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N.º 21

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1976 

O Distrito de Aveiro no Cinema

Por F. Gonçalves Lavrador

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Em plena Serra da Freita – Um grupo de cineastas aveirenses

No panorama da cultura portuguesa, não tem desempenhado o cinema o papel que realmente deveria desempenhar. Isto apesar das tentativas de reanimação que, nos anos sessenta, se processaram através dos esforços individuais e, sobretudo, de auxílios da Fundação Gulbenkian, e, depois do 25 de Abril, através duma actividade (que se deseja persistente e esclarecida) ao nível do Estado. Não vamos, todavia, debater aqui este problema. Apenas queremos salientar que, em face duma tal realidade, talvez não admire que as artes cinematográficas poucas vezes tenham abordado temas relacionados com a região de Aveiro.

É certo, por exemplo, que o Porto, o velho e típico Porto, com o seu casario cinzento, os becos sem luz, as ruas íngremes e as escadas irregulares que descem para o Douro, como edifício pesado da Alfândega e a respectiva linha de caminho de ferro, com a recordação do desastre da «ponte dos barcas», com a sua actividade fluvial no Cais da Ribeira (e parte dela até já se atenuou ou mesmo desapareceu), as suas admiráveis pontes metálicas, os seus muros fuliginosos por onde tantas vezes escorre uma humidade viscosa, é certo que esse Porto está presente, participa mesmo com uma larga contribuição, ao nível do referente e ao / 62 / nível dos elementos expressivos, em alguns dos filmes de Manuel de Oliveira (nomeadamente, «Douro, Faina Fluvial», «Aniki-Bóbó», «O Pintor e a Cidade»), entre eles, uma verdadeira obra-prima do cinema de curta-metragem: «Douro, Faina Fluvial». E esses filmes são, ainda hoje, os de mais funda autenticidade expressiva na obra do realizador mais prestigiado do cinema português. Mas é certo também que Oliveira nos dá uma visão pessoal da cidade onde vive e onde nasceu, e com certeza que muitas outras seriam possíveis.

Vem-nos até a tentação de apresentar o exemplo de Paris e seus múltiplos reflexos em concepções estilísticas bem diferenciadas. Trata-se, em boa verdade, dum exemplo dos mais eloquentes. Há a Paris triste, fria e húmida de Carné, a Paris alegre, tunante e um pouco anárquica de Clair, a Paris proletária ou pequeno-burguesa, mas sempre sensual e humana, de Renoir, a Paris ballética e fantasista, desordenada, ziguezagueante e infantil de «Zazie dans le Métro» de Louis Malle, a Paris tragicómica de Autant-Lara durante a ocupação alemã, a Paris decadente e ambígua de Godard e tantas mais...

Por outro lado, verificamos que algumas regiões portuguesas têm surgido em alguns filmes mais ou menos significativos, para os quais contribuíram com a sua quota-parte: o panorama físico e humano da Nazaré reflecte-se em duas obras das mais importantes do cinema silencioso português, «Maria do Mar» e «Nazaré, Praia de Pescadores» de Leitão de Barros; o Cabo Espichel e Lisboa encontram-se presentes em «O Recado» de José Fonseca e Costa, o melhor filme da série chamada da Gulbenkian, e o Alentejo serve de fundo e de apoio (em imagens de rara beleza plástica e sonora, em que tantas vezes se vê tremeluzir a canícula) a uma obra recente do mesmo autor, «Os Demónios de Alcácer Quibir», que, com certeza, será um ponto alto da cinematografia portuguesa contemporânea; Trás-os-Montes inspirou e forneceu o «material de base» de «Acto da Primavera» de Manuel de Oliveira; a região da Figueira da Foz serviu também de fundo paisagístico e humano a uma das obras mais interessantes do moderno cinema nacional, «Uma Abelha na Chuva» de Fernando Lopes, bem como ao pretensioso filme de António Macedo «A Promessa»; a ilha de Porto Santo, com as suas secas periódicas, empresta toda a sua força humana e expressiva às melhores sequências de «A Canção da Terra» de Jorge Brum do Canto; por sua vez, a própria capital do país fornece a matéria prima a uma comédia de Cottineli Telmo, «A Canção de Lisboa», que serviu de modelo a muitas imitações, nos anos seguintes, a maior parte das vezes bem medíocres.

E relativamente à região de Aveiro, que se passa? Mercê dum panorama físico e humano muito variado e muito característico, tem a região de Aveiro inegáveis qualidades fotogénicas, expressivas e dramáticas. Todavia, julgamos que elas não foram, até agora, devidamente aproveitadas. Há, com certeza, o caso do Furadouro e dos seus pescadores que serviram de tema ao filme do realizador ovarense Paulo Rocha «Mudar de Vida». Mas tratou-se duma obra um tanto incipiente, embora ocupando um determinado lugar na história do cinema português por surgir numa altura em que os nossos cineastas desesperavam da sua própria condição de cineastas, como seres viventes que não tivessem oxigénio para respirar, numa altura de completa estagnação, num quase vácuo, em que um tal empreendimento representava um esforço corajoso e meritório para estruturar, com todos os sacrifícios, num meio hostil e desconfiado, uma espécie de «cinema novo», e romper com o passado medíocre duma cinematografia anemiada e imersa em pleno obscurantismo. Tentativa condenada, sem dúvida, a um relativo malogro, mas, nem por isso, menos necessária para a evolução que conduziu à fase seguinte, isto é, à fase que se concretizou com a chamada «série Gulbenkian» do Centro Português de Cinema.

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Albergaria das Cabras. Duas vidas, duas flores, vegetam nas pedras.

Há ainda a citar algumas filmagens realizadas no Vale do Vouga para as sequências iniciais dum filme, aliás menor, de Jorge Brum do Canto, «João Ratão».

Isto, que nos recordemos. Temos de concordar que é muito pouco para uma região com tantas potencialidades...

Aveiro possui também os seus cineastas – cineastas amadores, entenda-se. Realizou-se, aliás, na cidade dos canais, no ano de 1970, no Primeiro Congresso Nacional de cinema de Amadores, por iniciativa da respectiva Secção do Clube dos Galitos.

Cineastas amadores, cineastas livres. Como não? A palavra «amadores» no-lo inculca. Mas «livres» não significa sem limitações – e limitações das mais diversas naturezas. Algumas mesmo resultantes, como dizia alguém no Congresso acima referido, duma liberdade burguesa mal-entendida (sem determinadas responsabilidades sociais), facto que conduz muitas vezes a um individualismo exacerbado e até a uma espécie de narcisismo e de «torre de marfim». Por isso, nem sempre estes amadores de cinema se devem confundir com verdadeiros cineastas independentes.

Alguns dos cineastas amadores aveirenses ou do respectivo distrito contam-se entre os melhores do país. Referimo-nos, sobretudo, a Vasco Branco e a Matos Barbosa. Também eles dedicaram alguns filmes (de 8 mm) à sua região, nomeadamente, «Gente Trigueira» e «O Espelho da Cidade», no caso do primeiro, e «Companha» (sobre a labuta da pesca na Praia do Furadouro), no que respeita ao segundo. Tudo feito, aliás, com as limitações que o tipo de amadorismo que / 63 / adoptaram impunha na época em que realizaram esses filmes, e que ainda hoje subsistem. Aliás, até agora, nunca estes dois cineastas ultrapassaram devidamente essas limitações, inclusive algumas de natureza técnica, lançando-se em trabalhos com bases mais consistentes. Há tempos, contudo, houve uma tentativa, à volta de Vasco Branco, de se criar um grupo de cinema independente convenientemente equipado e preparado para a realização de filmes que obedecessem a certas exigências estéticas, linguísticas e técnicas. Mas não foi possível levar tal iniciativa a bom termo. Algumas sequências de ensaio filmadas (em mudo) numa das regiões mais desconhecidas e mais remotas do distrito, ficaram apenas como recordação duma iniciativa que nem chegou, verdadeiramente, a sair do ovo.

Não há dúvida que muito há a fazer, e que muito pouco se fez até aqui, não só para revelar o distrito de Aveiro através do cinema, mas também para que a sua gente possa contribuir com alguma coisa para um ramo de arte tão importante como a semiose fílmica. Por ora, não há indício de que se possa superar uma tal situação.

Aveiro, 29 de Maio de 1976

 

páginas 61 a 63

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