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N.º 21

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1976 

Homem Cristo

Por Fernando Moniz Lopes

Em 14 de Junho de 1969, decorreu no Cemitério Central a trasladação para jazigo próprio, dos restos mortais do grande jornalista Homem Cristo.

Junto da urna, e entre outros oradores, usou da palavra, com carácter de representatividade, um jovem democrata – Fernando Moniz Lopes.

Proferido mas, por óbvias razões, não publicado na altura, o texto de Moniz Lopes, onde se dá um perfil do notabilíssimo aveirense, aparece hoje, finalmente, e como que numa evocação, em letra de forma.

 

Cumpria-nos, no tempo em que as romagens de saudade vão já sendo ultrapassadas pela própria velocidade dos acontecimentos da História, homenagear a grande figura de polemista, pedagogo e sobretudo grande panfletário político que foi Homem Cristo.

E homenagem não tem como justificação apenas o acto de presença. É necessário que a continuidade da nossa acção lhe seja adicionada como diferença específica, que na polarização dialéctica do real dinâmico, tem como implicação objectiva o alertar e o lento subir das consciências na sua faina de apreensão do mundo, integrada no vasto programa social que é a preocupação dominante do homem, que se mede verdadeiro, ante a sua própria situação concreta.

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Homem Cristo

É Homem Cristo o exemplo bem marcado do homem que sempre agiu na sua vida de ardente lutador, sabendo medir-se na estatura mais alta dos que compreendem e sabem integrar a folha dos seus actos no «dossier» da História.

Nunca a sua pena colaborou na ilusão traiçoeira, mascarada dos objectivos fáceis; antes, aguçada, penetrou como bisturi do pensador e homem de acção, nas vísceras do grupo social, onde, para além da ilusão macia da pele das traições, soube dissecar e apreender bem a geografia do tecido humano, o aspecto morfológico que perpetua a transformação contínua que nos rege.

Foi Homem Cristo uma das raras personalidades que, com firmeza e justiça, interveio sempre nos / 58 / acontecimentos mais relevantes do seu tempo; dos que estruturam na acção e desencadeiam a força da LIBERDADE que consome e esgota o ser arrostando de frente com todos os ataques; que não se isolou, lamentando-se vítima. Antes aparou e desferiu os golpes na primeira linha de combate. Se algumas vezes a sua pena se entregou ao exagero, não foi levado pela ilusão poética, mas arrastado inteiro pela sua própria força.

E, na medida em que lutava, sempre se esforçou por aprender tanto com os erros como com as vitórias. Assim, na ânsia de tudo abranger na sua rede de justiça, atacou pela base tanto reaccionários, como desmascarou os erros dos membros do próprio Directório Republicano.

Ele pensava que só se pode ser homem quando se age; e só pode agir com coerência aquele que supera a nível de estrutura as lacunas onde decanta o conformismo das visões cegas do futuro. É que o presente e o futuro se definem como função simétrica. Nem nunca se negou a interpretar o facto político separado do dever cívico e da cultura. Nele a teoria é coincidente com o plano da prática.

Assim defendeu a instrução, foi professor de História da Faculdade de Letras do Porto, lançou a campanha contra o analfabetismo e ensinou as primeiras letras aos recrutas, defendendo que o homem ignorante não pode servir a sua Pátria, devendo antes defender-se o próprio homem. E o homem defende-se pela cultura mais que pela força das armas. O homem que luta deve comunicar com os outros homens, se não quiser ser vítima da própria luta que desencadeia. Deve ascender progressivamente a um plano de consciência, que lhe dite as razões verdadeiras da comunidade e não as de um número reduzido e artificialmente iluminado.

Homem Cristo foi homem no sentido inteiro do termo. No «Povo de Aveiro», o jornal semanário em que escrevia, focou problemas, desde as obras da barra, atacando o Governo pelo abandono votado aos projectos de interesse comum e atacou a censura até à morte. Esta cerrava as mandíbulas incitando ao cerrar das consciências. Para um homem da sua têmpera, que não fugia ao diálogo, nem temia a crítica, este ferrete de intervenção alheio à vontade consciente significava a morte. Um dia tombou o galho da árvore da frente da sua casa. E ele disse que tinha caído o galho onde tinha pensado enforcar o censor cá da terra. O grande e violento lutador aproximava-se do fim. Não se enganara. Mas prometia ainda voltar. E com essa firme decisão cancelou a publicação do jornal que durante tantos anos lhe servira de trampolim na luta – em 29 de Junho de 1941. Homem Cristo já não tinha espaço no mundo da Imprensa; este tornara-se demasiado estreito para lutadores da sua garra. Não era possível já o «Povo de Aveiro». O grande jornal de panfleto fora finalmente substituído pelo nível escasso de uma Imprensa de injúria irresponsável. Homem Cristo morreu. Mas só homenageamos Homem Cristo porque ele não se perdeu nas linhas do passado.

A homenagem tem um sentido presente e uma perspectiva de futuro. Pressupõe projecção. É necessário que nós os jovens continuemos Homem Cristo, inserindo-nos nos problemas do nosso tempo como ele o fez, realizando a concretização do ideal democrático que foi o seu. Que saibamos como ele soube que o homem só vive quando se reganha, inscrevendo como sua a verdade que visa o bem comum, superando o egoísmo e a ignorância que impede o próprio destino de caminhar no seu rumo de futuro. Saibamos distinguir na balança da História os erros cometidos, as infracções do jogo, o desequilibrar aquela no sentido da justiça, da liberdade humana, que tem correspondência no direito e na força da deliberação consciente, valores fundamentais pelos quais ele sempre lutou.

 

páginas 57 e 58

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