Acesso à hierarquia superior.

N.º 2

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1966 

 

O segundo festival de verão de Estarreja

 

Pelo Dr. Pedro Homem de Mello

Licenciado em Direito, Etnógrafo e publicista

 

Se não estamos em erro, coube à Vila de Estarreja, a honra de iniciar, entre nós, festivais folclóricos de carácter distrital...

Seguindo o seu exemplo, Viseu, este ano, a 18 de Setembro, promoveu, por alturas da Feira de S. Mateus, também, um festival idêntico, no decorrer do qual foram apresentados todos os trajes, todas as danças e cantares, dignos de nota, do seu distrito.

Os moldes, ali, foram, ponto sobre ponto, linha sobre linha, os mesmos de A veiro, perdão; de Estarreja.

Isto é: não se fecharam as portas a ninguém e, assim, cada qual pôde apresentar-se tal como era, com inevitáveis pecados, talvez, mas, sem dúvida, com inegáveis virtudes.

Numa palavra: ambos constituíram completas e leais confissões públicas, para que, futuramente, quem de direito pudesse vir a separar o trigo do joio, de forma a dar incremento a valores, até ali desconhecidos do grande público e, a tempo, afastar uma ou outra erva daninha.

Fosse como fosse, Aveiro pôde orgulhar-se de nos ter revelado, em Estarreja, um espectáculo de rara beleza e tão variado que não houve da parte de quem a ele assistiu a menor pena de que não tivessem sido convidados ranchos de outros distritos e, possivelmente, doutros países.

Cada grupo etnográfico, acolá, limitou-se a exibir um cantar e três ou dois bailados de maneira a não se repetirem números de dança e de canto, o que, só por si, prova a riqueza do património folclórico aveirense.

Senão vejamos:

Castelo de Paiva trouxe-nos o Salto em Bico e a Laranjinha; Paços de Brandão, a Pastorinha e o Verdegar; Ovar, o Vira Pescador e a Real Caninha; Cidacos (Oliveira de Azeméis), a Tirana e o Valseado; e Águeda, O Cancioneiro de Águeda, o Vira Bairrês e a sua «dança mandada»: o seu incomparável Malhão...

 

 
 

Grupo de dançadores de Cidacos que tomaram parte no 2.º Festival de Verão de Estarreja, em 21-8-1966.

 

No entanto, mau grado semelhante diversidade de costumes, patente ela não só nas danças como até nos trajes e nas canções, o Festival de Verão de Estarreja foi, apenas, uma pálida amostra, (e ainda não um mostruário!) do tesoiro artístico-popular de Aveiro, pois, condicionado pelo tempo e também pelo grande número dos ranchos concorrentes, não pôde ser concedido a certos núcleos o espaço a que pelo seu valor tinham direito, sob pena de se prolongar o espectáculo até de madrugada e de corrermos o risco de exibir jóias numa casa de que os espectadores, devido ao adiantado da hora, se fossem retirando...

Donde se conclui que a palavra «arte» é de carácter aristocrático e que os princípios da democracia não podem reger manifestações folclóricas. . .

Mas... O que lá vai, lá vai....

Todavia, aquilo que até agora teve uma relativa justificação, visto que se tratava como que de um primeiro «ensaio» (chamemos-lhe assim!) já não terá defesa amanhã, uma vez que, cônscios dos valores que possuímos, nos propomos evidenciá-los, de modo a manter a tradição.

Com isto, porém, não se pretende reduzir ao silêncio ou à inércia quaisquer iniciativas de reconstituição de costumes...

   
 

Tirana de Cidacos – O homem avança e a mulher recua...

 

Pelo contrário: busca-se, até, galardoá-Ias admitindo, apenas, as que estão aptas a trazer-nos uma mensagem. Só se eleva, porém, o nível / 35 / cultural, condicionando a incorporação dos grupos regionais, em festivais folclóricos e só assim deixará de ter eco a frase lapidar (em Portugal só há viras de três ao vintém!) com que o grande actor João Villaret manifestou a sua mágoa ante a pobreza de tantas exibições que de folclóricas apenas têm o nome que gratuitamente se lhes queira dar.

Há, pois, que ouvir, em assuntos desta natureza quem, pela autoridade que lhe assiste, se possa responsabilizar pelo êxito da representação popular E: não sacrificar a simpatias pessoais ou a um errado humanitarismo o renome folclórico distrital.

E, já que falamos em folclore e representação folclórica, por que não pensarmos, a par de Festivais de Verão em Estarreja, em Festivais de Inverno, em Aveiro, realizados estes numa casa de espectáculos daquela cidade?

Figurariam, então, os melhores agrupamentos etnográficos do Distrito e, com programa escolhido, enquadramento condigno, iluminação criteriosa e boa sonorização, os aveirenses poderiam aperceber-se de que o seu distrito nada deve aos demais em matéria de danças, cânticos e indumentária tradicionais...

Seriam eles os primeiros, depois, a fazer, conscientemente, a propaganda de si próprios e a desejar que os aplaudidos de hoje formassem aquela embaixada de beleza que, onde quer que surja, traz sempre consigo a concórdia, despertando nos nativos o amor à terra que lhes serviu de berço e nos forasteiros um maior desejo de aproximação.

Dói-nos pensar nestas realidades, até agora, por aproveitar, quando, desde Paiva a Águeda, dançadores e cantadores nos lembram as personagens de que fala Pirandello «personagens à espera de um autor»!

Mas nem sempre o homem se conhece a si mesmo...

Quantas vezes ele sabe ou julga saber das suas fraquezas, dos seus defeitos, das suas limitações, mas ignora as qualidades que possui e acaba por morrer sem ganhar a partida, tendo tido, no entanto, os trunfos da vitória, na mão.

Dá-se o mesmo, frequentemente, com essas terras que, à falta de quem nelas arvore uma bandeira, são votadas ao esquecimento. Ora, a propósito de bandeiras, sempre diremos que a arte é a que mais eficazmente ilumina o solo a que pertence. Guiados por ela, passamos a vê-lo e a querer-lhe bem, visto que só pelo conhecimento se poderá chegar à verdadeira amizade.

Daí, o valor do folclore.

/ 36 / Graças aos ranchos típicos assiste-se, em Portugal, ao descobrimento de um novo Brasil, se por Brasil entendermos a mina de oiro que nos pareça fabulosa. Explico:

Num país como o nosso o desenvolvimento do turismo equivale à sorte grande, pois, por formosa que seja a paisagem natural, esta não deterá o visitante, quando outra paisagem, a paisagem humana de que a arte é o expoente máximo! – a não complete.

O folclore – eis hoje em dia, o padrão da independência.

Enraizando-se nele, foi que a literatura, a pintura, a música e a dança adquiriram carácter nacional.

E só se acredita na existência de um povo, no dia em que se contacta com a sua arte.

Mas... Voltem as ao Festival, ao 2.º Festival de Verão de Estarreja.

Desejaríamos que, de futuro, se estabelecesse uma distinção entre promotores e organizadores. A uns e outros cabem honras, posto que diferentes umas das outras, como a água do vinho. Sem os primeiros tornar-se-ia / 37 / impossível a realização do festival. Cabe-lhes estudar as possibilidades financeiras do empreendimento, as condições técnicas do espectáculo (sonorização, iluminação, local, lotação, etc.) e, ainda, o cumprimento das normas traçadas pelos organizadores que são entidades a cujo cargo está a estrutura do programa artístico.

Desejaríamos ainda que, à semelhança do que se faz em Santa Marta de Portozelo e na Meadela, no Concelho de Viana do Castelo, fosse fixada uma data para o festival, data essa que não coincidisse com a de outra manifestação de cultura popular mais antiga. Sem datas não há tradição.

Além disso, atendendo ao incremento turístico entre nós, entendemos que a apresentação dos números a exibir deve ser, tanto quanto possível, bilingue, posto que breve e clara.

Finalmente impõe-se um cartaz de propaganda cuidado. Medite-se, ainda, na situação geográfica de Estarreja, vila que a dois passos da Ria e de todas as praias da Costa Verde, e não longe de Coimbra e da Figueira da Foz, é o centro onde sem dificuldade chegam mil caminhos povoados e verificar-se-á como, sem dificuldade, se pode no Distrito de A veiro prestar um serviço notável à cultura nacional.

De todos os factores, para que, tão sinceramente, acabamos de chamar a atenção da Ex.ma Junta Distrital, a marcação de uma data fixa, sempre num domingo à tarde – é o mais importante.

Doutra forma, compromissos prévios de um ou outro rancho poderão contribuir para o «empobrecimento» do Festival, como aconteceu este ano com a falta de comparência do Conjunto Etnográfico de Moldes.

Infelizmente, a 21 de Agosto último (data da famosa serenata das Festas da Senhora da Agonia!) não pudemos ver ao de Moldes o incomparável «Real das Canas» – dança de conjunto usada em todas as Terras da Feira – o «Corre-Corre» – serenidade, compostura, graciosidade senhoril das mulheres, porte dominador dos homens! – a «Cana Verde de Oito»o «Senhor da Pedra» e o «Valseado» – dança de passagens tão subtis que não resistimos a encerrar o nosso trabalho de hoje com a pormenor das várias fases, a saber:

1.º – Logo, no vaivém, dado pelo homem, primeiro para a frente, e, seguidamente, para trás, e pela mulher, primeiro para trás e, seguidamente para a frente, eles e elas largarão as

mãos, poisando-as, depois, sobre as ilhargas, com modo altaneiro.

2.º – O cantador canta e eles e elas começam a dançar, animadamente, avançando e recuando em passo de Vira, figura conhecida no Litoral pelo nome de «brinca».

3.º – Terminado o «brinca» eles viram-se «por dentro», sobre a direita, seguindo eles e elas, uns à frente dos outros, em fila indiana...

4.º – A folhas tantas, todos dão uma volta por dentro, sobre a esquerda e a fila indiana vai em sentido oposto ao primeiro.

5.º – Por fim, cada homem procura a dama da direita com quem dá uma «volta inteira» sobre a direita, passando, terminada ela, a dançar com a dama da esquerda o «valseado».

No «valseado» nunca o homem põe a mão na cintura da mulher, limitando-se a pegar-lhe, delicadamente, nos braços...

 

páginas 34 a 37

Menu de opções

Página anterior

Página seguinte