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N.º 5

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1968 

Apontamentos para um trabalho sobre a paisagem de Aveiro

Pelo Dr. Frederico de Moura

Médico e Licenciado em Letras (História e Filosofia)

Sempre que abordo um tema de paisagem topo, de frente, com a impossibilidade de ultrapassar a repugnância de a despovoar e de a dar, apenas, fisicamente, destituindo-a de antroposfera que a envolve e a modela, que a anima e transfigura.

E, ao mesmo tempo, não me agrada tentar transmitir um panorama povoado de figuras inertes como bonecos de barro colocados num presépio, a subirem por estradas de serradura, pastoreando rebanhos de loiça, ou navegando em lagos de papel estranho.


A ré do moliceiro com as suas figurinhas maliciosas.

Apraz-me ver a Geografia a procurar dominar o homem e o homem a lutar para vencer a geografia; gosto de procurar a impressão digital humana num campo de cultura amorosamente riscado e trabalhado com requintes de jardinagem, ou nas velas de um moinho que mói, infinitamente, o grão, alcandorado no cimo de um outeiro, como uma sentinela, e na margem afeiçoada de um canal que rompe, corajosamente, pelo meio da secura; preciso, insofridamente, de vislumbrar nos longes a mancha viva do casario, ou o caminho que se esfalfa pela montanha acima, ocupando, «improdutivamente», o solo.

Estes sinais que me põem diante dos olhos a escrita que exprime a luta da antroposfera, quer modelando a dureza pertinaz da litosfera, quer subjugando os ímpetos de hidrosfera, não me regalam, apenas, o sensório com a gulodice das cores e dos volumes e, ao contrário, põem em vibração toda a minha condição humana, desde os domínios da fogueira afectiva, até a zona mais gelada do glaciar racional.

Aos resultados desta luta do homem com o mundo físico envolvente chamou Leoncio de Urabayen «precipitados geográficos», importando da química nomenclatura para designar os produtos da reacção homem-geografia que insculturaram a superfície da ecúmena de um alfabeto rico de simbolismo e de uma pictografia perene de sentido estético.

Pois são esses «precipitados geográficos» o que numa paisagem serve de estímulo para me solicitar a pupila hiante da atenção e me fornece a lenha da quentura emotiva.

Se é certo que a paisagem geográfica, direi melhor, o suporte geográfico, pode, em grande parte, explicar a gente que o pisa com passos concretos e dolorosos, é certo, também, que não é passivamente que o bicho-homem aceita a condenação de lhe obedecer e de lhe acatar o determinismo que ele pretende impor-lhe, imperativamente.

Sem dúvida que o meio físico lhe condiciona a mão e a inventiva, despertando-lhe virtualidades soterradas e acordando-lhe o engenho sonolento; mas não deixa de ser certo, também, que não encontra sempre no homem a disponibilidade, dócil e servil, que aceite o achatamento; e, ao contrário, a maior parte das vezes, provoca nele uma viva reacção expressa em fadiga e suor que o leva a arrotear caminhos que pareciam intransponíveis, a desbravar selvas opressivas como renques de baionetas e a dominar loucas torrentes que, mordendo o freio, tudo arrasavam no caminho.

«Onde melhor se nota a influência da terra sobre o homem é na influência do homem sobre a terra», escreveu um dia José de Ortega e Gasset, numa síntese lapidar do problema, ao dissertar sobre a paisagem castelhana, tão desolada e tão seca, tão desalentada e tão triste, e que, mesmo assim, não foi capaz de siderar os movimentos do castelhano firme e pertinaz que, acariciando-lhe o lombo e regando-a com suor conseguiu dominá-la e vencê-la.

Realmente, o que o meio faz de essencial é dar o estímulo desencadeante que há-de aguçar o entendimento e temperar a energia para o homem dominar a natureza onde ela lhe mostrar o cariz carrancudo, ou para lhe aproveitar o afago onde ela se apresenta acetinada e material.

Claro está que o Gafanhão – ou o avô do Gafanhão – quando se foi às lombas para as cultivar sabia que ia investir contra vidro moído, totalmente carenciado de matéria orgânica que desse qualquer quentura / 16 / ao berço de uma planta. Ele bem via a mica a faiscar-lhe no lombo e bem sentia o vento a transmutar-lhe, de momento a momento, o versátil.

Não foi a ela com a esperança do filho que se achego ao colo maternal e ao seio opíparo que destila o leite da humana ternura. Nado disso! Ao invés, investiu com ela como enteado que não espera da madrasta a carícia rica de promessas, nem a generosidade que dá o pão milagroso...


Batatais viçosos - «negros de verdes», no dizer dos gafanhões.

Quem surriba chão de areia não encontra onde enterrar raízes de esperança e quem irriga duna virgem sabe que mija numa peneira! Quem lança a semente num ventre que é maninho não pode ter esperanças de fecundação. E, por isso, o Gafanhão, antes de cultivar a lomba, teve de corrigir-lhe a esterilidade servindo-se do Rio que lhe passa à ilharga, procurando nela a nata com que amamentou a semente que deixou cair, amorosamente, naquele chão danado. E humanizou a duna...

O mesmo, ou semelhante, fez o marnoto: foi-se à água informe, desordenada e caótico, e domesticou-a, enjaulando-a em tabuleiros que mais parecem brinquedos de menino. E, a água, no seu cativeiro, sob o sol escaldante e bafejada pelo nordeste, começou a evaporar-se e a deixar o Iodo, que lhe servia de leito, coberto de cristais coruscantes.

Quer a britar xistos e a fazer socalcos nas serras do Alto Douro para plantar bacelo, quer a engordar areias, aqui, à beira-mar, o drama é sempre o mesmo e gerado pelas mesmas causas.

E boas razões tinha o espanhol – como o espanhol bem tatuado pela dureza deste combate –, que se chamou José de Ortega e Gasset, para ler, como num livro aberto, o efeito da natureza sobre o homem nos efeitos da pertinácia do homem sobre a Natureza...

A paisagem que nos cerca é macia e acetinada. Um não sei quê de aguarela almofada a retina de um sossego repousante e calmo e, por muito que se trepe no relevo do distrito até ao cume dos montes, avista-se sempre uma nesga de água de superfície serena e polida a refrescar o conjunto de paz e de lirismo...

A visão sincrética, por vezes, dá uma fanfarra cheia de estridências metálicas onde o sol dardeja e se multiplica. Mas analisadas as gradações, soletrado o panorama no seu alfabeto constitutivo, logo se ameniza a estridência com sons magoados de oboé, da fruta e de ocarina, que regalam o sensório de um banho lustral de inocência.

O nosso panorama não tem, de um modo geral, funduras que dobrem os homens sobre si mesmo, introvertendo-os em densas meditações metafísicas catadoras de essências soterradas e, ao contrário, é estimulante para uma actividade extrovertida e confiante, comunicativa e grácil.

Os montes debruam-no, de longe, sem lhe confinar a visão; e não existem abismos de vale onde o homem se sinta esmagado por muralhas de pedra que o insulem numa soledade propícia a silolóquios intermináveis.

A Ria entende-se em canais, em esteiros, em valas, em fiozinhos de água, dividindo-se e subdividindo-se até ao capilar, entrando pela terra dentro, recortando-a e irrigando-a de água salgada, ou, pelo menos, salobra, e que se vai adocicando à medida que foge do mar e se estende, por aí fora, a servir de espelho a uma lavoura anfíbia que lança a semente ao chão e penteia o fundo lodoso das cales, que surriba terra até sentir os pés encharcados e pesca pimpões nas valas intercalares nos fugidios momentos de lazer.

Os longes de água são emoldurados por um debrum delgadinho – topo de planície raso povoada de casas alapadas – e tem-se a sugestão de que a terra se envergonha e se humilha perante a imensidade da laguna, esfumando-se e diluindo-se no horizonte de encontro ao perfil violeta dos montes das distância...

/ 17 / Em certas manhãs, doiradas pelo sol nascente, a Ria parece toda um espelho onde, apenas, um trémulo de evaporação – ténue e vibrátil – põe um vestígio de movimento ritmado.

E, então, os malhadais, os montes de sal, os palheiros exíguos e pintados a zarcão, duplicam-se, invertidos, nas águas quietas onde, de vez em quando, uma gaivota, maleabilíssima e ágil, raspa uma tangente quase imperceptível.

As pálpebras cerram-se sobre a pupila magoada por esta duplicação da luz que se remira no espelho da água e, no silêncio inundado de sol, o chap chap de uns remos, ou o golpe da ponta de uma vara que empurram o barco que desliza, põem uma nota fugidia de onomatopeia.

Um homem de músculos individualizados – como num quadro mural de anatomia – corre sobre a borda de uma bateira mercantel como se andasse sobre o asfalto de uma avenida. Visto de longe, recortado na luz diáfana da manhã que lhe aviva as linhas e delimita os contornos, não sabe a gente se tem na frente um ginasta, se um bailarino. Os pés parece que não pisam e os movimentos de vaivém, desembaraçados e leves, semelham passos coreográficos.

Com a vara fincada no ombro, a empurrar, inclinado em ângulo muito agudo sobre a borda, os músculos retesam-se, fazendo proeminência e o suor cobre-lhe a pele de um verniz que brilha e corusca, enquanto o barco negro escorrega, sereno, sobre a superfície de aço polido.

O moliceiro! Deixemos-lhe lá a origem para os catadores de raízes; entreguemos-lhe a árvore genealógica aos pesquisadores de impossíveis e fixemos os olhos no seu perfil de agora, presente sobre o alçado da nossa visão, a bolinar quase contra o vento, todo empertigado na sua proa policromada de ornatos e figurinhas polvilhadas de ironia e de malícia, a ilustrar textos ingénuos salpicados de harmoniosos erros de ortografia.


A proa polvilhada de ornatos e figurinhas.

Deslizam na água, vaidosos e vibrantes, com os ancinhos descomunais a arrastar, com a borda rasando o lume de água, sob o peso do moliço de um verde fresco e intenso, a vela a panear tacada pela aragem levezinha, quando viram de rumo para novo bordo.

Homens da terra a pentear o leito da laguna para fertilizar as dunas – vidro moído ainda há poucos anos estéril, ainda há poucos anos maninha – terra que parecia gafada, a terra da Gafanha!

Foi o moliço ou foi o suor humano que fecundou as areias picotadas de mica brilhante? Foi o Iodo, a Ria ou a fadiga dos homens que realizou o milagre que, agora, reverdesce sobre o nosso olhar, nos batatais viçosos («negros de verdes», dizem os gafanhões),  e nos feijoais delicados como placas de jardim?

Onde vai a flora cinzenta como quaresmas e o juncal agressivo como coroa de espinhos, que entristeciam os olhos e agrediam a epiderme? Quem fez o milagre?

Foi o labrego que, posto o pé na tosta, se fez marinheiro de águas mansas, mareante de lagoa / 18 / adormecida, e aproveitou o Nilo fecundante da laguna para emprenhar o ventre da terra arenosa que parecia excomungado e que, afinal, tinha humidade e quentura para fazer germinar a semente humilde e seca que lhe lançaram no dorso.

Algas e peixe podre para enterrar, Iodo para impermeabilizar o fundo da regadeira, e aí está a comedoria que serviu de mantença ao milagre das Gafanhas – tapetes infinitos de verdura, alfobres de pão para a fome dos homens e de bandeiras floridas para voracidade dos bois ruminar nos invernos desolados...

Com enxadões desmedidos fazem surribas que vão ao centro da Terra! Nasce-lhe água sob os pés descalços, água salobra que pode meter medo à puerícia da novidade mas que, no final de contas, a acaricia com desvelos de ama de leite. E, só depois, é que vem a tarefa de incorporar, na terra remexida até ao tutano, o moliço que, com o suor adstringente do rosto, arrancam do fundo gordo dos canais e deixam ficar no areal da borda, durante o tempo necessário para lhe corrigir o tempero excessivo.

Vejo-os, como brinquedos, os moliceiros, a flutuar à flor das marolas, ou, preguiçosos, sobre o espelho das águas, e sinto o drama da terra faminta de matéria orgânica a escancarar a bocarra num esgar hiante para o trabalho duro destes homens obstinados que nunca desanimaram ante a negativa hostil da duna que, na sua nudez desoladora, nada prometia em troca.

A humanização da paisagem de Aveiro sugere qualquer coisa de actividade lúdica, de esforço manobrado pela mão da inocência criadora da infância que se compraz em regalar os olhos com o produto da sua energia. O pragmatismo, aqui, surge corroborado por uma moldura doirada de beleza e aconchegado pelo calor de uma visão que amacia o sensório.

O cagaréu foi-se à água informe e desordenada e domesticou-a dentro de rectângulos de uma esquadria rigorosa, realizando uma paisagem geométrica com murinhos pueris de Iodo que parecem riscados a régua e esquadro.

É a humanização geográfica mais epidérmica que conheço e, consequentemente, a mais frágil e vulnerável.

Em cada ano estes marnotos-geómetros têm de refazer tudo desde o princípio: a água tem de ser novamente domada nos seus ímpetos arrasantes e contida no viveiro para ser, depois, usada por conta-gotas e, com ela, formar camadinhas de espelho que estende pela planície fora... Ali se armazena a água e começa a condensar-se para a via sacra que tem de percorrer: algibé, caldeiras, sobre-cabeceiras, talhas, cabeceiras, meios de cima...

É um penoso calvário em que cada dolorosa etapa foi baptizada e tem o seu chamadoiro: o marnoto sua a fralda da camisa a estranger os meios à força de ugalho, a almanjarrar a lama que o inverno depositou, a bimbar os travessões, a apancar as próprias pegadas, a curar o leito dos tabuleiros, à força de círcio... É um nunca acabar de fadiga até à festiva botadela do sal... Mas por fim, quando a marinha começa a produzir, quando o sal cintila e o codejo crepita, estendem-se os olhos e é um nunca acabar de espelhos que faíscam lume e endurecem numa cristalização almofadada de brancura. E, em dado momento, montes de neve alvíssima começam a crescer, a recortar-se sobre o azul e a repercutir-se na água lisa, como seda, a sua imagem imaculada.

Só a fita estreita do malhadal separa os dois cones unidos pela base – o que, concreto, se eleva para o céu e o que, reflectido, se mergulha na água que o recebe depois de o ter dado.

Um não sei quê de estranho se descobre nesta paisagem de sonho que corusca, emitindo fogachos doirados para uma atmosfera clara e inundada de luz.

Tapetes infinitos de verdura, alfobres de pão.


De noite, quando a lua-cheia vem cobrir tudo de alumínio com a sua luminosidade fria, abre-se, em frente dos nossos olhos, um panorama surrealista / 19 / – visão onírica onde se não cata um vulto, nem um fantasma, e onde, apenas, algum maçarico noctívago abre o bico numa queixa desolada de mágoa. Uma névoa translúcida tremula a esfumar a nitidez como um vidro despolido que oxida a prata do luar; e a água parece dormir, tão branda e macia é a sua respiração. Só, de tempos a tempos, se ouve um suspiro mais fundo, quando qualquer peixito tresnoitado risca a camadinha ténue de um tabuleiro com o seu perfil incisivo e nervoso. 

Mas um clarim estridente vibra na madrugada de luz indecisa que luta com a cinza envolvente, quando o sol surge na linha do horizonte, vermelho e pagão, a tingir a cor macilenta da ante-manhã com o escorrer dos seus lampejos de rubi.

Como uma donzela violada, a paisagem aquática estende a luz, descarada e crua, a sua nudez recatada e o nocturno, lírico e pudico, é despertado e sacudido pelos sons da fanfarra que lhe arranca das cordas a surdina discreta.

Toda a Ria desperta e se povoa de barcos e de vozes. Pelos esteiros rangem as remadas nos escalamões enquanto os vertedoiros botam fora a água das cavernas, chap que chap, a salpicar o polido da laguna.

Afadiga-se a lavoura marginal sobre os caules acariciando as folhas, a cuidar das plantinhas de mama, ou a catar os indícios da novidade; os marnotos reiniciam a faina e esperam, a pé firme, a torreira que, daí a pouco, lhes vai cair em cima, inexoravelmente, com o nordeste que abre sobre os meios a boca de uma fornalha incandescente, cobrindo de uma viscosidade de unguento as expressões dolorosas destes homens que correm, afadigados, sobre os murinhos inverosímeis, em prodígios de equilíbrio.

Quando vem o Outono toda a brancura se cobre de burel, engaboando-se de bajunça, e a paisagem toma um ar franciscano de penitência. Um banho de cinza tolda o azul de melancolia e o vento sul encrespa a água de marolas que lhe dão uma cor de zinco, que roem o torrão dos malhadais e arroteiam os muros delgadinhos de lama.

A faina parou, petrificada pelo frio que vem encanado pela boca da barra e enregelou os gestos num espasmo.

Certo é que, se as nuvens enfarruscadas que tapam o céu adregam de abrir um vitral, um banho quente de luz e de púrpura derrama sobre a nudez aquática uma paleta opípara de cor e a própria estamenha que veste as mulas de sal escorre oiro rutilante sobre a flor da mareta.

A água! Sem ela a paisagem torna-se mais pobre e mais triste!

É a sua frescura que, pela regadeira fora, animada de movimentos vermiformes, vai molhar o pé do milho que floresce na sua bandeira e engorgita a espiga bordada de ruivo; é ela que, pela caneja de três tábuas vai animar a roda da azenha que move a atafona ao mesmo tempo que deixa, a vibrar na verdura, o som magoado e lírico da frauta do pastor; é ela que, / 20 / rompendo pela secura, almofada o fundo do barco que singra na sua superfície de prata; é ela que, domada e amestrada pela mão de ferro da técnica, serve de fonte de energia, como serviu de fonte de beber; e é ela, ainda, que, quando se exaspera arrasta na sua frente a cabana e o rebanho, as culturas rasteiras e as árvores gigantes.

De água são algumas das coordenadas da História e dão pelos nomes de Nilo, de Tigre e de Eufrates, de Tibre e de Jordão; o Nilo a cobrir de nata os campos do Delta e a chocar a civilização; o Tigre e o Eufrates a estimularem o engenho do homem que com eles irrigou os campos de cardos da Mesopotâmia; o Tibre a servir de espelho ao narcisismo da Roma Imperial; e o Jordão a correr lá nas funduras da terra e a fornecer a água lustral com que a concha de João baptizou o Cristo...


Os moliceiros deslizam na água, vaidosos e vibrantes de côr.
 

Pelos tempos fora o homem foi Narciso e a água espelho, o homem foi sede abrasadora e a água refrigério, o homem foi semeador e a água ama de leite. E, não contente com isso, foi sobre ela que instalou a palafita como é à tona dela que hoje ancora a champana.

Os homens da região vivem na paisagem. Dispondo de um chão pouco sólido para peanha, são fugidios e esvaem-se como enguias. Tanto estão aqui como na Terra Nova, tanto espairecem na malhada de Ílhavo como se insulam no bote, nos mares da Groenlândia. Avenida ou convés é para eles a mesma coisa; cama doméstica ou beliche exíguo, tanto faz, para conciliarem o sono bem merecido.

E, no entanto, não há, suponho eu, terra mais humanizada do que a nossa. Se cair do céu um alfinete, é certo e sabido, que não cai em nenhuma brenha, nem em nenhum chaparral. Vem, com certeza, cravar-se numa terra farta de pão, numa vinha viçosa e pagã, numa salina caiada, se é que não vem direita a um cortiço de gente – tão apegadas são as povoações umas às outras. Como em camândulas de rezar sucedem-se, por exemplo, as Gafanhas: Gafanha de Aquém, Gafanha da Encarnação, Gafanha do Carmo, Gafanha dos Caseiros, Gafanha da Vagueira, Gafanha da Boa-hora, Gafanha do Areão..., etc.

Mesmo se a gente arranca daqui, da beira-ria, e investe pela Bairrada dentro, o mesmo fenómeno ressalta e se impõe.

Quem desce do Buçaco, que uns humildes monges silvicultores transformaram, aos poucos, num paraíso de verdura e de sombra e desemboca na terra bairradina onde os «bairros» que lhe dão assento de baptismo e segregam vinho espesso através das cepas alapadas e estorcidas que na vindima emprenham cubas e tonéis com seus cestos opíparos de baga rica de sumo, aí temos uma terra tão humanizada que não deixa uma nesga para nascer uma urtiga ou para uma silva estender o braço, a dar amoras que possam competir com as uvas.

As povoações sucedem-se em «lagarta» ao longo das estradas – casas alapadas, vergadas sobre a terra, / 21 / como se a planície desse a medida e o tipo da construção.

Só, muito acidentalmente, se cata fachada solarenga com lavras de pedra patinada a impor respeito e a dar tom de fidalguia. E, mesmo as igrejas, são, de um modo geral, edifícios esparrinhados de cal branca, onde só se cata pedra nas aduelas dos portais e das janelas e, essa mesma, constituída por cantaria de calcário de Ançã, ainda em clorose de adolescência.

Uma vez por outra, a monocardia uniformizada das aldeias é conspurcada, aqui e além, por construção de estilo banqueiro a enodoar de mau gosto a humildade lavada do casario que se alinha no topo dos vinhedos, ora desolados no inverno que lhe deixa as ossadas a negrejar no meio da argila vermelha, ora engalanadas da verdura mais incrível que os olhos podem topar, quando a primavera lhe vem puxar pela seiva e arrancar-lhe vergônteas da cepa corcovada.

Para o Sul, tão pegados estamos à Gândara, que trincamos as camarinhas do Pinhal da Tocha que as gandaresas vêm apregoar, com voz cristalina, pelas aldeias e vilas humildes e, até, no coração do distrito onde, ainda, encontram freguesia para o açafate onde o saco branco e grávido de pérolas, ressuma frescura doce e macia.

Passamos a vila de Vagos logo começa a cheirar à resina das matas gandaresas; e são patentes as afinidades entre as populações, quer na indumentária discreta das mulheres, quer nos métodos de lavoura e na eleição das culturas.

É uma extensa região de chão arenoso, chata como um tabuleiro, onde, aqui e além, ondeia uma lomba enfeitada de pinheiros, toda cultivada a milho cagão e a feijão manteiga, ou a batatais viçosos e ramalhudos. Também aqui, a gente não deixa palmo de terra por esgravatar. E, como formigueiros, os povoados sucedem-se, alapados nas dunas enfarruscadas pelo cultivo que, cobrindo-os de poeira, lhe comunicam um sombreado baço de cinza. Um contraste dissonante se estabelece entre a verdura rica dos campos e a estamenha monástica das aldeias onde o gandarês come o caldo amargo da mantença e estende o corpo fatigado para o repouso merecido, após um dia de lavoura encharcada de suor.

Esta humanização intensiva da paisagem aveirense que não deixa, à grama, nesga de chão para aflorar, tem, aqui e além, as suas barbas brancas de anciania – de uma anciania que enterra, fundamente, as raízes na pré-história e na história.


A faina do sal.

Mas, para catar esses indícios, para desenterrar estas ascendências veneráveis, não há remédio senão trepar a gente no relevo do distrito, guinando para o interior, à procura de Antas e petroglifos na serra do Arestal, de motivos de meditação histórica no Castelo da Feira ou no Convento de Arouca, e a esgravatar, às mãos ambas, na terra gorda do Cabeço do Vouga, onde já afloram vestígios bem capazes de dar alento às ganas insofridas dos arqueólogos.

Mas, cá para baixo, se descermos até à orla onde as ondas rendilham prodígios de espuma, para além do Convento de Jesus e pouco mais, não há outro remédio, para sondar alguma coisa, que não seja o de esfregar as córneas em leituras paleográficas sobre papéis que vêm do tempo da Mumadona e dão a certidão de idade da nossa paisagem actual.

Mas, quer os testemunhos concretos que fazem saliência na crosta, quer os documentos que é preciso passar a pente fino, depõem expressivamente e cheiram ao suor do homem que investiu com os penedos da altura para os insculturar ou afeiçoar e que amassou a lama para modelar salinas que esmaltam o horizonte de brancura.

 

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