Acesso à hierarquia superior.

N.º 21

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1976 

Numisma com a efígie de Honório

– CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DA PRESENÇA ROMANA
   EM CACIA

Por João Sarabando

É consabido que Gaspar Barreiros, fidalgo e cónego da Sé de Évora, escreveu, em meados do século XVI, um volume, Corografia de alguns lugares, onde conclui que a tão buscada e jamais achada Talábriga demorava, afinal, em Cacia, «nas ribeiras do rio de Vouga, junto da villa de Aueiro, specialmente onde ora stá a igreja de Sanct. Juliani».

  Clicar para ampliar.   Clicar para ampliar.  
 

A moeda romana (anverso e reverso),ampliada, que ostenta a efígie de Honório.

 

Ao sabor da indolência de certos escritores ou ainda de inflamados bairristas, o mito pegou de estaca até 1907, altura em que Félix Alves Pereira lhe deu profunda se não mortal machadada. Entretanto, e para engordar a fábula, Frei Bernardo de Brito, que tinha dois hábitos – o de frade e o de meter a ficção onde não era chamada –, iria ao ponto de fazer coincidir a localização de Talábriga com a da vila de Aveiro. Mercê de tal pólen, a fabulazinha, aliás sem qualquer justificação, como que germinou, até se esfolhar por completo.

Há pouco ainda, Francisco Ferreira Neves, estudando a possível situação geográfica da decantada urbe, era de parecer, aduzindo para tanto razões plausíveis, que a devíamos procurar em terras do interior e não na corda do litoral.

Contudo, se Gaspar Barreiros deu raia – e perdoe-se-nos a chã locução – ao identificar Talábriga com Cacia, teve, paralelamente, o altíssimo mérito de trazer à baila um antigo e esquecido local onde estanciaram outrora gentes de Roma, e, depois, os suevos. Com efeito, lê-se em dado passo da mencionada Corografia de alguns lugares: «Na qual villa (Cacia) e igreja de Sanct. Juliã nas ribeiras de Vouga situadas, se acham vestígios antigos. s. os fundamëtos de hua torre que na memoria dos homes inda stava quasi inteira, onde em outro tepo segundo ficou fama de hus em outros chegavam navios da foz do mar, porque inda ali se achâram pedaços d'elles e anchoras juncto da dita torre em hua lagoa. Afora muitos vestigios e ruinas de argamassa que dentro em seu ambito cõprehende hua milha pouco mais ou menos».

Da leitura atenta destas linhas não se torna difícil concluir que Barreiros, embora personagem viajada e / 37 / culta, nunca passou por Cacia, valendo-se, isso sim, de informações obtidas. E que dificuldade, se gravitava à sua volta enxame de turibulários, alguns deles com boas luzes? Mas foi pena, já que o exame directo lhe forneceria abundante cópia de inestimáveis pormenores.

Não obstante Cacia vir à tona nas páginas de autores dos séculos XVI e seguintes, a verdade, porém, é que só recentemente as suas entranhas seriam desvendadas. ,Aconteceu nas décadas de vinte e trinta, quando fornecedores de pedra e saibro para as estradas revolveram completamente o sítio da Torre, ou seja, aquele a que aludira quatro centúrias antes Gaspar Barreiros.

No seu opúsculo A Estação Arqueológica de Cacia – I – Primeiras palavras, Primeiras impressões, Alberto Souto refere a págs. 9: «Examinando o corte das pedreiras abertas, constatei que uma camada de cacos e destroços de habitações se estendia por todo o terreno, a um metro, pouco menos, da superfície do solo arável e cultivado, e que nessa camada abundavam os fragmentos de louça e as pedras, de granito e xisto, de construções demolidas».

E mais adiante:

«Arranquei alguns cacos. Surgiu-me cerâmica doméstica de qualidade e forma vária, mas alguns pedaços de colo de ânfora, misturados com tegulae, imbrices e tijolo, restos de cozinha, ossos de caça, cascas de moluscos, e uma grande extensão de cinzas e carvão,

mostraram-me que ali existira um povoado importante e não apenas uma vila.

«Procedi ao exame topográfico do local e abri um inquérito.

«O sítio chama-se a Torre e dali se têm desenterrado há muitos anos louça, âncoras, ferragens, moedas de ouro, prata e cobre, mós, fornos, restos de esqueletos humanos, ossos, etc.

«Tudo condizia, afinal, com a importância que a Cacia alguns autores atribuiam, sem contudo a inspeccionarem e classificarem.

«Estava indubitavelmente ali o ubi de um castrum ou de um oppidum dos tempos romanos, possivelmente vindo da época lusa, posteriormente romanizado e mais tarde destruído, cujos escassos restos o destino poupou /.../».

Clicar para ampliar.

Das suas visitas ao sítio da Torre, Alberto Souto recolheu um minguado mas valioso espólio, que se encontra no Museu Nacional de Aveiro. Inumeráveis elementos, como sublinha, anteriormente desenterrados, não deixaram rastro. Levados alguns por curiosos e outros pura e simplesmente desfeitos. O costume... E, por mal dos pecados da Arqueologia, não há que esgravatar de futuro no outeiro da Torre, porquanto foi totalmente, deploravelmente, revolvido e rasado. Bondará dizer-se que a procura dos citados materiais para a construção de estradas implicou barreiras da ordem dos vinte metros de altura. Tal qual assinala o antigo director do Museu de Aveiro, extraíram-se ali milhares de metros cúbicos de pedra. Tantos que, no dizer de testemunhas fidedignas, de velhos moradores da freguesia, o outeiro ficou reduzido de dez a doze metros na sua altura primitiva. Numa palavra, desapareceu do mapa.

Fragmentos de uma estatueta e de uma armela, em bronze, encontrados no sítio da Torre.

Noutra página do opúsculo, Alberto Souto, e com razão, adverte: «O problema (respeitante à Torre) tem um grande interesse arqueológico, tem uma grande importância histórica /.../» E acrescenta: «Pode Cacia ter sido a Talabriga da Lusitânia pré-romana, mencionada por Apiano. Pode ter sido uma Lavara, confusa e nebulosamente apontada por alguns autores. Pode Cacia ter sido uma das Talabrigas da Lusitânia romanizada, sem ser mesmo a do Itinerário de António Pio.

«Pode Cacia ter sido uma cidade sua vizinha e irmã, uma aliada na guerra ou sua rival na prosperidade.

«Mas que o não tenha sido, nem por isso, como diz o ilustre professor sr. dr. Mendes Correia, a estação agora classificada, deixa de ter uma grande importância sob o ponto de vista arqueológico. / 38 /

«O estudo sobre o assunto está apenas no começo». Sem pretendermos, de modo nenhum, apresentar uma tese acerca do tema, sempre adiantaremos que não se nos afigura haver existido ali qualquer Talábriga. A menos que queiramos utilizar uma lupa para engrandecer as coisas. Não começou logo o próprio Gaspar Barreiros por nos dizer que o local «em seu âmbito cõprehende hua milha pouco mais ou menos»?

Em nosso entender, no outeiro, com pendor mais suave para os lados da igreja matriz e então praticamente cercado de água, que dominava a foz do amplo estuário do Vouga, houve apenas um vicus, isto é, um lugarejo, suporte de torre ou vigia, sentinela atenta às incursões dos piratas oriundos do norte e, sobretudo, do sul. Oppidus importantes, como os do monte de São Gião (Souto da Branca, Albergaria-a-Velha) e do Cabeço do Vouga, não ficavam longe. Além disso, importará correlacionar tudo com o comércio marítimo praticado. Por exemplo, a saída de minérios das várias laborações existentes. Nas minas de chumbo da Malhada (Sever do Vouga) recolheram-se lucernas, como acentuam Jorge de Alarcão e outros, dos séculos I e II d. C

No volume Póvoas Marítimas do Norte de Portugal, Alberto Sampaio não alude a Cacia. Será, portanto, que no sítio da Torre existiu tão-somente, como supomos, uma atalaia militar, depressa abandonada ou mesmo destruída escassas décadas após a queda do Império Romano? Não se nos antolha carecida de sentido tal suposição. Como, apesar de tudo, não merecem totais desatenções os topónimos Paço e Póvoa do Paço e, muito especialmente, o que reza Campo da Matança, qualquer deles correspondendo a localidades ou locais próximos.

Assinalando este última, Alberto Souto, que foi quem a detectou, admite a hipótese de ali se haver travado uma sangrenta e quiçá decisiva batalha. Do povoado, em suma, ter visto um dia, com pavor, «as hordas bárbaras entradas pelo Vouga ainda ali, então, largo e profundo, saltarem pela borda dos seus barcos, businando e gritando ameaças de extermínio e escreverem na sua ribeira, verdejante a sentença de morte que o prostrou».

A conjectura não é de excluir, pelo menos no tocante a uma possível batalha naval. Outrora, o Chão da Matança, mais tarde parcela do extenso campo vizinho, formado que foi pelos terrenos de aluvião, situava-se, de facto, em pleno estuário do Vouga.

Rocha e Cunha esclarece: «Num passado relativamente distante, o litoral tinha um aspecto muito diferente daquele que hoje apresenta; a partir do local em que está a lagoa de Esmoriz, ou da Barrinha, seguia, mais pelo nascente, por Cabanões – povoação antiquíssima donde provém a grande vila de Ovar –, Estarreja, Salreu, Angeja, Cacia, Aveiro, Ílhavo, Vagos, Portomar, Mira, até ao Cabo Mondego, formando uma extensa chanfradura, com alguns recortes. Entre Angeja e Cacia jazia a embocadura do estuário, porto marítimo nessa época, onde desaguava o Vouga. /.../ A antiga linha da costa está traçada, com bastante exactidão, no Portulano de Petrus Visconte (1318). Nesta chanfradura existe hoje a laguna de Aveiro.»

Mas, como alude o autor do opúsculo «A Estação Arqueológica de Cacia», no sítio da Torre haviam sido já encontrados, ao longo dos anos, moedas de ouro, prata e cobre. Em nenhuma, infelizmente, pôs a vista em cima, Pois a nenhuma se refere, de maneira objectiva, no seu trabalho. A ausência de qualquer exemplar no espólio depositado no Museu Nacional de Aveiro não deixa de confirmar plenamente a ilação. Caindo em mãos ignaras ou ávidas, documentos destes, que podiam ser basilares para a história do lugar onde foram descobertos perdem assim muito do seu valor – passam a ter mera cotação no mercado numismático.

Entretanto, e da facto damos agora conhecimento, uma moeda de ouro, achada na Torre, no fundo do imprescindível poço que alimentava o vicus – ou a villa – dos aros de Cacia, não caiu em saco roto, constituindo elemento inestimável para o estudo exacto da época em que por ali andaram os romanos e seus imediatos sucessores.

Ao proceder-se à limpeza do poço, e à profundidade de doze a quinze metros, a moeda luziu entre cinzas, terras barrentas e restos de berbigões. Contou-nos isto Manuel Martins Simões, seu sachador, e que também explorou pedra e saibro naquelas paragens. Muito instado, oferecê-Ia-ia a uma pessoa da sua consideração, recebendo em troca, e deveras a contra-gosto, pois que «dera a moeda, estava dada», uma libra de cavalinho. Dessa pessoa, cujo nome ignoramos, passou às mãos de António Mortágua, falecido há uns dois anos, numismata e coleccionador de peças arqueológicas, tudo levando a crer que continue na posse da família.

Enumeramos estes pormenores para deles ressaltar a necessária autenticidade, até porque de histórias e historietas está a arqueologia, e nem só, verdadeiramente empanturrada...

Fotografias do anverso e do reverso da moeda, amavelmente cedidas, aí pelos anos cinquenta, por António Mortágua, remetemo-las mais tarde ao numismólogo portuense Sousa Oliveira, que redigiu o seguinte parecer:

«Ao observar as fotografias que nos foram apresentadas imediatamente vemos que se trata duma moeda do tipo imperial romano. A sua leitura é fácil:

Anverso: – Cabeça do imperador, à direita. Legenda: D(ominus) N(oster) HONORI V(ota) S(uscepta ou soluta) P(ius) F(elix) Aug(ustus). / 39 /

Reverso: – O imperador pisando aos pés um inimigo e tendo na mão direita um lábaro. Legenda: A AUG(ustus) HONOR VlCTORI

Aparentemente estamos em presença de um soldo do puro do imperador Honório (nascido em 384 e falecido em 423). Com efeito a efígie e as legendas assim o demonstram. As iniciais V S P F referem-se aos votos públicos, concedidos aos imperadores; a letra S pode estar em relação com a palavra suscepta – aceites, ou soluta – cumpridos. Pius – piedoso, e felix – feliz, eram dois dos títulos usados por este imperador. A ideia de Victoria, nesta época, era expressa por uma figura de Imperador esmagando um inimigo ou uma serpente com cabeça humana. Repare-se que na legenda do reverso o A inicial corresponde ao final da palavra VICTORIA.

O aspecto grosseiro desta moeda leva-nos porém a pensar que se trata duma peça cunhada durante o domínio suevo no noroeste peninsular, onde aquele povo reinou cerca de século e meio (desde 409 a 585). Para aumentar o seu numerário estes como outros povos nórdicos chamados bárbaros, limitaram-se a copiar os numismas imperiais de Honório, durante o reinado do qual se deram as invasões. E essa cunhagem continuou-se mesmo depois da sua morte. Esses soldos são aqueles que os documentos coevos referem como soldos galicanos. Inicialmente possuíam o mesmo toque e peso que os romanos que eles imitavam. Depois o cunho tornou-se mais grosseiro, tornando-se até por vezes indecifrável. Persistiu idêntica a liga mas o peso que era de 4,54 gr. foi descendo para 3,60 gr. a 315 gr., que passou a ser o peso normal do soldo suevo. O peso inicial era constante nos soldos imperiais. Não se pode entrar em mais considerações sem saber o peso exacto da moeda em questão».

Clicar para ampliar.

Fotografia aérea, mostrando a localização do rasado outeiro da Torre (no círculo), próximo da igreja matriz de Cacia (x). Também na imagem, o casario da Sarrazola e um trecho do rio Vouga.

Será, todavia, o soldo com a efígie de Honório tão grosseiro que justifique a dedução do dr. Sousa Oliveira? Ele, como nós, não o viu. Limitou-se a apreciá-lo através de fotografias, para cúmulo muito ampliadas. Seja como for, o contributo resultante do aparecimento da moeda no processo da Cacia romana ou, talvez, pós-romana, não pode ser subestimado. / 40 /

Ao pegarmos no papel para rabiscar as linhas de que estas são o termo, quase estivemos tentado – confessamos – a redigir uma curta e objectiva legenda para as patenteadas fotos da numisma. É que sobre o desaparecido monte, ou outeiro da Torre e suas implicações económicas e militares muito há que averiguar. Referido já lá vão quatrocentos anos e esventrado sem quaisquer cuidados há uns cinquenta, suscitou uma larga mão-cheia de hipóteses e até de efabulações. Sem dúvida que avultado número de documentos se perdeu irremediavelmente. Mas outros ainda existirão, importando rastreá-los sem demora e estudá-los convenientemente, ou seja, à luz da Arqueologia – que, óbvio se torna, é uma ciência e não mero passatempo ou devaneio.

Exceptuando Alberto Souto, que visitou Cacia no período da exploração da pedreira, salvando algumas espécies incontroversamente notáveis, os especialistas da matéria jamais aprenderam o caminho da Torre.

*

*   *

(Além de textos dos autores citados, consultaram-se outros de Abel Viana, Amorim Girão, Augusto Soares de Sousa Baptista, Dulce Alves Souto, João Domingues Arede, Joaquim Soares de Sousa Baptista, Marques Gomes, Miguel de Oliveira e Rocha Madahil.)

Clicar para ampliar.

 

páginas 36 a 40

Menu de opções

Página anterior

Página seguinte