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N.º 2

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1966 

 

Antologia Aveirense

JAIME DE MAGALHÃES LIMA

 

 

NOTAS BIOGRÁFICAS

 

Nasceu em Aveiro, em 15 de Outubro de 1859. Matriculando-se na Universidade de Coimbra, concluiu o curso de Direito de 1880. Desde muito novo que se dedicou ao estudo dos grandes problemas sociais, sempre absorto na contemplação da Natureza.

Em 1892 foi eleito presidente do Município de Aveiro.

A sua conferência sobre o crédito agrícola em Portugal, realizada em 1899, na Real Associação de Agricultura Portuguesa, causou sensação. Fez várias viagens pelo Mundo, tendo percorrido a Espanha, França, Itália, Áustria, Inglaterra, Bélgica, Suiça, Holanda, Norte de África e Rússia, onde visitou Tolstoi.

Além de assídua colaboração nos jornais A Província, Novidades, Repórter, Nacional, Jornal da Noite e Diário Ilustrado, e nas revistas Lusitânia, Portucale, Revista de Portugal (de Eça de Queirós), Vitalidade e Seara Nova, deixou numerosos artigos e monografias dispersos nas colunas do Boletim da Real Associação Central de Agricultura Portuguesa, Revista dos Campos, Portugal Agrícola, Revista Florestal e Revue Politique et Parlamentaire. Publicou: Estudos sobre a Literatura Contemporânea (1886); O Sr. Oliveira Martins e o seu projecto de fomento (opúsculo 1887); A Democracia (estudo sobre o governo representativo, 1888); Arte de Estudar (trad. do inglês, de A. Bain – 1888); Cidades e Paisagens (1889); Doutrinas de Leão Tolstoi (1892); Jesus Cristo (trad. do francês, de Didon – 1894); Transviado (1899); Notas de um provinciano (1899); Elogio de Edmundo de Magalhães Machado (1900); O Sonho da Perfeição (romance 1901); As Vozes do Meu Lar (1902); Na Paz do Senhor (romance 1903); O Reino da Saudade (romance, 1904); Via Redentora, Apóstolos da Terra, Servo e Menor, S. Francisco de Assis e os seus Evangelhos (1908); A Guerra (depoimento de herejes, 1915); Rasto de Sonhos (Arte e alentos de pousadas na minha terra, 1918); A Língua Portuguesa e os seu Mistérios (1925); Alberto Sampaio e o significado dos seus estudos na interpretação da história nacional (1924); Cândido da Cunha, o pintor do mistério e da paisagem (1926); Dificuldades étnicas de insinuação do nacionalismo na arte portuguesa contemporânea 1931), e o amor das nossas coisas e alguns que bem o serviram 1933). Recolhido na sua Quinta do Eixo, proximidades de Aveiro, onde conseguiu uma colecção de eucaliptos, que é considerada a mais notável da Península, ali morreu em 26 de Janeiro de 1936.

 

/ 70 /  Inédito de Jaime de Magalhães Lima

 

VALE DE LAFÕES

Se me fossem necessárias provas da perversão ou debilidade dos costumes e da educação nacionais, tê-Ias-ia na ignorância, no abandono e na geral indiferença dos portugueses que ou não conhecem ou não querem conhecer, ou mesmo desprezam, depois de o conhecerem, esse delicioso cantinho da nossa terra chamado o Vale de Lafões. Percorri-o durante três dias e em todas as direcções, e lá encontrei empregados públicos e médicos e advogados e proprietários e gente de toda a condição e toda possuída dum mesmo enfado, maldizendo a sua sorte e suspirando por terras melhores. Encontrei também muitas vezes estradas desertas, palácios escalavrados e aldeias misérrimas. O que, porém, em parte alguma encontrei, foram viajantes jornadeando por simples interesse e curiosidade de conhecerem aquelas terras, que são nossas e que são belas; nem gente que as procurasse corno um lugar de tranquilidade salutar onde recuperasse as forças perdidas no ar empestado das cidades; nem habitações, não de luxo ou de recreio, que as não cobiço para o meu país, mas significando um amor consciente da natureza, um carinhoso aferro ao silêncio e à majestade das montanhas, à contemplação das coisas em que a grandeza da vida se revela na serenidade plena da sua harmonia, cativando a nossa alma e depurando-a. Nada disso lá encontrei, e nem sequer quaisquer leves vestígios de semelhante tendência me autorizaram a sonhá-la.

Porquê?!... Será que o português não viaje? Será que lhe faltem meios económicos para despender alguma coisa em um repouso duplamente sadio, moral e fisicamente, longe do bulício das cidades e da sua diversa corrupção? Com certeza, não. Não faltam portugueses que tenham percorrido as montanhas da Suiça, e os seus lagos e os Pirinéus e o Reno e a Escócia. Não falta quem nos assegure que

viu lá paisagens magníficas e não falta quem esteja disposto a ir vê-las. As viagens de portugueses ao estrangeiro multiplicam-se e amiúdam-se constantemente. E até não falta quem de lá nos traga e praticamente nos mostre a poder de dinheiro e com um zelo digno de melhor sorte, chalets, jardins arrelvados e muita outra coisa linda que do estrangeiro importou corno a nota da civilização.

Dinheiro e gente não escasseia. Teremos quanto basta para urna grande renovação do nosso país. Mas a tristíssima e evidente verdade é que a tal penúria se encontra reduzido o senso estético e o senso moral, se é que esses dois aspectos do carácter não são uma e a mesma coisa, como eu creio, tão pobrezinhos de alma nos vemos que não se sabe como alcançar o pequeno capital de inteligência e arte que seria necessário para iniciar uma renascença e aproveitar o muito dinheiro e a gente de boas intenções que a poderiam engrandecer e levar a cabo. Tudo se faz somente pela mais estulta ostentação; a depravação do sentimento é profunda; a sinceridade a mais rara das aves, posto que, – manda a justiça e o nosso contentamento que se diga, alguma sinceridade nos apareça e essa constitua o nosso consolo e esperança. Mas é a excepção das excepções. A regra é procurar uma casa ou construí-la mirabolante para dar um sinal de riqueza, escolher para ela um lugar frequentado, onde se veja, e habitar-se por tanto tempo e com tantos criados e com tais modos e trajos quanto for necessário para cumprir as indicações da gente fina e merecer a sua companhia e louvor. Os sentimentos que inspiram todos esses passos serão filhos da mais extrema vaidade.

Só assim se explica, só por completa degradação do sentimento se compreende que sejam quase ignoradas terras corno as do Vale de Lafões, rivalizando com as mais afamadas e frequentadas regiões montanhosas da Europa.

Nem a dificuldade de comunicações justifica o abandono. Quando a houvesse, deveria ser mais um motivo de tentação para a mocidade, naturalmente ávida de esforço e movimento, se é sã e vigorosa de corpo e alma. Mas o Vale de Lafões é todo de facílimo acesso. Os montes estão cortados de estradas magníficas. Só urna ausência completa de educação do espírito faz que anualmente se despejem muitas mil pessoas pelas casas de tavolagem das margens do Oceano, e se fuja, corno de coisa penosa ou ruim, daqueles páramos de beleza que são um enlevo de poesia e um refrigério para a alma mortificada de estéreis lutas do mundo. Entrando nessa região pelo vale do Vouga, já em Pessegueiro ternos a primeira página do volumoso livro que vamos ler e a indicação completa do seu carácter - terras alcantiladas sobre as margens do rio, bem povoadas de / 71 / arvoredo em que o pinhal viçoso e espesso ergue as pontas agudas como lanças, casais acoitando-se nas quebradas entre carvalhos frondosos, águas ora tranquilas, espraiadas, ora espumando nos açudes, e lá em cima, muito altas em uma mudez atlética, reflectindo o sol, as cristas da serra das Talhadas, a guardarem o vale, como sentinela incorruptível. Pelas alturas de Vouzela estaremos na mais perfeita paisagem alpestre, e até S. Pedro do Sul se continua com uma prodigalidade de aspectos que é maravilha. Se em tal abundância pode haver escolha, as minhas preferências serão por Santa Cruz da Trapa. Aí, o quadro é completo. Em um pequeno planalto ao fundo da serra da Gralheira, fechado o horizonte pelo Caramulo e pelas Talhadas, a divisar-se ao longe, por uma garganta estreita, a Estrela com as suas manchas de neve, alvas como ermidas, sarjadas as terras interiores de inumeráveis vales, donde surgem aldeias e viço e frescura, as montanhas adquirem ali um relevo prodigioso, desenhando-se na limpidez do céu em linhas arrojadas e nítidas, com uma agudeza de arestas inigualáveis, com o seu «facies», (característica expressão que roubo a um distinto espírito) tão bem acentuado, tão vivamente penetrante, que se grava na lembrança como uma fisionomia austera e cativante. Os colossos informes da Estrela, as quebradas sombrias do Buçaco, todas as montanhas de Portugal esmorecem, por deficiência de linhas definidas, se as confrontamos com a região privilegiada que com o Caramulo, a Gralheira e as soberbas cascatas da Freita abrange ainda o formosíssimo vale de Arouca, muito comparável, a meu ver, com Baden-Baden.

Vi e percorri estas montanhas. Todas elas são de Portugal, aquém da fronteira das suas terras, conhecidas, sabidas, estudadas e até desenhadas a rigor nas belas cartas da comissão geodésica; e tão facilmente acessíveis que se podem visitar a cavalo e mesmo poderá percorrer os seus trilhos calçado de sapatos de polimento o que quiser ter esse capricho ou por muito prolongado uso já não saiba calçar-se doutra forma. Dir-se-ia, porém, que esses montes ficam na Ásia ou mais longe ainda, por tal modo mostramos ignorá-los e tanto desprezamos esta soberba riqueza que a natureza nos concedeu.

Que o faça quem nunca os viu, quem foi educado num triste apartamento da natureza, compreende-se e perdoa-se. Mas que igualmente procedam os que nasceram ali, que desertem do berço os seus próprios filhos, é uma aberração imperdoável. Porque é de notar que o Vale de Lafões e as serras próximas e em torno são terras bem povoadas nas quais abundam casas nobres. Que é feito dos descendentes desses senhores morgados, onde param, como têm amado e cumprido a sua missão social, tão simpática, de guardas da tradição e de patronos dos seus servos e dos seus humildes vizinhos?

O código civil, com a pulverização da propriedade, deu a voz de dispersar; o luxo, as ambições, a civilização moderna, crassamente material, fizeram o resto. Uns, talvez os mais capazes, pelo menos os mais audazes, passaram nas escolas que nada souberam revelar ao seu coração, e pela política, pela burocracia, pelas artes liberais, com fortuna vária, vivem ou se arrastam nas cidades às quais os prendem efémeros e deprimentes regalos. Outros, talvez os menos hábeis e menos activos, dormitam e vagueiam pelo solar, a jogar e conquistar raparigas da aldeia comendo bem e bebendo melhor, e a dissipar assim os bens que uma burguesia ávida e grosseira cobiça e progressivamente vai captando. Empobrece o fidalgo, e enriquece o tendeiro, o almocreve e o agiota. Nas camadas superiores ficaram o estouvamento imbecil, de um lado, e do outro uma ganância, sensual, acomodatícia, e-no fundo sórdida por diversos modos; e entre os dois andam jogados os bens que um povo humilde, manso e trabalhador criou e faz valer pelo seu amor.

Esse povo, quando pode, emigra. Não tem outro meio de se libertar da miséria. O proprietário devora-lhe as arcas, as rendas da terra são pesadíssimas; e o que lhe sobra vai para o agiota que não quer menos de dez por cento. Toda a autoridade social, propulsora do progresso, fiel da justiça, inspirando, pelo exemplo, a ordem, a economia, a caridade, o respeito dos humildes e o alívio das agruras do trabalhador, todo este elemento de ponderação e de desenvolvimento económico e moral se dissolve na crise social representada pela luta das duas categorias de gente abastada que apontei, uma aristocracia caduca e uma burguesia destituída de nobreza.

Se a emigração do campo para a cidade, mal comum a todo o mundo civilizado, fosse compensada em parte, ainda que mínima, por uma pequena corrente em sentido inverso, / 72 / poderiam as aldeias das nossas províncias esperar das cidades algum bem, trazido por aqueles que enfastiados da vida urbana levassem aos campos o seu dinheiro e o seu saber, e hábitos de método, estudo e reflexão, o capital de ordem e inteligência que constitui o melhor do carácter da gente educada. Mas daí nada temos a esperar. a desvairamento é, por enquanto, profundo e completo; o campo significa para a grande maioria um enfado temeroso. Vida digna, para esses, e felicidade só naquela dissipação do corpo e do espírito, na perene frivolidade que é a prenda mais evidente e a ambição mais violenta das classes chamadas dirigentes e que de facto nos governam.

A redenção poderia vir talvez dos filhos dessa mesma burguesia que hoje se torna notável e prepondera apenas pela avidez. Educados na abastança, não tendo sido sujeitos às necessidades que corromperam os pais e lhes inflamaram as cobiças, não trarão esses à nossa terra um diverso sentir menos cruel, mais impregnado de doçura, rectidão e amor que lhes inspire a vida? Ou estaremos nós condenados a ver uma degradação ainda mais funda, agravando a depressão das plebes rurais até à sua completa ruína operada por uma burguesia insaciável e incorregível, de todo rebelde a qualquer insinuação da justiça, da bondade, do dever e até mesmo de um bem pensado interesse nacional?!...

No encanto do Vale de Lafões, atravessando as suas quebradas, insistentemente me acompanhou a lembrança destes problemas. São os de todo o país, mas ali vivamente os acentua uma fase de transformação em que o presente ainda não escureceu inteiramente o passado, como um começar de doença em que se avista ainda o equilíbrio da saúde a perder-se. Nada mais melancolicamente incerto do que o futuro daquelas aldeias. Escravidão sob um despotismo capitalista e na mais cerrada treva moral dos senhores e dos escravos?... Conforto e paz na abundância e na liberdade e na luz do sentimento cristão?... E não me atrevia a ir além duma interrogação, mais turvada de descrença do que inflamada de esperanças.

Algumas vezes pensei que se nós tivéssemos escolas e igrejas, escolas que fossem igrejas e igrejas que fossem escolas, se os educadores da mocidade possuíssem uma alta compreensão das suas obrigações e das suas responsabilidades, se conscienciosamente fizessem da sua missão um apostolado e esquecessem o que ela possa ter de rendoso para unicamente se consagrarem ao que ela pudesse ter de generoso, talvez algures se estivessem disciplinando os exércitos da salvação. Para trazer àqueles campos a intensidade de vida económica e a beleza de vida moral que havia de fecundar e coroar a beleza e a fertilidade que lhes veio da natureza, seria necessária uma legião robusta de gente capazmente educada a todos os respeitos. E, reduzida a nada a educação doméstica, porque os pais têm política, a sociedade, os jogos, os cafés, os negócios e os parlamentos e as secretarias de estado, e as mães têm as casas de modas, e as criadas e as mestras estrangeiras para as aliviarem de fadigas, e nem pais nem mães podem por isso acompanhar os filhos, a educação fica confiada à escola e logicamente só à escola podemos pedir gente educada. É a escola primária, o liceu e a universidade que a há-de formar.

Mas, logo pensava, que formam elas, Santo Deus?!...

É de morrer de tristeza! Quanto mais linda se nos mostra a terra, mais saudades temos de quem saiba amá-la e respeitá-la, fazendo que o seu pão se multiplique e piedosamente se reparta.

páginas 69 a 72

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