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N.º 1

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Janeiro de 1966 

A Ria de Aveiro


E OS RIOS

VOUGA E ÁGUEDA

na sua relação
com a antiga Mercância Beirã

Pelo DR. SERAFIM GABRIEL SOARES DA GRAÇA

 

Barcos no cais do rio Águeda.

 
 

Barcos no cais do rio Águeda.

 
 

/ 13 / Nem toda a gente que admira embevecida as belezas da Ria e os encantadores aspectos paisagísticos dos nossos rios Vouga e Águeda avaliará devidamente, e em toda a sua extensão, o papel relevante que eles desempenharam outrora no antigo tráfego mercantil que em larga escala se exerceu através dessas vias fluviais. Eram numerosas as barcas que diariamente as sulcavam num curioso vaivém, com as velas enfunadas ao vento se este lhe corria de feição, o que dava à paisagem que os ladeava uma nota de realçada beleza. E assim iam deslizando sobre a corrente, parando aqui e ali, nos diferentes portos junto de algumas terras que lhes ficavam mais próximas, para aí descarregarem algum pescado da costa marí­tima de Aveiro e algumas mercadorias, até aportarem finalmente ao Cais de Águeda, junto da velha ponte, pois era aí a centro principal onde convergiam, em largas dezenas, os almo­creves com récuas de machos e os serranos envergando a característica «capucha» cara­mulana, que depois transportariam ajoujados, às próprias costas, em canastras, ou sobre a lombada dos burricos, a sardinha que era levada às terras mais escondidas nas abas da serra, e que iam apregoando como «sardinha d'Águeda!» Tinham pernoitado nas locandas ribeirinhas dos bairros de Além da Ponte e do Barril e comida a parca refeição, aprontando-se assim para arrastar a longa jornada a percorrer, agora com mais pesada carga na volta do que a que trouxeram na vinda, constituída por queijos frescos, carvão, ovos, etc. E depois, lá diz o ditado que «a descer todos os santos ajudam...» E lá seguia a caravana, e outros se sucediam no dia imediato, entre o vozear daquela gente que aos grupos calcorreava os carreiros através dos montes por atalhos que bem conheciam, e ao som do guizalhar nas coleiras dos jumentos, já bem batidos naqueles caminhos.

Águeda foi desde eras muito recuadas um centro comercial de nomeada; e, como tal, a sua justa fama chegou a terras muito distantes, perdidas nos confins das Beiras. Ali afluía não só a multidão da gente que se entregava à prática de pequenos negócios, de que ficou reflexo bem nítido que ainda chegou a nossos dias, mas acorriam também, em grande número, abastados mercadores, incluindo os ourives, os boticários, etc., etc.

Adolfo Portela, que no seu estilo literário muito próprio, inimitável, nos descreve as lendas, costumes e paisagens de Águeda, traça­-nos com as cores vivas da sua fértil imagina­ção, este quadro pitoresco alusivo à chegada dos barcos, o que ele ainda presenciou:

«Era por Águeda que se fazia então todo o comércio da Beira-Mar com as duas Beiras, Ovar, Porto, Aveiro, Tor­reira, S. Jacinto, Costa Nova, tudo por ali passava com as suas mercadorias, graças a essa bela estrada do rio, que era por esse tempo a artéria principal da circulação comercial das terras de Águeda.

Coalhava-se o rio de barcos e bateiras em cada dia.

E, mal as velas assomavam, lá abaixo, aos Carvalhos de Paredes, logo das bandas da serra descia, a campainhar alegremente, a récua dos machos beirões que vinham a fazer carga.

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Aos dez e aos vinte, em maré-cheia de boa pesca, os barcos, ancorados no velho Cais das Laranjeiras, com os mastros em descanso, davam a ilusão duma esquadra de galés antigas que ali arribassem a ajoujar de riquezas.» (1)

 

Com os modernos meios de transporte e o progressivo assoreamento do rio desapareceram / 14 / os barcos daquelas paragens e já não podemos agora vê-los alinhados junto ao cais, nem apreciar a nota de rara beleza que nos ofereciam não só quando transpunham a corrente de velas inchadas ao vento, mas ainda, quando mal caía a noite, todos iluminados pelas fogueiras onde os barqueiros cozinhavam as suas «caldeiradas», ali estacionavam, para, alta madrugada, volta­rem para a faina habitual.

Mas já muito anteriormente o papel da Ria e dos rios Vouga e Águeda era posto em desta­que. Numa curiosa Memória Paroquial escrita pelo então prior d' Águeda, em 1758, ao tempo Manuel de Abranches da Costa (2) diz-se que o rio era frequentado por barcos de Aveiro, de Ovar, de Ílhavo e outras terras da costa marí­tima, fazendo-se referência às mercadorias por ele transportadas, como eram o sal, sardinhas e outro pescado; falava-se ainda no tráfego comercial com a gente serrana, etc. Transcrevo da citada memória, textualmente, e para lhe não alterar o sabor próprio da narrativa, que é feita em termos muito expressivos, esta passa­gem referente ao rio:

«As embarcações que o frequentam são os barcos da vila de Aveiro e da Vila de Ovar e da Vila de Ílhavo e das mais terras marítimas daquele sítio e por ele, a vela e remo, conforme o vento, conduzem ao dito lugar vários provi­mentos de infinito sal, sardinhas e outro género de pescado molhado e seco e conduzem para baixo muitos vinhos, frutas e lenhas, por cuja frequência é o dito lugar o melhor empório que têm as terras marítimas, Aveiro e suas vizi­nhas; e ao mesmo lugar se vêm prover os povos das serras e lugares vizinhos. O mesmo rio, de Verão, é de curso plácido, porém, de Inverno, com as enchentes é arrebatado e toma muitas águas, de sorte que, como corre encos­tado ao dito lugar de Águeda, inunda muita parte dele.» (3)

Pelo que se mostra, o transporte das mercadorias não era possível fazer-se pelo rio no Inverno, pelo que tinha de se recorrer à tracção animal.

Como bem se anota na memória, o rio com a concorrência de muitos ribeiros que para ele desaguavam tornava-se «arrebatado». Já na segunda metade do século XVII, esta circuns­tância era posta em destaque pelo prior de Espinhel, que, ao requerer lhe fosse dado um Cura para o ajudar nas lides da paroquialidade, alegava, ao Rei D. Pedro II, que além de contar a freguesia mais de 340 fogos tinha «de permeio os ribeiros que vão pelo Águeda para o mar», acrescentando que o rio era muito caudaloso principalmente no Inverno em que se não podia passar «sem risco da vida». E foram aceites os motivos apresentados, pelo que foi nomeado coadjutor no ano de 1674.

O Rio Vouga, ainda que numa parte do seu percurso fosse também utilizado para este tráfego mercantil, não teve neste campo a projecção do Rio Águeda; foi, no entanto, importante também o seu papel, o que é assinalado num outro curioso documento, do qual extraio a seguinte passagem:

«É o Vouga navegável desde a Vila de Aveiro até Pessegueiro, por distância de cinco para seis léguas; e só navegam por ele barcos pequenos, como são os de Aveiro, Ovar e de Ílhavo, que condu­zem as mercadorias para as feiras que se fazem por estes contornos e trazem o sal para estas povoações.» 

De tudo isto resulta, com evidência, o papel outrora desempenhado por estes nossos rios no tráfego comercial entre as terras da costa marítima e as serranas. Mas vária documen­tação antiga revela-nos também que, a par dos negócios e actividades já referidos, surgiam e firmavam-se por ali outras convenções de significado mais transcendente – os contratos de amor – pois muita gente vinha de fora ali constituir família, sendo também em grande número os oriundos de terras da orla marítima, que formavam novas famílias em Águeda, algumas das quais muito se enobreceram em sucessivas gerações de letrados, de vultos eminentes em ciência, nas artes, em leis, em / 15 / religião, etc., etc. Levaria muito longe a expla­nação deste assunto, mas sempre apontarei dois ou três casos, a título explicativo. Assim, vemos o mercador Miguel Henriques de Castro, de Vila de Rei, Bispado da Guarda, realizar o seu casamento na Vila de Recardães, junto a Águeda a 23 de Novembro de 1727, firmando-se o tronco duma família ilustre cuja descendência veio ligar-se à Casa de Aveiro; outro mer­cador, e este natural de Águeda, – Agostinho Soares Vidal, aqui casou a 23 de Julho de 1747, com Mariana de Santa Rosa, cuja família provinha das serranas paragens de Couto de Esteves, Sever do Vouga. Foram filhos destes, um bacharel em Direito, José Pedro Soares, e uma filha que abraçou o estado de religião, professando no Convento das Carmelitas em Aveiro com o nome conventual de Soror Maria do Monte Carmelo. Remoto ascendente deste mercador foi o piloto André Vidal, escudeiro fidalgo que veio para Aveiro no século XVI gerir os negócios da navegação e aqui casou com Ana Pires Pericão, ficando destes numerosa descendência que se espalhou por muitas terras do Distrito, desdobrando-se em dezenas de conhecidas famílias, das quais uma grande parte usa ainda o apelido Vidal. Da serra veio igualmente Miguel de Seixas Diniz, natural de Foz de Arouce, Lousã, que também realizou o seu casamento em Águeda a 1 de Janeiro de 1724, com Maria da Silva, fixando aqui a gerência dos seus negócios; um seu neto, o Dr. José Patrício de Seixas Diniz foi notável Desembargador das Relações de Macau e do Porto, e um irmão deste foi mestre de Teologia na Universidade de Coimbra. Por sua vez, com gente de Aveiro e de outras terras da costa, principalmente de Ovar, foram-se constituindo novos vínculos familiares no decorrer das eras.

Do que fica exposto resulta – sem grande esforço de imaginação – que teremos de encon­trar neste longo abraço, de séculos, que a serra vem dando ao mar, e este vem dando à serra, no rodar dos séculos, a verdadeira explicação de como em grande parte se foi fazendo o povoamento desta formosa e cada vez mais progressiva região do Vouga.

______________________

NOTAS:

(1)Águeda, por Adolfo Portela, 2.ª edição, pág. 9.

(2) – Memória Paroquial da freguesia de Águeda, T. do Tombo, 1758.

(3) – Memória Paroquial da freguesia de Segadães, T. do Tombo, 1758.

páginas 12 a 15

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