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N.º 31

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

1.º Semestre de 1983 

 

Cem Anos de Artes Plásticas

– UMA EXPOSIÇÃO DISTRITAL

 

«Este grande commettimento foi realisado unica e exclusivamente por iniciativa do Grémio Moderno, pois dos poderes públicos não recebeu protecção de qualidade alguma, a não ser o subsidio de 150$000 reis que lhe concedeu a Junta Geral do Districto; em tudo um verdadeiro contraste com a exposição de Lisboa, com a qual o Estado gastou dezenas de conts de reis, e à sombra da qual se encheu a folha official de diplomas e louvores.

Os registros officiaes não accusam a existência da exposição districtal d'Aveiro em 1882, mas accusál-a-há o presente livro, que no futuro hade perpetuar a sua memória, bem como a da associação que a realisou»

– MARQUES GOMES

Exposição Distrital de Aveiro, em 1882

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– A ideia

Em 1982, vários centenários relacionados com Aveiro foram evocados, de forma singela. Um deles, porém, era forçoso comemorá-lo com maior solenidade, pelo que representou no domínio das Artes, nesse final de oitocentos: a grande «Exposição Distrital de Aveiro», promovida pelo Grémio Moderno.

Consciente do significado dessa notável jornada, sugeri, em princípios do ano passado, à direcção da «ADERAV» (Associação para a Defesa do Património Cultural e Natural da Região de Aveiro) que fosse esta associação a conduzir as comemorações. A sugestão, embora acolhida com entusiasmo (tal como o «Grémio Moderno» em 1882). cedo se verificou inviável para a direcção da ADERAV, atendendo aos gastos que se adivinhavam na concretização do empreendimento. Mas os contactos para a formação de uma forte «comissão organizadora» prosseguiram, sendo já na Primavera uma dúzia de elementos, entre os quais alguns jovens, mesmo fora da Associação, dispostos a levar por diante a referida evocação centenária.

Apresentado, sumariamente, esse plano ao Presidente da Câmara de Aveiro, desde logo prometeu o apoio necessário.

Como, no entanto, se projectava uma exposição de características distritais, entendeu-se dar também conhecimento ao Governador Civil. Por parte deste representante governamental houve grande receptividade, tendo sido apresentada a nossa pretensão, por duas vezes, aos membros da Assembleia Distrital, a quem foi solicitada resposta em termos de apoios e eventuais colaboradores da área das suas autarquias, tanto mais que sempre se pensou em levar o resultado do projecto a outras terras do Distrito que se mostrassem interessadas nele.

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Proa de moliceiro com que abria a exposição e em que se lê «a fama ao longe tôa», tendo ao lado um extracto de D. João  Evangelista de Lima Vidal.

Os meses, porém, foram decorrendo sem qualquer resposta, apesar da insistência por parte do Sr. Governador. Quanto ao local, sempre foi apontado, para primeira exposição, o Museu de Aveiro, onde decorriam obras de beneficiação, mas que não deveriam ser impeditivas do empreendimento em curso, se este se verificasse no Outono.

O fim da Primavera com a corrida às férias e uma certa insensibilidade dos autarcas do Distrito, em geral, para uma exposição de âmbito distrital que nesse momento ainda pretendia cobrir, em espírito e rubricas, o feito de 1882, a par com o restauro do Museu, trouxeram um ar morno às dezenas de reuniões que se fizeram, acabando por protelar os trabalhos. / 94 /

A ideia, apesar de tudo, continuava de pé!

Em princípios de Setembro, aos três elementos sempre empenhados em evocar o acontecimento centenário. Dr. Énio Semedo, P. João Gaspar e eu próprio, juntou-se um quarto elemento, Cor. Cândido Teles, artista emérito, que encarnou de alma e coração a ideia. Foi feito o ponto da situação. Face à série de problemas surgidos anteriormente, reformulou-se o projecto.

 

– O projecto

Segundo circular distribuída por várias dezenas de artistas vivos, emitida nos primeiros dias de Outubro, depois de verificar que se protelavam as obras do Museu e colhidos apoios mais concretos do Governo Civil, a «comissão», a que mais tarde veio a dar também colaboração significativa o artista e escritor Dr. Vasco Branco, reconhecia que, «na impossibilidade de levar a efeito uma exposição abrangendo as diferentes áreas artísticas naquela («Exposição Distrital de Aveiro») contempladas, optou-se por restringir esta (a evocação subordinada ao tema «Cem anos de Artes Plásticas») ao campo artístico – paisagem e meio humano aveirense –», continuando a ser ponto de honra homenagear todos quantos se empenharam em tão importante manifestação cultural, nomeadamente Marques Gomes e Joaquim de Vasconcelos, trazendo «a público um conjunto de obras de artistas que interpretaram a região de Aveiro, eventualmente desconhecidas das gerações mais jovens e que se encontram nos nossos museus ou na posse de particulares».

As obras a expor seriam seleccionadas por ADERAV, nas modalidades de pintura, gravura, desenho, cerâmica, escultura e tapeçaria. Cada artista apenas se poderia fazer representar por três obras de cada modalidade e, de preferência, representados em Museus ou convidados pela organização. Ainda, por então, estava no espírito dos organizadores que a abertura teria lugar na última quinzena de Dezembro!

Decorreram as eleições autárquicas ao mesmo tempo que se arrastavam as obras do Museu Nacional, sem que se solucionasse o conflito da sucessão da directoria desta instituição. E, enquanto se negociava entre os autarcas a distribuição de pelouros e se não definiam as sucessões no Museu, resolveu a «comissão» consultar o Instituto do Património Cultural para, por escrito, autorizar a referida exposição no Museu de Aveiro. A resposta foi totalmente negativa, alegando «de momento»as obras em curso.

Entretanto, inventariou-se a existência nos museus regionais (excepto o de Ovar que peremptoriamente se negou, argumentando assim ter sido decidido face a empréstimos de que resultaram graves danos), visitaram-se muitas casas de particulares tidos como dos melhores coleccionadores do Distrito, «ressuscitaram»-se dezenas de artistas falecidos através de dados colhidos entre familiares, amigos e estudiosos, organizou-se um ficheiro para artistas, para entidades que cediam obras, para obras a expor (e outras que ficariam de reserva), compuseram-se as minibiografias, recolheram-se dados sobre fábricas desaparecidas e existentes com maior significado nas tradições cerâmicas, bem como seus artistas mais evidentes, etc. com vista ao «catálogo» que, desde o princípio, tinha sido pensado, por mais barato e prático, como um número especial da ADERAV.

Contactaram-se bancos, empresas, companhias de seguros... para eventuais apoios económicos. O Ministério da Cultura, o Instituto Português do Património Cultural, a Fundação Gulbenkian foram informados dos trabalhos em marcha, tendo sido pedidas colaborações a estas entidades, por mais que uma vez.

E, contando apenas com um subsídio do Governo Civil e a promessa da Câmara de Aveiro de que pagaria os expositores necessários para o nosso empreendimento, chegámos ao fim de Janeiro, sem mais respostas do Museu, sem outros apoios nem morais nem materiais, a não ser a confiança de que, resolvida a distribuição dos pelouros da Autarquia aveirense, das palavras se passaria aos actos!

Nova data tinha sido marcada, sem hipótese de concretização. Entretanto, para divulgar o acontecimento, houve que pensar em cartaz adequado, que as mesmas razões de ordem económica obrigaram, posteriormente, a rever!

Finalmente, já com a data em definitivo marcada para 10 de Março, soubemos, em audiência pedida (e durante semanas esperada) ao Presidente da Câmara de Aveiro, que a evocação da célebre exposição de 1882 / 95 / constava do Plano de Actividades para 1983, pelo que, com «dignidade, mas dentro dos condicionalismos da austeridade» se devia comemorar tal feito, dando todo o apoio possível a «Cem Anos de Artes Plásticas».

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«Balcões de Esgueira», por José de Pinho.

Foi então, e só então, que, perante o arrastar das indefinições do Museu, nos foi sugerido (face ao plano do Câmara de Aveiro), que a evocação acontecesse no Salão Cultural. Simplesmente, como à partida todos reconhecíamos, as condições eram bastante deficientes. Felizmente, porém, os obstáculos foram-se removendo, um a um, no sentido de aproveitar o mais possível a área e a luz, criando o ambiente cultural apropriado para o efeito.

E a pouco mais de duas semanas da abertura, por proposta do vereador Custódio Ramos, traduzindo o espírito de unidade da autarquia. debateu-se a possibilidade de transformar o «catálogo» em Boletim Municipal, tornando, desta forma realidade, um projecto de anos anteriores, também ele, inserto no Plano de Actividades para 1983. Aceite a proposta, houve que repensar, de imediato, todo o esquema elaborado e já entregue na tipografia. Por isso, enquanto uma fracção da «Comissão Organizadora» assumiu a tarefa de confecção do «Boletim», outra se dedicou, mais especialmente à recolha e acondicionamento de obras, numa corrida contra o tempo e contra a resistência de tão poucos elementos, nem todos podendo dar a disponibilidade que inicialmente se supunha.

Mesmo assim, distribuíram-se 500 cartazes, muitos deles pedidos expressamente por artistas e estudantes dos institutos de «Belas-Artes», fizeram-se 2 500 boletins, 500 convites em nome da Câmara e da Comissão Organizadora, 5000 autocolantes, dezenas de fotografias dos principais artistas e obras representadas, um filme vídeo...

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«Pateira de Fermentelos», vista da Ponte do Pano, por Fausto Sampaio (extra-catálogo).

 

– A abertura oficial

Em 10 de Março, pelas 18 horas, abria finalmente ao público a exposição «Cem anos de Artes Plásticas», sob a presidência do Governador Civil, Dr. Aurélio Pinheiro, ladeado pelo estudioso da Arte e História D. Domingos de Pinho Brandão, Bispo Auxiliar do Porto, pelo representante da Câmara Municipal de Aveiro, Cap. Luís António Tavares, como entidade promotora e anfitriã, pelo representante da Diocese de Aveiro, D. António Marcelino e por um elemento da Comissão Organizadora, Dr. Vasco Branco que sumariamente apresentou objectivos da exposição e o conferente convidado, natural do Distrito de Aveiro (Arouca), D. Domingos P. Brandão, actualmente director do Museu de Arte Sacra, no Mosteiro de Arouca.

Presentes outras entidades oficiais da cidade e algumas do Distrito, entre os mais de duzentos visitantes e participantes desta abertura oficial, a que a TV e a imprensa diária e regional deram cobertura de menor relevo, mesmo presentes, comportamento aliás normal em manifestações culturais fora de Lisboa e Porto (excepção ao JN e ao JA).

A sessão, que decorreu no próprio local da exposição, teve o seu ponto alto nas palavras do conferente, de que transcrevemos a maior parte.

*   *   *

«... Venho do Porto... venho do Porto! É sabido que alguns artistas portuenses, nos fins do século XVII e primeira metade do séc. XVIII, se enamoraram de Aveiro. Efectivamente, grande parte da escultura e talha de Aveiro e seu aro foi obra de entalhadores portuenses, como há anos revelei num encontro de directores e conservadores de museus, aqui, em Aveiro, realizado. Cito alguns nomes dos melhores entalhadores que aqui trabalharam: Domingos Nunes, António Gomes, José / 96 / Correia e José Martins Tinoco. Sobretudo António Gomes, mestre de nome e de renome, que nos legou obras com todo o primor da arte, como então se dizia, no Porto, em Arouca, em Aveiro, em Coimbra e noutras terras.

Acontece ainda que a exposição a inaugurar, «Cem anos de Artes Plásticas», é evocativa da importante «Exposição Distrital de Aveiro», realizada em 1882, que ficou a dever-se à iniciativa de uma numerosa comissão de individualidades, mas cujos principais obreiros foram (já aqui foi dito) Marques Gomes e Joaquim de Vasconcelos: aquele, ilustre estudioso consagrado sobretudo a terras aveirenses, este, o Dr. Joaquim de Vasconcelos, portuense, historiador emérito e notável crítico de arte.

A presente exposição intitula-se «Cem anos de Artes Plásticas» e abrange, consequentemente, o período que decorre desde a última exposição (1882), até ao presente. Ocupa-se de terras e motivos relacionados com Aveiro.

Mas, porquê e para quê esta exposição?

Antes de a percorrermos (ou mesmo depois de a termos percorrido como muitos já fizeram), será oportuno reflectir no interesse de uma exposição de arte e de uma exposição deste género.

Trata-se de um conjunto de peças de arte que se reúnem em local apropriado e bem – e bem, linda exposição, mesmo como exposição! – para que o público as possa ver, estudar, apreciar.

Uma exposição oferece-nos uma panorâmica das obras de arte de um período (de artesanato, também, no caso presente) ou de uma determinada cerâmica ou de um determinado artista. Assim, têm-se realizado exposições que abrangem uma época ou um período de maior ou menor duração, por exemplo «Cem Anos de Artes Plásticas», exposições de imagens de Nossa Senhora ou de Cristos – exposições temáticas, ou exposições de um artista, estas muito frequentes. (Lembro sempre as exposições de Vieira da Silva, pintora, e a de Rodin, escultor).

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«Cais dos Botirões», de Manuel Tavares (extra-catálogo).

Acontece, por vezes, que se conjugam mais que um dos horizontes referidos. É o, caso, mais uma vez para exemplo, da presente exposição, que abrange um determinado período, cem anos, e se ocupa de temática especificada, diversificada, variada – motivos aveirenses.

A exposição que hoje se inaugura, de diversas obras e de diversos artistas, para além do interesse dos trabalhos expostos, individualmente considerados, oferece-nos também uma panorâmica das diversas manifestações artísticas vividas, realizadas, num período de 100 anos. Podemos observar, comparar. tirar lições. Poderemos, igualmente, verificar a evolução das manifestações artísticas no decorrer do tempo, no nosso caso, no período dos últimos 100 anos. E isto é muito importante, tem muito interesse. A Arte é uma realidade sonhada, criada, vivida, e, por isso, viva. Como o Homem, evolui, como a sociedade avança e progride.

O próprio artista, no decorrer da sua vida, realiza uma caminhada artística, todos o sabemos. Quantas vezes sorri, ao contemplar, passados anos, a obra há muito realizada!

Foi no Seminário maior do Porto... Eu acompanhava o escultor Diogo de Macedo, de Gaia, (aqui representado com um desenho, já vi!) numa visita ao Seminário e ao Museu do mesmo Seminário. Ao terminar a visita, mostrei um barro modelado, havia muitos anos, por suas mãos. Sorriu. Quase se não reobservou nessa obra produzida na verdura dos seus anos!

Uma obra de arte é a expressão vital do artista e, ao produzi-Ia, o verdadeiro artista nunca fica satisfeito. Deseja mais, deseja melhor. Quantas vezes rasga ou procura inutilizar a obra que produziu! Conhecemos muitos casos de poetas que quiseram rasgar os seus versos ou procuraram inutilizá-los – e eram e são autênticas jóias de poesia. Houve escultores que destruíram esculturas de mérito (sobretudo em Gaia)!

O verdadeiro artista é sempre um insatisfeito. Quem não conhece o caso de Miguel Ângelo ao concluir o seu e nosso Moisés? (digo nosso porque as verdadeiras obras de arte são património comum e universal e, portanto, de todos!). Tomou o martelo, feriu o pé da estátua e com certa ânsia de desespero, com que gritou: – «paria, unque», agora, fala! A estátua não falou. Não falou a linguagem que Miguel Ângelo queria ouvir. Mas falou e continua a falar a linguagem de beleza. Continua, na sua mudez eloquente, a proclamar a grandeza de um génio, o artista que a concebeu e realizou!

A evolução da arte depende, também, do ambiente social em que o artista se forma ou informa e vive. E como sabemos, o ambiente social avança e progride. Não é estático, é dinâmico. A Arte é por isso e também / 97 / a expressão do ambiente e do clima social. Isto não invalida o valor e o poder criador do artista, simplesmente, o homem é «ele e a circunstância». O artista também.

Daqui se conclui que uma exposição deste género, para além de mostrar e revelar o valor das peças expostas, testemunha também a evolução subjacente das diversas ideias e manifestações artísticas estilísticas. E, como sabemos, a evolução hoje processa-se em ritmo mais acelerado, igualmente no campo artístico. Porque a Arte evolui na sua concretização, vem a ser a sua contemporaneidade uma das suas notas características.

No século XII, a arquitectura, a escultura, a pintura e outros horizontes de arte e artesanato manifestam determinado estilo de linguagem, substantiva e adjectiva. Nos séculos seguintes, de igual modo, o estilo e a linguagem artística da época. Este sentido de presença ou contemporaneidade é essencial numa obra de arte. A Arte voltada para o passado não é criação, é cópia ou técnica. O verdadeiro artista vive o presente voltado para. o futuro. Por isso é criador.

Esta contemporaneidade, quando a obra é verdadeiramente de arte, de valor, estende-se a todos os homens e a todas as épocas. Não admiramos, hoje, as pinturas de Giotto, de um Leonardo da Vinci, as esculturas de um Miguel Ângelo, a arquitectura de um Nazonni?

Uma obra de arte é eterna! O exibicionismo, em arte, passa com a voragem do tempo.

O velho aforismo latino da escolástica, «nihil volitum, nisi precognitum», também se aplica ao campo da arte, nada amando que não seja anteriormente conhecido. Não apreciamos muitas vezes obras artísticas, porque não conhecemos as suas dimensões, o seu sentido e a sua dinâmica. É preciso conhecer para amar, quer dizer, para gostar. E, em cadeia, quanto mais gostarmos, mais conhecemos.

Uma exposição como a que se vai inaugurar – esta, leva-nos a conhecer melhor a actividade artística «artes plásticas», de um século. E, por isso mesmo, a apreciar melhor o seu valor. Educa a sensibilidade e o gosto. E é um alarme em ordem à defesa e protecção do nosso Património Artístico, do presente e do passado, que, apesar de iniciativas dignas de louvor, anda por aí tão abandonado o nosso património artístico, sobretudo o monumental. Monumentos ou ruínas que se abandonam e deixam cair, são vozes do passado que se calam e valores culturais que se perdem.

Uma exposição, educando, promove.

Na sucessão de méritos que vamos apontando, é de referir a possibilidade que o visitante e o estudioso têm de ver obras de arte que, individualmente ou no seu conjunto não teriam facilidades de examinar e estudar. É um dos aspectos válidos de uma exposição. Recordo exposições que visitei de imagens de Cristo, de imagens de Nossa Senhora, da escultura de Rodin (já referi), de pinturas de Vieira da Silva (já referi) e tantas outras que me permitiram, de visu, admirar peças que, sem tais exposições, dificilmente ou nunca poderia contemplar. Para além de observar, de visu, também, o ritmo evolutivo das criações artísticas nas exposições de temas específicos.

A presente exposição permite um exame de contemplação das obras expostas, mas é também um livro aberto, um livro de História de Arte, cujas folhas se desdobram num período – cem anos – de quatro ou cinco gerações sucessivas.

Gostaria, meus senhores, de salientar que as exposições de artistas ainda vivos constituem um estímulo e encorajamento para os mesmos artistas que também precisam de estímulo e ajuda para prosseguirem a sua vocação e missão, de tornar o mundo mais belo e a Humanidade mais feliz.

Sempre me impressionou o registo de óbito do grande Nicolau Nazonni, desse talentoso e polivalente génio que tanta beleza semeou no Porto e Norte de Portugal, em obras de arte, no domínio da arquitectura, da pintura decorativa, do desenho, etc..

Qual o historiador de Arte que não conhece, no Porto, a igreja dos Clérigos, a fachada da igreja da Misericórdia, a igreja de Matosinhos, o Paço Episcopal, o palácio do Freixo?

Sempre me impressionou, volto a dizer, o registo de óbito de Nicolau Nazonni. Relata que morreu em 1773 e foi sepultado «como irmão pobre» – como irmão pobre! –, na igreja dos Clérigos. Para mais, até se desconhece o lugar exacto do seu enterramento. Talvez bem! Como que a significar que a Igreja, fruto do seu génio, é toda ela o mausoléu onde repousam as cinzas do grande arquitecto!

Não queria deixar no olvido um apontamento de sabor místico. Nós somos peregrinos da Beleza! A beleza das coisas eleva-nos à Beleza absoluta: Deus. / 98 / Já o lemos nas Letras Sagradas: da beleza criada, subimos à Beleza incriada.

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Uma obra de Arte é portadora de uma mensagem espiritual, por ser portadora de beleza criada, revérbero da Beleza Absoluta que não morre.

Fica bem salientar esta anotação espiritual que a Exposição me sugere.

A temática desta exposição é alusiva a Aveiro: motivos relacionados com a cidade, seu aro, distrito, suas pessoas. Aqui está patente um belo livro cujas páginas são obras de arte a falar de Aveiro, de aveirenses, no decurso de um século. É uma exposição de louvor à cidade, às gentes e terras de Aveiro.

«Aldeão de Verdememilho», por Abel Salazar.

Não estão aqui, é evidente, todas as obras de arte relacionadas com Aveiro ou existentes em Aveiro. Essa colecção grandiosa está disseminada por todo o Distrito: as suas igrejas, os seus monumentos, os seus palácios e respectivo recheio, os seus museus. Disseminada ainda em colecções de particulares, que o distrito de Arte, que abrange cem anos.

Aqui, está exposta uma meritória colecção de Obras de Arte, que abrange Cem anos.

É uma bela iniciativa!

Evoco mais uma vez, senhoras, senhores, os grandes obreiros da Exposição de 1882 e saúdo, neste momento, particularmente, o representante do Sr. Presidente da Câmara que patrocina esta exposição, com todos aqueles que igualmente a patrocinaram, e os membros da benemérita Comissão que promoveu este certame artístico.

Tenho dito!»

Seguiu-se, no uso da palavra e para encerramento da sessão de abertura o Governador Civil que, após saudação e homenagem sincera ao ilustre conferente, se dirigiu igualmente a cada uma das autoridades da mesa, concluindo:

«... Uma palavra para os organizadores desta exposição – «Cem anos de Artes Plásticas».

Parabéns! Sem dúvida, será fácil para todos nós podermos interpretar a finalidade desta exposição que nos é transmitida por esta Comissão Organizadora. Evocar a «Exposição Distrital de Aveiro» de 1882, homenagear os seus promotores, nomeadamente Marques Gomes.

E nós acrescentaremos: perpetuar uma mensagem de arte, deixar uma lição de solidariedade para com os artistas do passado e, ao mesmo tempo, os artistas do futuro. Lição de certeza e de estímulo para a Arte! E certamente, poderemos, talvez, também interpretar que desejarão sensibilizar as instituições para o fenómeno cultural.

V. Ex.as, digníssimos organizadores desta exposição, dispuseram de engenho, de empenhamento, de toda a vontade para deixar esta exposição à admiração de todos os Aveirenses. Sentirão, sem dúvida, o prazer do dever cumprido. E os Aveirenses, certamente, saberão apreciar esta exposição, dedicar-se e daqui aprender a lição que todos estes elementos da Comissão Organizadora lhes querem deixar.

Aos artistas expositores, àqueles que na verdade nos deixam aqui as suas peças, as nossas sinceras homenagens.

O Governo Civil colaborou por vontade própria, com o desejo, na verdade, de participar e de engrandecer iniciativas desta ordem.

Aquilo que se passa aqui é para todos nós, é para os Aveirenses, um acontecimento cultural. É um facto histórico! Será, na verdade, uma página importante na história cultural de Aveiro. Pensamos, temos a certeza que assim será!

E eu termino com as palavras do Dr. Amaro Neves, dando-lhes o maior realce que me seja possível e transmitindo-as a todos os presentes:

– «Que outras manifestações surjam, em defesa da identidade cultural desta Região de Aveiro».

Muito obrigado a todos!»

 

Após a cerimónia, decorreu uma visita guiada com os elementos da mesa e outras individualidades, estabelecendo-se franco diálogo entre grupos de visitantes, confrontados com as diversas actividades artísticas expostas, seus obreiros e respectivos trabalhos.

– A exposição

«Cem anos de Artes Plásticas» esteve aberta ao público de 10 a 27 de Março, aproveitando totalmente a área do salão cultural, com quarenta expositores cuja superfície de exposição se aproximava por unidade, dos / 99 / 2,20 m de comprimento por 1,70 m de altura, sendo a maior parte das unidades aproveitadas de ambos os lados. A par com essa área de exposição, havia 20 plintos para cerâmicas e uma dezena de mesas, para além de quatro vitrines, duas da Comissão de Turismo, de dois corpos verticais cada, divididas e compostas em três secções de prateleiras diversas, consoante as conveniências das peças, e mais duas vitrines horizontais vindas propositadamente da Vila da Feira, para as peças que exigiam mais resguardo.

Foram mais de 300 trabalhos, representando largas dezenas de artistas que, nas modalidades anteriormente citadas trataram «Aveiro (Distrito) – a paisagem e o meio humano». O «catálogo» que a edilidade aveirense fez gosto em transformar no seu Boletim Municipal, n.º 1, dá uma ideia do âmbito da realização, se bem que, por colaboração de artistas e coleccionadores, o número de trabalhos expostos acabou por ultrapassar, de longe, a quantidade, aí indicada, dada a inclusão de numerosas peças, em regime de «extra-catálogo».

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«O Presépio», de João Carlos, col. Museu de Ílhavo.

Desde nomes bem conhecidos nas Artes portuguesas, como Malhoa, Medina, Fausto Sampaio, João Carlos, Abel Salazar, Arlindo Vicente,... para só citar artistas falecidos, entre os maiores (remetemos o leitor para o citado catálogo), até aos mais lídimos representantes regionais (e recorde-se que houve representantes vivos de quase todo o Distrito), a exposição dava uma clara imagem do trabalho «plástico» desenvolvido.

Para um melhor acompanhamento dos visitantes, especialmente para grupos organizados, duas pessoas acompanharam de perto os últimos retoques de montagem (uma por parte da Câmara, D. Honorinda Cerveira, outra, Eneida Vidal, da ADERAV), com o que se foram inteirando de pormenores, objectivos, dados biográficos e estilísticos, evolução das fábricas e respectivas características, etc., etc., prestando um apoio importante na acção pedagógica deste empreendimento.

Durante os «Cem anos de Artes Plásticas», entendeu a Câmara de Aveiro expor, para apreciação e venda aos munícipes, duas obras representando a Beata Joana, Princesa de Portugal e Padroeira da Cidade: uma em bisquit com a sigla VA (Vista Alegre), série numerada; outra em barro vermelho, série ilimitada, ambas premiadas em concurso do ano anterior. Ao mesmo tempo a preço considerado «acessível», foram vendidas centenas de «boletins», cuja capa traduz fielmente o cartaz da exposição, da autoria de Cândido Teles.

Outras pequenas «lembranças» estiveram presentes: uma colecção de figuras regionais das oficinas Olarte e um pequeno busto de José Estêvão, este feito segundo a forma que foi produzida em 1882 para a célebre «Exposição Distrital», existente no Museu de Ílhavo, depois de restaurada. Deste busto, entendeu a organização, ainda em fase de indefinição de apoio, fazer uma série também limitada, para cobrir eventuais despesas, prosseguindo a ideia, após o empenhamento da C. M. A. por se achar, nela, um vínculo aos artistas e obreiros da já citada exposição centenária.

De certo modo, foi também essa união que nos levou a insistir na representação da Vista Alegre, também ela presente em 1882. E, diga-se em abono da verdade, que a VA o fez com a dignidade e variedade de trabalhos que todos reconhecem, aliás de acordo com os seus pergaminhos centenários, recorrendo aos coleccionadores particulares, por iniciativa do seu director, Eng.º Faria Frasco, para se inserir na temática proposta, ao nível das mostras internacionais que esta mesma empresa, ao tempo em que decorria a exposição, levava por algumas capitais europeias.

Quanto ao número de visitantes, uma surpresa autêntica nos estava reservada. Habituados como estão os aveirenses a um certo comodismo, constantemente criticados pela pouca adesão às manifestações de carácter cultural, estávamos longe de imaginar números. Mesmo assim, decidimos a contagem para avaliar da capacidade de resposta. Cerca de quatro mil e quinhentos visitantes foi para nós, elementos da organização, o maior prémio de tantos trabalhos e algumas incompreensões. Entre os visitantes, deram-nos particular satisfação os cursos terminais de Artes Visuais das Escolas Secundárias e grupos de alunos das Escolas Superiores de Artes do Porto.

Vários críticos por aqui passaram, tendo sido ponto alto da animação a conferência sobre «A Arte Europeia dos Últimos Cem Anos», pelo Dr. Matos Chaves, da / 100 / Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP), onde exerce a docência de Crítico de Arte, como outrora em escolas europeias. Da permanente referência as artes portuguesas em contraste com a evolução internacional, surgiu diálogo com os presentes, de certo modo apreensivos quanto ao nosso atraso cultural!...

Ainda durante a exposição e procurando dar cumprimento ao compromisso assumido no «Boletim Municipal», n.º 1, pág. 6, no sentido de tudo se fazer, por parte da Comissão Organizadora, para que nascesse o Museu Municipal, dispondo-se «a recolher material, logo que existissem instalações, mesmo que provisórias, no tempo e no espaço sem ficarmos à espera das instalações da «Fábrica Campos», fez-se aquela comissão representar pelo autor destas linhas, em sessão camarária de 21 de Março com o objectivo de saber, perante a nossa disponibilidade, qual era a resposta.

Depois de debate sobre o assunto, comprometeu-se a edilidade a estudar com a Comissão dos «Cem Anos de Artes Plásticas» um texto apelando aos aveirenses empenhados em participar com obras ou documentos «em depósito». Para recolha imediata do material referente ao Museu Municipal, foi determinado que a cave da «Comissão de Turismo» era, de momento, a única dependência apta para o efeito.

 

– Notas finais

De uma forma geral – e foram muitos aqueles que estando ligados a manifestações de índole artística, fizeram questão de deixar a sua opinião –, para além de um ou outro aspecto pontual em que todos reconhecemos ter havido falhas, podemos referir, sem lisonja, que eram de apreço as palavras sobre o acontecimento, ultrapassando de longe quer em trabalho quer em méritos a expectativa criada. Houve também casos de pessoas que, tendo anteriormente à sua abertura posto reservas sobre a validade e receptividade na vida cultural de Aveiro, vieram, posteriormente, (e cremos que com sinceridade) rectificar juízos emitidos.

Nem tudo, porém, foram rosas. E uma das críticas que, em nosso entender, foi justificada, referia-se ao facto de haver obras e consequentemente artistas que não mereciam estar presentes. São contingências de todos os empreendimentos. Quanto mais «distrital»... pois! Aveiro, como o defendeu magistralmente o crítico Dr. Matos Chaves, para poder desempenhar papel importante na vanguarda das Artes Plásticas portuguesas tem de fazer muitas exposições, cada vez mais exigentes, bem como criar condições para que os seus artistas possam ir ao estrangeiro, aos centros da Arte e da Cultura, aos ministérios, às instituições vocacionadas para o desenvolvimento artístico... o que, até agora só parcialmente tem sido possível para os de Lisboa e do Porto.

Por isso, conscientemente, corremos o risco de alargar a participação. Talvez num futuro próximo, possamos concluir que foi um «risco calculado» ou, pelo menos, foi dada uma possibilidade. De resto, se expondo mais de trezentas obras, todas fossem de boa qualidade, o nosso distrito seria um oásis autêntico na vida cultural do País! E o País, nestas coisas como noutras, é Lisboa.

Às informações e pedidos de apoio remetidos ao Ministério da Cultura, ao Instituto Português do Património, à Fundação Gulbenkian... apenas esta respondeu e em termos que são de lamentar! Nisso, um elo comum entre 1882 e «Cem anos de Artes Plásticas». Ninguém ouviu Marques Gomes, ninguém nos ouviu a nós!

Fica-nos a eterna esperança de que o «aveirismo» do Governo Civil e da Câmara Municipal de Aveiro continue a apoiar outras iniciativas como o fez com esta exposição distrital. Será o reforço do poder local? Será a força da verdadeira regionalização? A consciência de que a vida cultural tem de ser acarinhada para benefício de toda a comunidade? O reencontro da nossa identidade?...

Oxalá que como dizia o Sr. Governador Civil, «Cem Anos de Artes Plásticas» seja efectivamente «um marco»; pois e conforme escrevia o artista murtoseiro, ao abrir da exposição, a (sua) «fama ao longe toa»!

Amaro Neves

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P. S. – Por despacho do Ex.mo Senhor Secretário de Estado da Cultura, com data de 2 de Maio, quando se ultimava já todo o trabalho da presente edição, foi a Comissão Organizadora de «CEM ANOS DE ARTES PLÁSTICAS» notificada de que, por se considerar «que iniciativas deste tipo, tendem a vitalizar a vida artística nacional, fora dos grandes centros urbanos, por potencializarem o aparecimento de outras iniciativas de carácter original e próprio do meio ambiente», lhe havia sido atribuído um subsídio condizente com o empreendimento e despesas efectuadas.

Uma excepção que nos apraz registar.

A COMISSÃO ORGANIZADORA

 

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