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N.º 21

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1976 

O Sal e o Homem

(REQUIEM SOBRE O APAGAR DE UM TEMA)

Por M. da Costa e Melo

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Os difíceis caminhos do sal

O sal é para o homem de Aveiro ou que na zona da sua Ria criou raízes, guelras ou asas, uma constante.

Vai desde o comezinho agradável do tacho ou da panela até ao quase irreal das transparências e reflexos ímpares que motiva nos espelhos de água circundantes.

Mas, para lá chegar, o comezinho e o quase irreal têm toda uma rota de suor, lágrimas e calos em que o sal vive na metamorfose do sangue, da pele e da água.

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Os saleiros marcam a presença duplamente branca das velas e do sal...

Não é o problema económico do sal que eu vou focar. Para tanto minguavam conhecimentos, e, felizmente, não me falta – julgo eu – uma clara noção do género de calçado que o tamanqueiro que em tal matéria sou, poderia fazer.

O que me leva a abordar o tema é a saudade, cada vez mais «delicioso pungir de acerbo espinho» para usar a perfeita síntese de Garrett, a que tirarei o delicioso dada a vizinhança ou proximidade do tempo em que seja pungir sem delícia e espinho cada vez mais acerado.

É que antevejo as romagens de saudade ao templo de luz que toda a Ria é, sem o ver marchetado de cristais em pirâmide a marcarem, no azul dos céus baixos ou nos distantes e altos cinzas do Caramulo, do Buçaco ou do Arestal, aquele contraste que enche os olhos ávidos de reter as imagens que sabem perder em breve.


Eu sei que à «iconografia» do sal só falta a sistematização que pode ser-lhe dada por um profundo
/ 42 / e atento trabalho de grupo a culminar, um dia, numa sala de museu em que figurem, para além dos repositórios materiais de alfaias e até de «maquettes» das marinhas, todo esse mundo de reflexos artísticos e humanos que o cinema, a fotografia, a pintura e a escultura foram fixando, sem esquecer, como elemento fundamental, o estudo das afinidades salgadas da água e do suor com os marnotos e moços do seu moirejar e até – porque não? – aqueles arroubos d'alma interessada e sensível de quantos se sentiram atraídos – enfeitiçados, até – por todo esse mundo de luz, tragédia e angústia, esforço e contrastes que na planura mista da laguna toma corpo na mais espantosa das núpcias que o trabalho e a natureza criaram.

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Pernas de infância malacabada...

É que em parte alguma isso nos surge como aqui. Em nenhures a paleta do artista-vida-trabalho é tão rica e se mostra tão naturalmente propícia à criação da beleza sem desvirtuar o Homem que lhe dá a espantosa verdade do real fantástico que, só por habitual, nos escapa ao contemplá-lo.

Aqueles esteiros que, como os do Soeiro Pereira Gomes, se mostram, por vezes, como dedos de mão espalmada onde também labutam Ginetos e Guedelhas que nunca foram meninos, são bem o traço de união e fronteira que une e separa a fita dos cansaços nervosos da bicicleta em busca do lar tantas vezes distante, dos estreitos e difíceis caminhos de lama onde, canastra à cabeça e pernas de infância mal acabada, fazem maratonas de esforço em busca de uma meta que raramente se sabe onde está à espera.

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A sugestão de seios túrgidos...

É todo um desafiar de sensações profundas esse contacto com o salgado da Ria, qualquer que seja a época do ano em que sobre ele abramos os olhos do corpo com os da alma e os do pensar.

Nem Inverno é, verdadeiramente, uma pausa nas imagens em constante mutação por força do Homem em busca de alianças com a matéria que, usurária, só dá o sal salgado em troca do salgado do suor. No Inverno a água cobre tudo e o geométrico xadrez a que uma ou outra estaca marca a irregularidade e o ousio, mal se nota. Há qualquer coisa de incubação em tudo isso que escapa aos olhos virgens, mas não foge à atenta expectativa dos que já sentiram, em cada ano que passou, a beleza corrosiva do sal, esperança e desespero do seu viver.

E é vê-los, logo que o tempo os chama para a faina, a preparar a oficina do seu labutar, limpando-a do moliço com carinhos de dona de casa em seu lar e quase a encerando, na lama dos rectângulos planos, / 43 / depois de lhes abrir a água, ainda suja e negra, que toma contornos fantasmagóricos dignos de atrevido pintor.

É curiosa essa fase de preparação das marinhas.

Talvez seja aquela em que todo o esforço é esperança e tudo parece sorrir nela ainda que ausentes sejam os cristais que o pagarão.

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O sal salgado em troca do salgado do suor...

É quase sempre o trabalhador mais velho do salgado o que alinha os sonhos do inverno ao ver retirar o que cobre as linhas direitas do seu xadrez, antes do sal começar a nascer, como que a medo, em espumas a que o sol dá brilho e reflexos de beleza sem par.

Se o Norte ajuda e o Sol é amigo, ei-Ios açodados no bailado do arrastar dos cristais até à canastra do moço e depois, por esforço deste, até ao crescer alegre dos cones a marcar volumes na planura mista.

E, quando o ano vai de feição, é curioso ver como a cordilheira se forma e altera as perspectivas. Não raro surge, na vizinhança casual de dois montes, a / 44 / sugestão de seios túrgidos de sempre renovada virgem que cada ano deixa de o ser para o ser de novo a causar inveja àquelas que tendo deixado de o ser de uma vez, se o foram, não o voltarão a ser!

O monte de sal destapado ou coberto, completo ou incompleto é um manancial inesgotável de sensações estéticas.

Basta que o céu mude de tom ou as nuvens resolvam brincar fazendo pano de fundo variável, para que o espectáculo se renove e nos prenda, mais e mais, os nossos olhos.

E mesmo depois, quando os frios do Outono começam a apontar as próximas matanças e a lembrança dos «Malhadinhas» de antanho impõe que o sal saia do seu lar e vá, por aí acima, cumprir o seu dever gostoso, mesmo então, o salgado tem beleza e surge, saudoso do branco e do brilhante mas enfeitiçado no gretado das lamas secas com aspectos irreais de criação fantástica.

Se é certo que os prosaicos taipais da caminheta ou do vagão não fazem esquecer, antes pelo contrário, o dorso dos burricos e o choutar dos almocreves do passado em busca das Beiras amigas de para além das serras, também o é que os saleiros marcam, ainda embora raramente, na pista ventosa da Ria, a presença duplamente branca das velas e do sal. E do alto da ponte da Varela vale a pena ver, em dia de nortada, as proas altaneiras a dizer à concha das velas que sabem a rota do seu destino.

*

Mas... penso agora, não estarei eu a viver, cedo demais, a saudade de um ressuscitar de sensações? Cedo demais? Mas que tempo terei eu ainda?

É melhor aproveitar!

Junho de 1976

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páginas 41 a 44

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