não existe estudo algum, segundo gentilmente nos informou o Dr. Alfredo da Costa Ataíde, professor no Instituto de Antropologia da Faculdade de Ciências do Porto.

(12) – Arrinca – Arranca.

(13) – Mancheias – pequeno molho, manada.

(14) – Aboilada – chacota ou zombaria ruidosa.

(15) – Escaniçar – desenriçar.

(16) – Paráboa – dobadoura.

(17) – Livro de D. Maior Martins, do Convento de Arouca, folhas 22-v. (Ver doc. I, na parte deste trabalho).

 

páginas 13 a 20

Menu de opções

Página anterior

Página seguinte