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N.º 23/25

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

1977/1978

 

Vária


 

Extractos de uma conferência realizada em 14 de Junho de 1930 pelo Comandante G. R. da Rocha e Cunha sobre Relance da História Económica de Aveiro, soluções para o seu problema marítimo a partir do século XVII.

 

Quando o canal da barra esteve situado entre a Torreira e o Almundazel, ainda próximo da foz do Vouga, era muito sensível o declive do rio sobre o mar, na baixa-mar, resultando deste facto que as cheias eram menores e de menor duração, e pela mesma razão escavavam mais o leito do rio dando-lhe capacidade para conter as enchentes. As profundidades do canal principal da laguna assim o demonstravam no fim do século XVII, mantendo-se ainda a de 39 palmos no rio do Almundazel e a de 36 palmos em frente da Senhora das Areias, local do canal da barra nos séculos XV e XVI. A amplitude das marés oceânicas, pelo contrário, dava em todas as posições que a barra ocupou, desde o Bico até à Senhora das Areias, um grande declive do mar sobre a laguna e sobre o Vouga, e portanto dava grandes marés salgadas, havia uma grande diferença de altura entre a baixa-mar e preia-mar, que favorecia a indústria salineira, e, como eram renovadas as águas da laguna duas vezes em cada 24 horas, não podia aparecer a impaludismo.

Nas vazantes a grande massa de águas do mar entradas nas enchentes, engrossada pelas águas do Vouga, conservava o canal da barra largo e profundo.

Com este regímen de marés os campos do Vouga estavam sempre enxutos e mantinham-se em nível superior ao leito do rio e dos canais, os quais ainda tinham a profundidade necessária para manter as águas em equilíbrio, transbordando apenas nas ocasiões de cheias, e fecundando as terras. As sementeiras eram feitas na primavera e as colheitas no outono, com toda a regularidade, regímen essencial para garantir a produção. Durante o avanço do cordão litoral até à Senhora das Areias, manteve-se sempre este regímen de equilíbrio, favorável ao progresso de todas as actividades e à expansão demográfica.

O tráfico marítimo, rapidamente intensificado depois da tomada de Lisboa, deslocara-se do estuário para a laguna; igualmente se deslocou a indústria salineira, apropriando os terrenos lagunares em condições, no Bunheiro, Ovar, Aveiro, Sá, Vagos, Ílhavo; a agricultura expande-se pelas ilhas do delta e terrenos de aluvião, desenvolvem-se a pesca lagunar e a marítima; a expansão demográfica era a consequência de tão abundantes e variados recursos. O agrupamento urbano de Aveiro crescera em importância; os seus pescadores obtiveram de D. Afonso IV, por 1330, os primeiros privilégios e apareceram organizados em confraria, a da Senhora da Alegria. Esta confraria constituía a organização corporativa de pescadores e mareantes com o respectivo estatuto; desde o Infante D. Pedro até ao seu estatuto de 1577, dado no reinado de D. Sebastião, concedem-se, confirmam-se, renovam-se, importantes privilégios e liberdades, que no conjunto constituem providências de fomento de maior utilidade. É no reinado de D. Sebastião uma força social que consegue impor-se ao Bispo de Coimbra, obtendo uma provisão real que impede a ingerência da autoridade eclesiástica na sua administração, afirmando clara e expressamente a supremacia do poder civil.

Em 1380 as urcas de Aveiro incorporaram-se na frota, que saiu do porto em defesa de Lisboa ameaçada pelos castelhanos.

Em 1413 o Infante Regente funda o convento de S. Domingos, e cinge a vila com muralhas. As condições precárias de segurança da vida social, na idade média, aconselhavam esta providência para as povoações abastadas. Em 1422 tinha 2769 habitantes; Vila Nova já surgira com as suas cabanas e casas colmadas, e expandia-se gradualmente por campos e vinhas até Sá.

Pelos documentos da sua confraria verifica-se que a pesca é activíssima no mar e na laguna; as medidas proteccionistas de que é objecto tomam algumas vezes aspectos interessantes.

A navegação estrangeira frequenta de há muito o porto; assim o prova o embargo de navios franceses ordenado por D. João II.

A produção dos campos do Vouga é de 30 000 moiros de pão; as quinhentas marinhas produzem 16 000 moios de sal. / 70 /

No século XVI a população da vila atinge 14 mil almas com 2500 fogos; os pescadores, mareantes e construtores, habitam Vila Nova; há na vila numerosos comerciantes estrangeiros, ingleses e flamengos, que vivem em bairro especial.

*

«Na sua «História de Portugal» o Sr. António Sérgio define da seguinte maneira a função dos portos na fase da vida da nacionalidade, que precedeu os descobrimentos:

«Os portos eram mais numerosos do que hoje, e constituíam uma escala indispensável entre o Norte e o Sul da Europa. Daí proveio a formação no litoral de uma burguesia cosmopolita, oposta em mentalidade e interesses aos senhores rurais do interior. O antagonismo entre a burguesia comercial marítima e os senhores do interior teve uma participação importantíssima na evolução da sociedade. As cruzadas do século XI promoveram o desenvolvimento dos portos, e portanto a não incorporação de Portugal no todo político a que presidia Castela.»

Desenvolvendo a sua teoria, o Sr. A. Sérgio explica com muita clareza a decadência económica da nação nos séculos XV e XVI, e a desorganização da sua vida nos séculos seguintes.

A crise rural manifestava-se desde o século XIV, as providências tomadas para fomentar o trabalho agrícola poucos resultados tinham produzido. A nobreza, em vez de acompanhar e dirigir o trabalho produtor, agravava a terra e as indústrias com encargos parasitários; D. Diniz não consegue convencê-la da dignidade e da nobreza do trabalho agrícola. Assim a vida campestre e as profissões manuais assustavam e arruinavam os indivíduos que as exerciam; as crises de subsistência eram frequentes. Os campos despovoam-se para as terras do litoral, entregando as suas energias ao tráfico marítimo, favorecido pela situação geográfica do país e pelas necessidades económicas da Europa do Norte.

A política de transportes venceu a política de produção; este fenómeno dominou a vida económica da nação, intensificou-se com os descobrimentos e conquistas, e arruinou-a promovendo a crise que veio até ao nosso século.

Resumindo: o sr. António Sérgio demonstra que não foi possível equilibrar a política de produção com a política de transportes. A falta de comunicações terrestres deve ter sido uma causa importante desta crise. De que serviria produzir muito nas terras interiores, se o excedente do consumo local não podia ser transportado para centros não produtores, ou de consumo superior à produção? A mesma dificuldade impedia a colocação no interior dos produtos do litoral, e dos que por via marítima afluíam aos portos.

O fenómeno económico, tão lucidamente exposto pelo Sr. A. Sérgio, tem causas muito complexas, e entre elas a que acabamos de indicar.

É porém em plena crise de produção nacional, no primeiro quartel do século XVI, que a prosperidade de Aveiro atinge o seu máximo esplendor, e a destaca, como excepção, no sombrio quadro da economia nacional. Arruinada a indústria agrícola sucedem-se as crises de subsistências, importam-se grandes quantidades de cereais e produtos manufacturados, há grandezas e muita ociosidade, morre-se de fome, e as riquezas do oriente não chegam para pagar o deficit, mas na região aveirense a agricultura, a indústria salineira, a pesca, o comércio, continuam prósperos, as sisas entram pontualmente no Tesouro Real e há sobras, porque se mantinha o equilíbrio entre a política de produção e a de transporte, explorando activamente as riquezas da terra e do mar numa qualidade económica muito rural, agrícola, de mentalidades diferentes, é certo, mas ligadas por interesses comuns cimentados na facilidade das comunicações lagunares e navais.

A vila vendia sal, bacalhau, peixe, tecidos, esparto, aduela, ferro, papel, vidros, pólvora, linho e consumia e transportava madeiras, cereais, legumes, vinhos e frutas.

O antagonismo de mentalidades só explodia em conflitos irredutíveis, quando a catástrofe política e o cataclismo da natureza estancarem todas as fontes de riqueza, submetendo uns e outros à soberania devastadora da fome, um século mais tarde, já no esvaecer dos fumos da Índia.

A influência decisiva das condições físico-geográficas revela-se na persistência da actividade das forças produtoras, quando a sua decadência já era visível por toda a parte. Nem as pestes que flagelaram a região puderam deter este progresso; em 1348 Aveiro ficou quase despovoada pela peste; seguem-se as de 1469, 1470, 1485, 1524, uma das mais graves, de 1569 que deu origem a uma fome por falta de braços para as culturas, de 1579 a 1580 que produziu graves perdas, e as actividades locais reconstituem-se e retomam a sua marcha ascendente.

Agora os factos comprovativos.

No movimento do porto de Aveiro de 1619 a 1624 figuram duzentos e oitenta navios ingleses, franceses, flamengos e espanhóis, numa média de 46 navios por ano, dos quais 102 ingleses vindos directamente da Terra Nova com bacalhau, 81 de várias nacionalidades com cereais provenientes da França, Flandres, Alemanha e Holanda, e aparece já a importação de sardinha / 71 / salgada e arenques. A exportação é representada apenas por 34 navios estrangeiros que carregaram sal, menos de seis cada ano.

A navegação nacional tinha desaparecido.

De 1683 a 1699 entraram apenas 245 navios estrangeiros, média anual de 14, dos quais 77 ingleses com bacalhau da Terra Nova, o qual representava 50% das importações, mantendo-se as mesmas características em relação à natureza das outras mercadorias importadas.

Durante o século XVIII entraram 238 navios, média anual 2, 3; o tráfico é intermitente, há dois largos períodos, um de cinco, outro de onze anos, em que não há entrada alguma; desapareceu a importação do bacalhau e a exportação de sal foi diminuta.

No fim do século XVII a burguesia mercantil tinha desaparecido e os comerciantes estrangeiros tinham abandonado a praça.

A ruína da agricultura, a ruína das salinas, causará o empobrecimento geral; o mercado não tinha portanto capacidade de absorção. O único comerciante inglês, que em 1685 ainda estava na vila, tinha mandado vir um navio de bacalhau, e queixava-se de que não tinha comprador.

A decadência da pesca lagunar vinha do tempo dos Filipes. Escasseara e encarecera o peixe; o almotacé tabelava os preços, fixava o número de peixes de cada cambo, e quantos deveriam ser grados.

Era porém o último recurso dos pescadores; durante o inverno exploravam a laguna sem ordem; a capitação da produção era insignificante, o que os obrigava a emigrar para o Tejo, para o Douro, e outros rios, com os barcos e redes, tendência emigratória que ainda hoje se mantém. Com precárias comunicações com o mar, e impossíveis até durante largos períodos exerciam de Junho em diante a pesca marítima saindo directamente da costa para o mar com as artes de xavéga. Em 1789 Constantino Botelho encontrou em Aveiro apenas dois barcos de pesca, e duas companhas de xávega de 80 homens cada uma que trabalhavam de Junho a Fevereiro, e emigravam depois para o Tejo; os filhos dos pescadores raramente tomavam o modo de vida dos pais, preferindo qualquer outro.

Os campos permaneciam por largos períodos alagados e incultos; poucas marinhas davam sal, de péssima qualidade, muito negro, e o mercado externo repudiava-o; os da terra, por economia, salgavam o peixe numa salmoira escura e infecta onde apodrecia à espera de raro comprador.

A desvalorização da propriedade rural é o melhor índice do empobrecimento geral; as freiras do Lorvão deviam receber das rendas dos seus campos do Vouga em cada ano, seis mil alqueires de milho e feijão; no fim do século XVIII traziam arrendadas por sete mil e duzentos reis anuais aos ervagens e juncos desses campos, sua única produção. Os mesmos campos tinham produzido no fim do século XVI milhão e meio de alqueires de milho e feijão.

Nos fins do século XVII, a freguesia de S. Gonçalo tinha 370 fogos; só trinta viviam das suas fazendas, sendo os restantes muito pobres e alimentando-se miseravelmente; a freguesia da Vera-Cruz, tinha 455 fogos, pobríssimos na sua grande maioria, andando os filhos a mendigar. As casas foram derruindo, e raras vezes eram erguidas. A vila de Esgueira estava também em ruínas, e os poucos habitantes de Aveiro, que podiam reparar as suas habitações, aproveitavam delas os materiais, que não podiam conseguir por outra forma. A miséria remendava-se com os despojos de outra miséria.

No fim do século XVIII Aveiro tinha 900 fogos e 1400 casas e pardieiros em ruínas, e desabitados ou abandonados; a desvalorização da propriedade urbana atingira o seu limite máximo.


DAS CONDIÇÕES DA DEMOCRACIA

CENTRALIZAÇÃO / REGIONALIZAÇÃO

Por J. Tiago de Oliveira

Pequeno Estado feudal da Ibéria multiforme, Portugal resistiu à atracção centrípeta de Madrid e manteve-se um Estado independente, mercê de vários factores ainda insuficientemente estudados. Mas o tempo passa e de D. Afonso Henriques a D. Manuel I, com altos e baixos, vai sendo tentada uma centralização do Estado, com o abater das estruturas locais. À expressão «meu Pai deixou-me rei das Estradas de Portugal» segue-se uma acção centralizadora de que a revisão dos forais é sintoma sistemático. Pode dizer-se que, desde então, o nosso País é um Estado centralizado que os sucessivos governantes vão reforçando. A quebra das liberdades municipais, das autonomias, foi de resto analisada, entre outros, por Herculano.

E hoje, o nosso País é, tão somente, uma estrutura profundamente centralizada, dependente de uma / 72 / oligarquia que decide, muitas vezes, associada a oligarquias locais, em mútua convivência, mal servida de caminhos e estradas, ao invés do que deveria ser, quando muitas decisões, mesmo pequenas, têm de vir ao Terreiro do Paço para ser homologadas, autorizadas, despachadas. Os poderes reais das Câmaras Municipais, de quase todas, são diminutos, mal servidas como são de autonomias financeiras, com ligações legais e orçamentos dependentes do centro tentacular, multiforme, disfuncional que é Lisboa. Correm parelhas, pois, a dependência central e a pequena autonomia local, mormente no sector cultural: veja-se, por exemplo, os locais onde há exibições de Arte, sessões musicais ou palestras de tipo cultural, para não falar de conferências científicas ou técnicas. Tirando Lisboa, Porto e Coimbra mais ou menos habituais (a capital, a capital do Norte, a Lusa-Atenas, no calão habitual), o que fica? Évora, Aveiro, Braga e raramente outra capital de distrito ou cidade. De vilas, raro reza a História.

Terra monocéfala (ou talvez bicéfala, de profundas distorções regionais – compare-se com o equilíbrio distributivo da Holanda e da Suíça, países da nossa dimensão há que lhe dar nova vida, de modo a igualar as possibilidades de todos os cidadãos, pois a centralização atrofia o interior, concentrando quase toda a actividade no litoral, especialmente no pequeno rectângulo de que Porto, Lisboa e Coimbra dão aproximadamente os lados.

A resposta que todos dão é, evidentemente, a regionalização ou, pelo menos, a desconcentração. Porém, qual das regionalizações? A da Administração Interna ou a do Plano? A da Igreja Católica ou a da Justiça? A da Educação ou a do Exército? A do Saneamento Hídrico ou a da Agricultura? Parece que se podem contar mais de uma vintena de regionalizações do Continente! Todas motivadas unidireccionalmente, sob uma só perspectiva, tomando tão-só algumas das muitas variáveis.

Apesar da centralização, todavia, na Monarquia Absoluta existiam regiões homogéneas, com unidade ecológica, agro-clímica, .económica, cultural. Eram as províncias. A formação dos Distritos, que corre várias oscilações durante a Monarquia Liberal, desfez essas unidades que, em geral, apenas subsistem na linguagem: é-se minhoto ou ribatejano, transmontano ou algarvio, beirão ou alentejano. Ninguém se define num distrito, excepto talvez Aveiro.

Parece, pois, de tentar, de novo, definir unidades homogéneas do País, com estruturas funcionais, facilitando transferências de funcionários e indústrias, servindo-as de eixos de transporte, de modo a refazer a vida local e regional destruída, tornar dinâmicas áreas em morte lenta, submetidas à atracção das cidades.

É pois de crer que, nesta linha, se deve tentar uma análise multidimensional, não sendo difícil fixar as regiões/províncias às quais se possa atribuir capacidades de decisão, controladas equilibradamente, para evitar propensões excitadamente regionalistas.

Por isso, é evidente que uma regionalização tem de ter dimensões experimentais, procurando lenta, mas metodicamente o caminho de reviver das comunidades integradas, moderando as cidades dominadoras, procurando uma vida efectiva para todos, tentando legislar de modo a incentivar o equilíbrio democrático necessário.

Talvez seja, pois, de fazer reviver a fórmula dos Altos Comissários, agora para zonas de intervenção, com poderes alargados, podendo conduzir de modo global e integrado os problemas da área. Três áreas de intervenção parecem surgir naturalmente, contemplando uma amostra de zonas de comportamentos sócio-económico-culturais homogéneos, mas diferentes: o Nordeste, Aveiro e o Algarve. Nestas zonas, definidas as autonomias administrativa e financeira necessárias, em passos pequenos, mas certos, pode ensaiar-se o modo de regionalizar, a fim de desconcentrar poderes e desenvolver as áreas em causa.

Por que não se faz? Daqui a anos já haveria ideias eficazes, experimentadas, permitindo melhorar a vida de todos os portugueses, aliviando a pressão distante, mas forte, do poder central, com a descentralização das escolas e do comércio, da agro-pecuária e das pescas, da administração e da indústria, sem perder a ideia de que o País é total. E, ao mesmo tempo, dar maiores «forais» aos Municípios, excitando as actividades autónomas, refazendo comunidades que o tempo destruiu parcialmente. Eis uma tarefa urgente que se não pode adiar.

LUTA,  27 de Maio de 1978

 

páginas 69 a 72

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