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N.º 3

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1967 

 

As «Janeiras», as «Pastoras» e os «Reis»

Pelo Dr. António Tavares Simões Capão

Professor do Liceu Nacional de Aveiro

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Os magos seguem o caminho do templo.

b) A EXALTAÇÃO DOS MAGOS

GASPAR – A estrela, a estrela além, a nossa estrela, Senhor, como são grandes os vossos desígnios, pois nos tens provado que, por maior e poderoso que seja o homem, por mais forte e majestoso que seja o rei, nenhum será tão grande e tão forte como vós (19), Senhor!

Herodes, grande rei, senhor das doze tribos de Israel, poderoso rei de Judá, grande aliado de César Augusto, Imperador de Roma, senhor do mundo, a quem quase todos os povos e nações se têm curvado e pagam o seu tributo; mas que vale ser grande se Deus nos confunde? Que vale a força, sem o poder de Deus? Herodes, grande rei, Deus não quis que tu soubesses ocultar a tua malícia aos caldeus (20) do Oriente. Ainda há pouco nos apontaste um caminho, com o fim de nos enganares; foste-nos infiel, Herodes, mas Deus deixou-nos ver a tua maldade; Deus quer que se cumpra a sua palavra; que a passagem dos reis do Oriente: Arábia, Idaspe e Egipto (21), pela tua nação, seja uma vitória inconfundível, porque, muitas vezes, não é com o poder de grandes legiões que se ganham batalhas. A nossa passagem pelo teu país ficará gravada nas páginas da história universal, através dos futuros séculos. Nós, os Magos do Oriente, não vimos ao teu país buscar o teu ouro nem as tuas grandezas; nós, os Magos, não queremos as tuas legiões para nosso auxílio; nós não queremos a tua aliança para nossa defesa; nos nossos países não costumamos usar do sangue das vítimas nem de humilhar o fraco para distracção do verdugo. Vimos ao teu país como peregrinos, não como guerreiros; não temos interesse em derramar sangue inocente nem em alargar os nossos domínios; a nossa vontade é a vontade de Deus todo poderoso. Em Deus existe todo o poder; de Deus tudo quanto é grande e sublime; nós respeitamos esta pátria imortal de David. Senhor, (22) guia-nos até Belém, que é lá onde devemos encontrar o berço do teu santo filho, a que (23) beijaremos os seus pés e adoraremos o seu corpo.

Companheiros meus, como irmãos, eis a nossa ditosa companheira, eis o astro que novamente nos aparece, o sol dourado, que, escaldando as altas montanhas das / 36 / nossas pátrias, veio nascer sobre os altos minaretes dos nossos castelos; e, penetrando as janelas dos nossos palácios, veio dar-nos o sagrado aviso de que a devemos de seguir; seguimo-la (24), pois. Avante, companheiros, por Deus, por Deus e pela nossa fé.

DISCURSO DOS REIS MAGOS À FRENTE DA IGREJA

GASPAR – Eis que o fulgurante astro luminoso e divino parou e não ousa ir mais além. Firmamo-nos (25) bem no centro da estrela e vejamos que o menino que apareceu nas longínquas terras orientais é o mesmo que se nos depara no meio desse astro luminoso e divino. (26).

Senhor, nós vos damos graças, por nos teres guiado até junto do berço do teu santo filho, e porque nos fizeste chegar ao fim de tão penosa, mas santa peregrinação. (26a)

Ó povo de Israel, venturosos descendentes de Abraão e de Jacob, já sobre a venturosa terra de Judá, desceu o Deus forte, o Deus poderoso que há-de levar o glorioso estandarte por todo o Oriente. Olhai-o, é este o vaso humano que contemplam os vossos felizes olhos e encerra o ser imortal e poderoso de Jeová.

Semeai flores e palmas ante os passos de sua santa Mãe; cantai cânticos (27) de Hossana pela glória do filho. Correi piedosas mulheres, justos acólitos (28), sábios sacerdotes, poderosos escribas, correi e espalhai tão fausta nova pelos dilatados confins da Palestina. Filhos de Jerusalém, vesti vossas galas, adornai-vos, como na festa de Ázimos, cantai como na Festa dos Tabernáculos, derramai óleos e essências, como nas bodas dos príncipes, porque tudo isto, e quanto façais em honra à nossa anelada vinda, será pobre, será mesquinho, para obsequiar o Messias que foi anunciado pelo profeta Daniel, há sete séculos; do Messias, por quem, tão ansiosos, esperavam nossos pais, que não tiveram a dita de ver cumprida a palavra do Senhor. Mas nós, os Magos do Oriente (29), quis Deus que os nossos olhos vissem este dia tão belo que ficará cinzelado para sempre nas sagradas páginas dos livros santos. Por tudo isto, desçamos das nossas selas e vamos oferecer-lhe o nosso ouro, o nosso incenso e a nossa mirra.


Um aspecto do cortejo, que, com muita animação, se aproxima da igreja.

BALTAZAR – Israel, Israel, povo escolhido do Sinhor, de entre vós acaba de nascer o tão desejado Messias; acaba-se de cumprir a palavra de Jacob; lá na minha real casa, existe um livro que eu e os meus vassalos veneramos com todo o respeito, porque vem das tradições hebraicas e diz, num dos seus capítulos, que, da árvore de David, nascerá o redentor do mundo; que será dado à luz por uma virgem, e eis que, dentro em pouco, virá aquele por quem vós tanto suspirais; e nós vos rendemos graças, Sinhor, por nos teres (30) dado vida, força e coragem, através de tão longos caminhos e tão penosas viagens, para assim termos a dita de chegarmos ao berço do teu santo filho; para lhe oferecermos as nossas ofertas (31): ouro, incenso e mirra; por isso, os nossos corações cheios de júbilo

e alegria não cessam de exclamar: graças vos rendemos, / 37 / ó Deus todo poderoso, rei do universo, que assim escolhestes estes três guias do teu povo, para lhe (32) mostrares as grandezas do teu enviado que resgatará os povos e as nações da escravidão dos Pagãos e dos gentios.


O velho Simeão fala junto ao presépio vivo, no adro da igreja.

BELCHIOR – Sinhor, Deus de Isac, Abraão e de Jacob, vós quisestes, ó grande Jeová, que o meu povo tivesse também lugar no vosso reino. Eis Helipolis (33), capital da minha pátria, cidade do sol, com seus galhardos minaretes, pérola do Egipto, cidade natal de Moisés, onde os seus profetas vos ergueram um templo à semelhança da vossa casa santa de Jerusalém. Vós sabeis, Sinhor, que tudo, no meu país, é grande e majestoso; é lá que se criam os cavalos para servir nas legiões de Roma; e é lá que vão buscar perfumes para ungir os mortos; também lá foi visto o sinal do Sinhor e essa estrela maravilhosa vós a fizeste (34) aparecer no meu país, com um brilho incomparável até hoje desconhecido pelos meus sábios.

Como é grande o vosso poder, Sinhor!

Companheiros meus, como irmãos, reverentes e compenetrados, desçamos das nossas selas para oferecer ao Deus-Menino o nosso incenso, a nossa mirra e o nosso ouro, por Deus e pela nossa fé.

À porta da igreja está armado um presépio grande, com duas crianças simbolizando Nossa Senhora e S. José; antes de os reis desmontarem, o velho Simeão torna a falar:

SIMEÃO (fala junto do presépio, à porta da igreja) – Agora é que vós Sinhor, podereis deixar morrer em paz este vosso humilde servo, pois que os meus olhos viram o Salvador que vós nos destes e a quem destinais para estar exposto à vista de todos os povos, como a luz das nações e a glória de Israel.

Este é o Salvador do homem, o facho divino que veio derramar os claros raios da sua luz, sobre as espessas trevas que envolvem a humanidade.

Ó mãe feliz! Teu santo filho será o sol resplandecente que dissipará as trevas de Israel; objecto de glória para uns, motivo de perdição para outros; o seu santo nome será alimento do fraco e o temor do forte; e tu, ó Santa Mãe, que o trouxeste no teu seio bendito, verás trespassada a tua alma maternal pela acerada ponta de uma espada. Tu és a mãe do Messias, deixa que beije as tuas santas mãos (vai beijar o Menino e, depois, diz:) Bendito seja para sempre o nome do teu santo filho que se chamará Jesus. / 38 /


Presépio vivo montado à porta da igreja, onde a estrela parou.

A VIDA DO CORTEJO

Depois do encontro dos Reis Magos, um anjo sobe entre a verdura de um carro engalanado e canta uns versos acompanhados a música. Cf. p. 4.

Nos intervalos em que não falam os Reis, exibem-se ranchos de crianças, e outras danças, entre as quais se destaca a dança do Rei David; esta dança com os seus cortesãos, ao som da harpa, que ele próprio tange. A música desta dança composta para esse fim, não tem letra e apresenta duas variantes. (35)

Em conjunto, cantam todos, os versos adaptados ao assunto, por vezes belíssimos; o cortejo, cheio de cor e vida, desliza pelas ruas, lentamente, ao som de cânticos festivos referentes ao Natal.

Pastores, englobando homens e mulheres, cantam, muito compenetrados do seu papel. Aparecem vestimentas de todos os géneros; desde o garrido e alegre vestuário da minhota, até à antiga vestimenta austera da região, composta por chapéu de aba larga, mantéu e saia de serguilha. Aparecem raparigas vestidas de peixeiras, de galinheiras da Murtosa; rapazes enfarinhados, fazendo de moleiros, ou levando a serra grande dos serradores ambulantes, ou ainda, levando ao ombro uma espingarda, um cinturão cheio de cartuchos à cinta, e, pendurados deste, dois ou três coelhos vivos, caçados no curral...

É um dia alegre, o dos Reis Magos; mesmo aqueles que nada deram como oferta, não faltam à arrematação para comprarem alguma, concorrendo assim; e isto não se dá só com as pessoas da terra, mas com a gente de todas as povoações vizinhas. / 40 /

POESIAS CANTADAS PELOS PASTORES NO CORTEJO DOS REIS (36)

           I

Ultimamente é chegado

o tempo das profecias

anunciaram a vinda

do sacrossanto Messias.

 

           II

Glória a Deus lá nas alturas,

diz o Anjo do Senhor.

Paz aos homens, sobre a terra,

Já nasceu o Redentor.

 

           III

Na terra da Palestina.

nasceu o manso Cordeiro

a quem hoje, o povo crente

Chama Cristo Verdadeiro.

 

           IV

Vêm nobres, ricos e plebeus

vêm também os povoléus

adorar o Deus-Menino

que nasceu entre os hebreus.

 

           V

Foram a casa de Herodes,

por ser o maior reinado,

que lhes ensinasse o caminho,

onde foram enganados.
 

           VI

Herodes, como malvado,

como preverso, maligno,

às avessas ensinou

aos santos Reis o caminho.


VII

Mas os Reis, que eram santos.

uma estrela os guiou;

só ao pé da cabaninha

a estrelinha parou.

 

           VIII

Pelo Anjo S. Gabriel

mandou Deus anunciar

que do ventre duma Virgem

Viria o Verbo encarnar.

 

           IX

Do mundo fujam as trevas

desta triste escravidão

já rompeu a aurora bela

que nos trouxe a redenção.

 

           X

Mandou Deus anunciar

pelo profeta Isaías

que do ventre duma Virgem

viria o santo Messias.

 

           XI

Que os nossos tronos deixámos

sem nisso sentir pesar.

pela grande fé que temos

de Jesus ir adorar.

/ 42 /


O rei David com a harpa e os componentes da sua dança. Este é um dos grupos anacrónicos
da representação dos Magos.


O rei David e o seu séquito dançando ao som da harpa.


Raparigas vestidas com fatos garridos do tipo minhoto que tomaram parte no cortejo, levando as suas ofertas.


Grupo de tomou parte no cortejo; mulher vestida com traje antigo; chapéu de aba larga, lenço, mantéu
ou capoteira e saia de serguilha de oito varas.
No cesto de vime de duas cores, tem a roca e o fuso.
Nota-se a algibeira da rapariga que é de várias cores.

JÁ NÃO HÁ QUE PERDER TEMPO 

            I

Já não há que perder tempo,

lá está o astro divino

que sempre nos tem guiado;

seguimos nosso caminho.

 

            II

            CORO

Vamos pastores e reis

não tenhamos mais

demora o Messias é chegado,

ditoso quem o adora.

 

            Ill

Somos lá do Oriente

viemos, com toda a nossa fé,

em procura do rei dos reis,

queremos-lhe beijar os pés.

            CORO...

            IV

Já não há que perder tempo,

é chegado o Redentor;

vamos, alegres, exultá-lo,

que vem em nosso favor.

            CORO...

           

            V

Senhores não se admirem,

é verdade incontestável;

lá nas terras de Belém,

nasceu o Messias amável.

 

            CORO...

 

            VI

Adeus, ó Jerusalém,

Já é tempo de marchar

em procura do Messias

que tudo bem reformar.

 

            CORO...

 

            VII

Já sentimos suaves cheiros

do Messias desejado,

nossa jornada é feliz,

tempo tão bem empregado!

 

            CORO...

 

            VIII

Ó Mãe de Cristo, salvai-nos;

S. José, rogai por nós;

ó Deus do céu e da terra,

recebei-nos para vós.

 

            CORO...

            IX

Vamos, com todo o respeito,

adorar o Deus-Menino;

Já o vimos no presépio,

certo foi o nosso destino.

            CORO...

 

            X

Montes, vales e campos

atravessamos sem custar,

sem saber onde estava

O que vamos adorar.

 

            CORO...

 

            XI

Ó que alegria é a nossa

que sentimos no coração:

ir adorar Pai e Mãe

que há-de dar o perdão.

Animados pelo amor

Visitai a Virgem Mãe

De que nasceu o Messias

No presépio de Belém.

Cantam anjos nas alturas,

Glória a Deus Redentor;

E na terra, as criaturas

Cantam hinos ao Senhor.

(Continuação no n.º seguinte >>>)

_____________________________________

NOTAS:

(1) – O arranjo que vou apresentar é do Sr. Manuel Simões da Silva, um proprietário da aldeia, baseado nos papéis dos Reis de Ouca, de Nariz e na obra de Pérez Escrich. O Mártir do Gólgota. A recolha das músicas devo-a à dedicação incontestada do Sr. Professor Manuel Martins Belinquete.

(2) – Tibre por Tigre.

(3) – Notar a incorrecção do emprego da forma verbal fossem por fôsseis.

(4) – Por Hidaspe.

(5) – Susa, capital do antigo Elam ou Susiana antigo estado vizinho da Caldeia. Os seus reis sustentaram depois Babilónia contra a Assiria. Sob o governo de Dario, este estado foi uma satrapia.

(6) – Esta figura do Anjo, que no manuscrito da Borralha corresponde ao Anjo da Aparição. aparece-nos na Palhaça, no cimo de um carro todo enfeitado de verduras, informando-nos sobre a sua proveniência e convidando os pastores – tudo isto, é claro, por meio do canto, cuja música se transcreve a seguir.

(7) – A guarda de honra de Herodes é formada por rapazes vestidos com as fardas modernas dos soldados que empunham espingardas caçadeiras. À frente deles está um oficial vestido com uma farda napoleónica e segurando uma espada. Pode / 44 / comparar-se a fotografia inserta no final da pág. 34 com a que Armando Coimbra inclui no seu trabalho «Os Presépios ou Autos Pastoris da Figueira da Foz», p. 119.

(8) – Entenda-se cada um a sua.

(9) – Notar a discordância do tratamento: Majestade... à tua.

(10) – Período de construção imperfeita, pois a primeira oração não tem predicado.

(11) – Notar a discordância do tratamento.

(12) – Entenda-se: Baltazar, Gaspar e Belchior.

(13) lhe por lhes.

(14) – Ver «Aveiro e o seu Distrito», n.º 2, p. 64.

(15) – O mesmo que Babilónios.

(16) Cambra por câmara.

(17) Comprir por cumprir.

(18) – Estamos perante uma composição nitidamente popular: estrofes de quatro versos de sete sílabas; alguns destes são bastante irregulares, pois, no conjunto, e para a contagem das sílabas, é necessário umas vezes fazer elisões, outras não. O assunto é religioso e constitui um tema bem vincado na tradição poética portuguesa. Pelo que na composição existe de espectacular e teatral permito-me aproximá-la, não sem vincar a pobreza de construção e de vocabulário, do extraordinário poema ultra-romântico de Soares de Passos. «Anjo da Humanidade». E, se ao ultra-romantismo também interessava o tradicional e popular, não terá este autor conhecido alguma composição do género? Ou terá o povo conhecido esse poema como conheceu o «Noivado do Sepulcro»? Qualquer das hipóteses por mim formuladas não deixa de ser aliciante.

(19) – Ver a discordância do tratamento: Senhor... vossos... (tu) tens... vós.

(20) – O mesmo que Babilónios, isto é, os Reis Magos; cf. nota 12 e nota 20.

(21) – Quer dizer: da Arábia, da Pérsia e do Egipto.

(22) – Dirige-se ao céu.

(23) Que, por quem.

(24) Seguimo-la por sigamo-la.

(25) Firmamo-nos por firmemo-nos.

(26) – Cf. Gil Vicente, in «Auto dos Reis Magos».

(26a) – Notar a discordância do tratamento: Senhor... vos...  teu... fizeste.

(27) – Notar a obliteração.

(28) Acólita por acólito. O nome passou a ser comum-de-dois.

(29) – Quer dizer: Mas a nós, aos Magos do Oriente – é digno de se notar o anacoluto.

(30) – Note-se a discordância de tratamento.

(31) – Presentes. Notar a aliteração.

(32) Lhe, se se referir a povo, mas lhes, se a três guias; o emprego do lhe por lhes, aliás, tem carácter popular e arcaico.

(33) – Por Heliopolis.

(34) – Fenómeno de ultra-correcção: fizeste por fizestes.

(35) – Veja-se a música seguinte, uma das variantes.

(36) – Algumas composições como esta e a seguinte, são longas, isto é, formadas por muitas estrofes, o que está de acordo com o andamento lento do cortejo até à igreja.

 

páginas 29 a 44

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