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N.º 20

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1975 

Antologia Aveirense

AVE AVEIRO

 

Por Mário sacramento

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Mário Sacramento
Medalhão de A. Andrade

 

Nascido em Ílhavo, nos meados do 1920, Mário Sacramento viria a falecer quando o mês de Março de 1969 estava prestes a extinguir-se.

Escritor grado, com uma obra que ganhara e possui ressonância nacional, jamais viu, no entanto, colaboração sua nas páginas desta revista, gerecida quando transcorria o ano de 1966.

Algumas semanas antes de morrer, Mário Sacramento escreveu para diário portuense uma crónica, digna de antologia, sobre Aveiro. A modos de reparação, tardia tem dúvida, mas enternecida e grata, nestas colunas alusivas ao Distrito hoje se transcreve – esplendendo de novo.

 

Escrevo-te e não sei quem és — como face para sempre talhada! A mais antiga memória que guardo de ti é da ria a transbordar por praças e vielas, nas marés vivas. Sob os lampiões dos Arcos, Rua dos Mercadores abaixo, vogavam bateiras conduzindo os teus íncolas (ia a dizer os teus doges) às soleiras das portas. E eu batia palmas de menino com brinquedo, na janela da avó. Casa escura, com mofo a rato, olhares do José Estêvão no louceiro antigo, um opúsculo do Marques Gomes a dizer-me que um tio de antanho fora decapitado pelo D. Miguel, grades de pimpons nas sacadas de pedra antiga — em que um dia entalei a cabeça (para retomar essa tradição, quem sabe?), tendo sido liberto, depois de muito suor e ferros, por um serralheiro do Mindelo.

 

Cá fora, os teus ares lavados e tranquilos, escalas tocadas ao piano dos suplícios prendados, uma passagem por baixo do andor de Santa Clara para cortar o freio da língua, luta pelas cavacas do S. Gonçalinho, musicatas nos coretos — e pouco mais...

 

Salto o calendário e fustiga-me o rosto a saibrada que o vento erguia, corro pela Mina, mergulho nas Pirâmides, pergunto pelo dicionário ao sapateiro da Fonte Nova, faço as primeiras malcriadices no Parque, invejo a farda soldadesca do Luisinho, recebo os tiros do Japão, encaixilho num dos bancos do Jardim uma conversa entre Homem Cristo e Rocha e Cunha, tenho uma icterícia de ovos moles...

 

Vamos crescendo, os dois, já sem laranjas roubadas na Rua do Gravito e sem aventuras nocturnas pelos arrabaldes — descubro a beleza com que te despedes (te despes) do Sol, perco-me em versos pelos carreiros das marinhas, levo a pasta da namorada à Estação, invento um jornalzinho de estudantes, colaboro no crime nefando de mantear (sob a pêra do José Estêvão!) o anãozito das sentinas... Aprendo a respeitar professores como João Joaquim Pires, José Pereira Tavares, Francisco de Assis Maia, George Agostinho da Silva, António Salgado Júnior, guardo um profundo desprezo por outros, peço dez tostões à minha mãe para comprar O Diabo, lanço uma cervantina burricada pelo teu centro, compenso o José Estêvão ensinando-lhe (junto às grades da estátua) o canto em coro da lnternacional — conspiro adolescentemente...

 

Que te aconteceu, entretanto? Não dou fé disso. Estavas aí, talvez. Mas há tanto que ler e esgravatar, que só me lembro de te ter nos braços nos bailes dos Bombeiros (Farenheit Adão & Eva), de falar em lobos de Alsácia aos bigodes e à barretina de Homem Cristo, de colher nas palmas das mãos o frio de aço de uma / 28 / das tuas tão singelas (mas tão típicas!) pontezinhas, de ouvir dizer que um médico te receitara carros de areia e de ler as eruditas notas que um dos teus vates pusera na epopeia em que cantava a descoberta do Brasil... Para onde quer que me volte, descubro, porém, que um braço me acompanha sempre, apontando — como sombra impressa no chão! — o caminho dos meus passos: o do discurso coalhado em bronze do teu tribuna... Lobrigo-o na Barra, mandando calar a ronca; na Costa Nova, mostrando as xávegas desprotegidas; no paredão, invectivando o porto inconcluso; no Senhor das Barrocas, deplorando o que resta do templo; nas cancelas, dizendo porquê? ao tráfego... Nem sempre entendo o que quer, mas que quer, quer!

 

E redescubro, olhando-o melhor, que eras uma vilazinha apenas, perdida nas brumas do passado... Como eu, cresces desajeitada e errabunda. Largas os calções, engravatas-te, ganhas borbulhas na cara, abres risca na cabeça, asfaltas as pantalonas, escanhoas o arvoredo até ao sangue, pões moderno onde devia ser antigo e antigo onde devia ser moderno, encastelas pornografia barata no fórum administrativo, tiras o nome do teu génio tutelar do frontispício do Liceu, cintas os novos edifícios escolares de casarios que os abafam, coqueteias com um arquitecto francês a perda do teu carácter, ergues altos fornos nas costas da tua sentinela cívica... Deliras, ó púbere! Entrementes, eu trato os filhos do sargento Pires e ele trata-me do pelotão, no Quartel. Pouco tempo tenho, uma vez mais, para dar conta de ti. Passamos um pelo outro, eu trocando a farda pela bata, tu trocando os pergaminhos por licets camarários... Descontas letras onde vendias cafés, proíbes que as casas tenham uma testa mais alta que a do vizinho, assinalas todos os gavetos sem curares de saber que préstimo poderá ter isso nem quantos sejam os que terão instrução para lê-los, fazes concorrência ao Portugal dos Pequeninos como quem ganha saudades dos tempos em que podia brincar... Eu palpo barrigas, tu palpas carteiras. E acontece a tragédia: descubro que envelheço mais depressa do que tu — e sem que tenha podido conhecer-te! Não chegarei a ver-te dona dos teus passos, querida Amiga, e tenho pena, pois virás a ser formosa quando ganhares o juízo que a juventude não tem! Não te passeiam ainda — senão como amostra — as cabeleiras e as barbas psicadélicas. Mas andas tão miniurbe que coro de ver-te!

 

Passaram os tempos em que davas ovos moles e políticos. (Os ovos eram bons, hoje menos. Os políticos óptimos, mas deu neles a pílula). Deixaste de produzir Cartas Constitucionais, mas ainda promulgas Cartas Comerciais de week-end à John Bull, que barcos de guerra saúdam desflorando-te o porto. E, todavia, és pura ainda, ó Aveiro! Tens o sal, tens o sol, tens o céu encaixilhado nas marinhas — e o bacalhau, sem shorts nem nada, a bronzear-se nos tabuleiros... Serás cidade um dia, ó vila de outrora! Entre les deux ton coeur balance indecisamente — e o meu com o teu... Mas o meu com cãs e o teu indesvendado ainda, como sempre! Foste noiva, foste esposa e és viúva dum só Homem: o que filtra bronze num pedestal eterno... Dele te ficou o segredo de Juvêncio, cujas águas te remoçam transbordando em plenilúnio. Tens dilúvios aguazados, minha Querida, e arcas de Noé que trazem da Terra Nova os hirsutos precursores dos hippies de hoje... Com eles dormes e com eles refloresces, minha Incógnita! O bronze e a salmoira te protejam até à consumação dos séculos!

 

Amen.

 

páginas 27 e 28

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