Acesso à hierarquia superior.

N.º 18

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Novembro de 1974 

Egas Moniz, o político -

No centenário do seu nascimento (1874-1974)

Pelo Dr. Cruz Malpique

 

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Um pitoresco lago da Casa do Marinheiro, em Avanca.

DOIS DEDOS DE PRÓLOGO

Nasceu este opúsculo do desejo de colaborar no centenário do nascimento de Egas Moniz. Não valeria a pena escrever sobre o caso, se Egas Moniz não tivesse sido preclara figura do seu tempo. Precisamos de – num momento em que vai predominando o homem-massa –, trazer ao de cima, e à ponderação consciente de todos, as figuras excepcionais, paradigmáticas pelo seu saber, pelo seu carácter, pela sua originalidade construtiva.

Sem minorias selectas, o povo fica automaticamente diminuído. São as minorias selectas que criam a ciência, a arte, a grande técnica. A ausência dos melhores, dos aristocratas, no sentido helénico da palavra – que não no de «sangue azul», credo! – dá

motivo a que as massas se massifiquem ou plebeízem cada vez mais. Mal vai à civilização, quando, no mundo, se instala e instaura a ditadura das massas!

Todos os fracassos da história resultam do ódio à fina-flor, às minorias egrégias, aos imperativos de selecção.

A maior parte das ideias deste opúsculo, que nasceu do pedido de uma palestra em que o Clube de Estarreja (Julho de 1974) quis honrar a memória de Egas Moniz, foi escrita com o intuito de servir. Um homem, um regime, uma confraria? Nem um homem, nem um regime, nem uma confraria, apenas um programa de dignificação humana. Se acaso, conseguimos servir bem esse programa, that is another story como diria Kipling.

Não há belfurinheiro que não gabe as suas agulhas e alfinetes. Quero, porém, fazer excepção à regra. O que aí vai foi o que se pôde arranjar. Leve o leitor em conta, e por junto, a boa vontade do autor.

Prometemos dois dedos de prólogo. Cumprimos. Passe o leitor adiante – se tanto lhe apetecer.

/ 20 /

A DITADURA DE JOÃO FRANCO

...Houve, então, quem pretendesse fazer destrinça entre ditadura e administração em ditadura.

João Franco fazia essa destrinça, mas era contraditório ao fazê-la, porquanto, nos seus tempos de oposição ao governo constituído, se declarara abertamente contra esse sistema de governar.

A verdade, porém, é que, tão depressa subia ao poder, renegava tudo que, de véspera, dissera (1). Apostasia? João Franco, como o pretor antigo, não curava de coisas mínimas, e coisa mínima era, para ele, o dar o dito por não dito, adorando no dia seguinte, o que, de véspera, anatematizava, e anatematizando, agora, o que, no dia anterior, adorara...

Estranhou-se que o homem vindo dum partido de rótulo liberal atirasse com a liberdade às urtigas, e dissolvesse o Parlamento, sem que existisse conflito entre o Parlamento e o Governo.

Essa dissolução foi considerada como golpe de Estado. E logo se iniciou a guerra contra o ditador.

A lei de imprensa então saída quis amordaçar todas as críticas desfavoráveis à ditadura. Meio mundo foi julgado em tribunal, por ter infringido as disposições dessa drástica lei. Foram uns punidos, foram outros absolvidos. Como quer que fosse, a lei criou clima de manifesta hostilidade à ditadura. Crepitaram por toda a parte os comícios de propaganda republicana. Os dissidentes passaram a constituir chusma. Tudo deixava prever que a monarquia estava por um triz. O Rei dava o seu beneplácito a João Franco. Sem o saber (?), estava assinando a sua própria sentença de morte, sentença que iria verificar-se a breve prazo.

A maioria do Conselho de Estado quis expor a D. Carlos a necessidade urgente de se voltar ao respeito pela Carta Constitucional. Não foi atendida. O Rei negou-se a dar-lhe audiência. Seguiram-se os pares e os deputados e outro tanto aconteceu. Tudo ia convergindo para o pior do pior. Tremendas as profecias então feitas quanto à duração da monarquia e à sorte do Rei. Do Rei que, em carta a Hintze Ribeiro, de 18 de Maio de 1906, dissera, profeticamente: «O Governo só poderia conservar-se pelo terror, e mal está para aqueles que só desta maneira se podem sustentar.»

Pois D. Carlos, que tal dissera, caía, transcorrido pouco mais de um ano, na imprudência de conceder a João Franco poderes ditatoriais, que se traduziam numa suspensão de garantias.

Uma das decisões da ditadura franquista que maior celeuma levantou foi a lista civil da família real, que iria ser aumentada para além dos 525 contos que figuravam na lei. Fazia-se o confronto da situação do Rei com as dos Presidentes da República em França, nos Estados Unidos, e na Suíça. Em França, o Presidente recebia 216 contos, metade dos quais para despesas de representação, viagens, etc. Nos Estados Unidos, o Presidente recebia, por junto, 22 contos anuais. E na Suíça, 2700$00. Entendia o ditador que a família real recebendo aquela maquia ainda recebia pouco. A Nação não pôde levar à paciência aquela atitude perdulária e afrontosa para a precária situação das classes trabalhadoras. Com 525 contos sustentavam-se decentemente – assim se dizia – 1 000 famílias (2).

O clima emocional criado pela ditadura nós o entrevemos por certo artigo do jornal “O Dia”, que assim terminava:

«Quer-se cavar um abismo profundo entre as instituições e os que os defendem?

Quer-se arranjar para o campo republicano milhares de regeneradores, de progressistas, de dissidentes, e de outros cidadãos que não têm compromissos partidários? Pois bem!

Façam-no!

Lembrem-se, porém, que para trás não se volta! Agora resolvam!

Eis porque, nesta hora soleníssima e de luto, daqui perguntamos aos altos poderes do Estado:

Quem vive?»

E a resposta que andava no ar era a de que viveria o povo, disposto a dar o golpe de misericórdia na monarquia.

O órgão oficioso da ditadura escrevia:

«A situação do país é tudo quanto há de mais tranquilo.»

João Franco mentia. A situação era a pior. Tinha-se a impressão de que se estava sobre um vulcão prestes a explodir.

Os jornais suspensos constituíam chusma, todos incursos nos dois primeiros artigos da Lei de Imprensa de 21 de Junho de 1907:

«Artigo 1.º – É proibida a circulação, a exposição ou qualquer outra forma de publicidade, dos escritos, desenhos ou impressos atentatórios da ordem pública.

«Artigo 2.º – Os governadores civis deverão suspender a publicação dos periódicos que se acharem nas disposições do artigo anterior». (3)

A imprensa hostil à ditadura afirmava não haver outra lei que não fosse a vontade do ditador. Nenhumas garantias individuais. Opressão sistemática. O decreto de 21 de Junho pusera termo à liberdade de Imprensa.

Dizia-se: «Qualquer Governador Civil, estúpido ou mau, pode suspender os jornais do seu distrito, até 3 meses (§ único do art.º 2.º sem justificação alguma, e com o risível recurso para o Governo, que há-de sempre aprovar o procedimento do seu delegado de / 21 / confiança, que neste caso não faz mais do que cumprir ordens superiores».

João Franco tinha a antipatia da Nação, que se sentia vexada com os seus decretos ditatoriais. E a antipatia que ele provocava tornava-se extensiva ao próprio Rei. O Daily Express comentava: «A situação do Senhor João Franco torna-se, neste momento, impossível. É preciso evitar que a própria situação do Rei D. Carlos se agrave!». Comentário da imprensa hostil à ditadura: «Não nos incomoda que a situação do Rei D. Carlos se agrave. Desejamos até que ela se agrave tanto que o obrigue a ir gozar para o exílio o produto dos adiantamentos ilegais por ele e por sua família recebidos. Segundo o Sr. Presidente do Conselho declarou, na câmara dos deputados em 12 de Novembro de 1906».

A data de 14 de Julho de 1907 era aproveitada pela imprensa republicana para louvar a efeméride da tomada da Bastilha e para se fazer o elogio da Revolução Francesa.

A Bastilha era o símbolo da liberdade oprimida. E vá os jornais hostis à ditadura de escreverem: «A Grande Revolução, cujo início teve lugar na data que hoje celebramos, produziu um duplo efeito no mundo: entusiasmo nos povos sedentos de liberdade, e nos espíritos superiores, como Kant, Fichte, Schiller e Goethe, que compreendiam a justiça das suas reivindicações; susto e indignação nos governos constituídos, que nos progressos da Revolução viam a sua própria ruína.

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Houve crueldades inúteis? Derramou-se muito sangue inocente? De certo, não contestamos. Mas os abalos sociais são como as tempestades que, ao passo que purificam a atmosfera, derribam tanto as boas árvores como as más. Condenar ou louvar é fácil; explicar a necessidade dum facto que, embora manchado de sangue, trouxe ao mundo uma nova época civilizadora, só a história de muitas centenas de séculos de tiranias o poderá fazer».

Noticiavam os jornais em Julho de 1907 que o Governo para satisfazer as ordens do Rei, iria fazer eleições em Novembro, para que as Cortes abrissem em 2 de Janeiro de 1908.

Inauguração do Monumento ao Professor Doutor Egas Moniz, em Avanca.

Os dissidentes não acreditavam que as eleições fossem feitas com isenção. João Franco não merecia sombra de confiança. Nessas eleições haveria, necessariamente, fraude.

Não se levou a bem que o Supremo Tribunal de Justiça reconhecesse como legais os decretos ditatoriais. E, para mais, que os tivesse reconhecido por unanimidade!

Lamentava-se que o Supremo Tribunal de Justiça perdesse uma bela ocasião de prestar óptimo serviço ao país, fazendo respeitar a sua Constituição.

A Associação dos Advogados de Lisboa, a 17 de Junho de 1907, reunia para lhe ser apresentada uma moção de protesto contra a atitude do Supremo Tribunal de Justiça. A moção era assinada por José de Castro, José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães e António Macieira.

Por 14 votos contra 13 foi rejeitada a proposta.

Comentavam os jornais simpatizantes com a moção:

«O voto de desempate foi do sr. conselheiro Beirão, o grande liberalão, que está fazendo bonita figura, não há dúvida.

Os advogados franquistas fizeram o maior obstrucionismo, o que conseguiram, pois que 4 dos que eram favoráveis à discussão da proposta apresentada pelo Sr. Dr. António Macieira retiraram antes de concluída a discussão, de que resultou a vitória do Governo, devido ao Sr. Beirão, com cuja atitude os defensores da proposta se enganaram.

Os treze sócios que votaram a favor da proposta e os quatro que se tinham ausentado pediram a demissão de sócios e vão publicar nos jornais protestos e explicações.

Procedem dignamente.»

Assim se pronunciava a imprensa republicana que ao mesmo tempo dava conta de uma manifestação de pública simpatia a Bernardino Machado, que simbolizava, aos olhos da Nação republicana, o «grande ideal de Verdade e de Justiça – a República».

O propósito era fazer um cortejo cívico em honra de Bernardino Machado, mas o Governo, alerta, proibiu o projectado cortejo.

A homenagem foi, pois, íntima. Íntima, mas apoteótica. O 28 de Julho de 1907, em que essa homenagem se fez, deu brado. Os jornais antiditatoriais comentavam:

«Quanto daria o Sr. João Franco para que lhe fosse feita uma manifestação tão espontânea e tão sincera, como a que recebeu o Dr. Bernardino Machado!

Quanto daria o próprio monarca para que as manifestações espontâneas que lhe preparam, se parecessem sequer com aquela que ao Chefe republicano fez o povo de Lisboa!

Nas manifestações a uns e outros há grande diferença. É que o povo sabe fazer justiça. O rei e o presidente do conselho representam a opressão, enquanto que o Dr. Bernardino Machado é o apóstolo da redenção por que todos ansiamos, a libertação da pátria pela República».

As economias franquistas eram ridicularizadas pelos adversários da ditadura. De 30 de Junho de 1906 a 31 de Julho de 1907, a dívida flutuante aumentava de 1868 contos. Os jornais hostis a João Franco escreviam: «De suborno tem sido a política e a administração do franquismo que, apresentando-se como / 23 / Messias Salvador das finanças portuguesas, as está comprometendo gravemente com um desenfreado aumento de despesas para arranjar clientela.

Apesar dos artigos de encomenda a exaltar o governo na imprensa estrangeira, os fundos públicos descem.

E é nisto que consta a tão reclamada administração do franquismo.

Um verdadeiro charlatanismo.»

Em 15 de Julho de 1907, o Diário de Notícias publicava o seguinte telegrama de Paris, reproduzindo palavras de D. Carlos, numa entrevista concedida a Galtier, redactor do jornal «Temps»:

«Poderá verificar, no decurso do seu inquérito, que tudo está tranquilo, tanto em Lisboa, como em todo o reino.

Só os políticos se agitam, o que se lhes não pode levar a mal, debaixo do seu ponto de vista, acrescentou o Rei sorrindo.

Discute-se muito e faz-se muito barulho, talqualmente como nas câmaras, nos últimos tempos da legislatura, situação que se tornava impossível e à qual, por isso, era necessário pôr cobro, pois, de contrário, não sei o que de tal confusão resultaria.

Dei, então, a João Franco, os meios de governar.

Falou-se da ditadura; mas o que é certo é que outros partidos, e que são os que mais gritam, me haviam também pedido ditadura.

Eu exigia, porém, garantias de carácter, e tinha necessidade de uma vontade sem fraqueza, para que as minhas ideias fossem imediatamente postas em prática.

João Franco foi o homem que eu desejava, e sobre o qual lançara já, há muito tempo, as minhas vistas. Por isso o chamei no momento oportuno.

A sua força consiste em que tem fé em si próprio e na sua estrela. É um auxiliar precioso e, nas horas de crise, a sua inteligência iguala a sua vontade. É mesmo mais inteligente do que muita gente julga.

Estamos plenamente de acordo; trabalhamos juntos e, ao contrário das intenções que me atribuem, quero mantê-lo, porque estou muito contente com ele.

Isto vai muito bem; e assim durará, porque é preciso que dure, para interesse do país.

Faremos eleições no momento em que o julgarmos conveniente (notre moment) sem obedecer a intimações, nem a emprazamentos e, seguramente, teremos maioria, porque o país aprovará a política de João Franco.

Restabeleceremos o equilíbrio orçamental, e extinguiremos o deficit.

Em todos os países, para se fazer uma revolução, é preciso dispor do exército.

Ora, o exército português, submisso à Constituição, é fiel ao rei, e ficará lealmente a meu lado.

A maior parte dos oficiais são meus camaradas; servi com eles, conhecem-me, e não tenho a menor dúvida sobre a sua dedicação.

Tudo o que empreendo, ou faço, hoje, é no interesse do país.

Por certo – ajuntou o monarca, sorrindo de novo – gostaria que me deixassem sossegado; mas persisto no meu posto.

Conheço bem, há já dezoito anos, o meu tabuleiro eleitoral.

Portugal tem necessidade de sossego.

Trabalha e pede que a ordem e a paz sejam garantidas.

Disso me asseguro, e vejo que, por toda a parte, o meu povo é comigo e que, quando fizermos as eleições, teremos forte maioria.

Então será restabelecida a normalidade.

O remédio adoptado foi extraordinário, porque a situação era extraordinária também.

Quando, porém, já não tiver razão de ser a sua aplicação, nem por um instante esquecerei os meus deveres para com a minha coroa e para com o meu país».

A opinião pública viu na atitude de D. Carlos uma violação da Carta Constitucional que ele jurara e manter e cumprir. Entendia a opinião que se entrara em pleno absolutismo.

Tudo o que João Franco estava fazendo como ditador tinha o beneplácito do rei.

O Rei falou em garantias de carácter. Os outros partidos que lhe pediam a ditadura não lhe ofereciam essas garantias. Se assim era, o rei incompatibilizava-se com os partidos da rotação. Em campo ficava só João Franco. Esse e só esse, ao que parece, lhe oferecia as tais «garantia; de carácter»...

A Luta, jornal republicano dava conta das despesas feitas nos palácios reais, desde 1903 a 1906, e, tudo especificado, e somadinho, atirava para a cifra dos 2:329:677$603 réis.

Vá de comentar: com essa soma (então astronómica) quantas escolas em boas condições se não fariam? Pelo menos 500.

A entrevista dada ao «Temps» pelo rei provocou que monárquicos de alta categoria – Augusto José da Cunha, Braamcamp Freire, Luís Ferreira dos Santos – se alistassem no partido republicano. Absolutismo não o queriam, nem pintado!

A lei da imprensa em vigor era lei de funil – larga para o franquismo, estreita para os da oposição. O Diário Ilustrado (franquista) podia dizer o que lhe aprouvesse. A imprensa da oposição nem sequer podia discutir a entrevista concedida a Galtier. / 24 /

Vinha ao de cima a questão operária. Proclamava-se que os operários tinham a sua palavra política a dizer. Conspirava-se contra o excesso de funcionários públicos, que absorvia a maior parte das receitas orçamentais. Esterilizavam-se as melhores aptidões. Dizia-se:

«Não basta só que na escola primária se ensine o ler: é preciso também que às novas gerações se ensine a religião do trabalho, cujo culto, na Suíça, é tão venerado e respeitado, que, de 2842102 habitantes da população, apenas 110841, ou seja 3,9 % não tem ocupação, isto é, apenas não trabalham, naquele país, as crianças, os velhos e os inválidos.

É por isso que essa República tem uma educação pública completa, uma indústria muito florescente, uma rede ferroviária como a das grandes nações».

Confiava-se em que a salvação de Portugal estaria na República. Era preciso dar o «bota-fora!» à Monarquia.

No Brasil, os jornais pertencentes à colónia portuguesa aí residente faziam as piores referências à ditadura. É ouvir:

«Pode a ditadura fazer quanto quiser e lhe aprouver, mas o que nunca poderá é conseguir a confiança do povo, que a há-de esmagar e esfacelar, como esmagar e esfacelar há-de quem a deixa cometer tantos atropelos à Constituição.

Continuam a bulir no rastilho, e vê-lo-ão explodir, quando menos o contarem, não lhes bastando depois as mensagens congratulatórias de meia dúzia de estouvados e ignorantes (as talassas), que aqui se querem impor com chefes da colónia, que tem, toda ela, mais brio e dignidade nas plantas dos pés, que esses chefes na cara».

 

EGAS MONIZ

CONTRA A DITADURA DE JOÃO FRANCO

No tempo de D. Carlos, os políticos que governassem, em vez de se governarem, que servissem, em vez de se servirem, eram mais raros que as esmeraldas azuis, e daí o monarca dizer:

«Ah! se me fosse possível encontrar o homem íntegro, e patriota capaz de preferir o interesse e a glória de Portugal à sua própria fortuna e sobretudo à fortuna dos seus correligionários políticos, com que reconhecimento, com que alegria eu o apoiaria com todas as minhas forças e lhe daria todos os poderes que me é lícito delegar-lhe para empreender as reformas que ambicione, que deseje tanto como o povo português! Mas ainda não encontrei esse homem!...»

Delegou em João Franco que abusou do poder, aliás com a cumplicidade do rei. Resultado: foi este a vítima.

Em 15 de Junho de 1908, discursara Egas Moniz na Câmara dos Deputados. (4) Esse discurso era bem o de um homem liberal. Nele atacava a ditadura de João Franco que primou por actos de uma revolução contra a ditadura, mas que poderia atingir o regime.

«Eu por mim (dizia Egas Moniz) entendia que, nesse momento, a sua queda era a única solução. E desejei-a».

E acrescenta:

«Esgotados todos os meios legais, só restava a revolução. Era um dever cívico a cumprir. Para que se realizasse, empreguei, por minha parte, os meus melhores, embora fracos, esforços, nessa causa legítima de defesa contra a violência e contra a corrupção, resolvendo sacrificar de bom grado o meu bem estar, a minha situação. social, que só ao trabalho devo, e até a própria vida.

E nunca pratiquei acto algum que mais satisfizesse e mais me levantasse no Tribunal íntimo da minha consciência do que essa atitude revolucionária, que, como liberal e como português, entendi dever tomar!».

Tudo. Egas Moniz fez para que a ditadura de João Franco (e, afinal, do próprio Rei D. Carlos, que lhe deu o seu apoio) pusesse termo às suas ilegalidades. Não o conseguiu. E foi isso que o levou a bandear-se para a causa da revolução.

Os monárquicos entendiam que D. Carlos devia abdicar.

«Mas essa abdicação, como resultado de uma revolução, única maneira de a conseguir, era inexequível. Pelo menos – diz Egas Moniz – eu assim o julgava. É que, para mim, os filhos dos Reis são tão honestos como os filhos do povo, e nunca pude admitir que o Príncipe D. Luís Filipe, ou o actual Rei D. Manuel (palavras de 15 de Junho de 1908), se

conformassem em deixar adaptar às suas frontes juvenis a Coroa violentamente arrebatada à cabeça de seu pai, quando ele seguisse, às ordens dos revolucionários, o caminho do exílio.

Não. Essa hipótese nunca a aceitei, porque repugnava aos meus sentimentos e ia de encontro à opinião que formava desses rapazes: um que a morte violentamente roubou às esperanças de muitos, e outro que a desgraça dos seus fez Rei de Portugal.» (5)

São ainda do discurso de Egas Moniz no Parlamento, na sessão de 15 de Junho de 1908, as considerações seguintes:

«A noite de 28 de Janeiro de (1908) fez abortar o movimento, que havia fatalmente de produzir-se, apesar das prisões feitas, se um acontecimento inteiramente imprevisto não viesse transformar, por completo, a vida política portuguesa.

Refiro-me ao atentado de 1 de Fevereiro (de 1908). / 25 /

Com ele nada tem, nem poderia ter, o movimento revolucionário.

Foi um fenómeno esporádico e imprevisto que, mesmo no ardor da luta revolucionária, seria condenável.

Basta recordar que o movimento revolucionário se produziu na noite de 28 de Janeiro, em que dei entrada no cárcere dos Loios, quando a Família Real estava longe de Lisboa, e se dizia que só tarde regressaria a Portugal.

Como se produziu o atentado? Todos sabem. Na noite de 31 de Janeiro, um ministro, escoltado pela força armada, trazia para Lisboa a condenação à morte lenta dos presos políticos, e no dia imediato o Presidente do Conselho atirava com a Família Real para a rua, em carro descoberto, provocadoramente, com o fim único de obter um novo argumento para poder demonstrar que a opinião pública estava do seu lado e talvez pedir à sua sombra a violência dos fuzilamentos, que, segundo se disse, chegaram a ser discutidos em Conselho de Ministros.

A carruagem real apareceu assim desprotegida e abandonada, ao contrário do trem do ditador, que mereceu uma luzida escolta municipal. É que naquela iam vidas que podiam jogar-se, e neste vinha o celebrado decreto de 31, que era necessário salvar!

Foi assim que no Terreiro do Paço dois populares praticaram, a tiros de carabina e de revólver, o atentado de que resultou a morte do Rei e do Príncipe Real.

E pode então apreciar-se o que valem as dedicações dos validos dos Reis, que se servem da Coroa como instrumento das suas ambições.»

Nessa altura do seu discurso, perguntava Egas Moniz:

«Julgam que ali acorreram a mitigar a dor e a auxiliar a Rainha D. Amélia, naquele dolorosíssimo transe, os ministros que fizeram a política funesta da sua imensa desgraça?

Não. O chefe da ditadura ainda surgiu, a medo, das bandas do Arsenal; os outros quedaram-se a dois passos, resguardando-se nos seus ministérios. Sua Majestade a Rainha deve ter aprendido muito nos longos e dolorosos minutos que ficou a sós, ou quase a sós, no mais terrível lance da sua vida! Deve ter feito justiça a esses que pareciam estar sempre prontos a morrer pela causa monárquica e que, apesar de todos os seus protestos, não se arriscaram sequer a cumprir um dever de humanidade, sem perigo e sem sacrifício». (6)

Custa a acreditar, mas um jornal espanhol disse que João Franco, antes da tragédia do Terreiro do Paço, teria telegrafado ao Governo espanhol, a pedir-lhe que mandasse tropas para a fronteira, de maneira a que o Governo português pudesse tirar partido de atemorizar o povo com o fantasma de uma intervenção estrangeira, no caso de haver alguma revolta em Portugal.

Isto o disseram os jornais da época, e deles é também a informação seguinte:

Depois da tragédia do Terreiro do Paço, João Franco ainda pensou em continuar à frente do Governo.

Mesmo depois de demitido, por D. Manuel, o ministério ditatorial, João Franco (tal o amor do poder!) ainda persistia em fazer parte do novo gabinete. Foi repelido. Mas, após isto, ainda ofereceu um correligionário, que foi igualmente rejeitado.

*

*  *

Proclamava-se, entretanto, a República, e logo no seguimento do 5 de Outubro, publicado pelo Governo Provisório o direito à greve, se cria um clima de reivindicações em tudo semelhante ao que se tem vivido na sequência imediata do 25 de Abril de 1974.

Os jornais republicanos escrevem então:

«As greves das diferentes classes operárias têm surgido por toda a parte como uma epidemia, embaraçando a acção do Governo Provisório da República, assoberbado com trabalhos importantes, como sucede sempre depois de uma revolução».

E os mesmos jornais, deitando água fria no clima emocional criado pelas greves, escrevem:

«Todos devemos contribuir para a realização das justas aspirações do operariado.

Para a conquista dos seus direitos, para melhorar a sua situação, mas sem precipitações que, a maior parte das vezes, prejudicam as causas mais justas».

A história repete-se.

Volvem os anos da primeira República – uma República tumultuosa.

Demos um salto ao ano de 1918, ano do armistício da Primeira Guerra Mundial.

 

EGAS MONIZ DA O

RETRATO DE SIDÓNIO PAIS

Textualmente, disse Egas Moniz, no Preâmbulo do seu livro Um Ano de Política: «Transitei durante um ano exacto pela diplomacia portuguesa. Em 16 de Março de 1918 entreguei em Madrid, como Ministro Plenipotenciário, as minhas credenciais a S. M. o Rei Alfonso XIII. Em 16 de Março de 1919 abandonei a Presidência da Delegação portuguesa à Conferência da Paz». / 26 /

No referido Preâmbulo diz impender sobre ele o dever de dizer aos seus conterrâneos a forma como usou das demonstrações de confiança que lhe deram os governos do seu País no desempenho de tão altos cargos. Assevera não o fazer por exibicionismo, por não lhe pesar o defeito das exteriorizações excessivas, «quase sempre ridículas, quando não são prejudiciais».

E acrescenta: «A política portuguesa marcou uma étape bem diferenciada com a revolução de 5 de Dezembro de 1918 e com a acção política do Dr. Sidónio Pais. Nela influí, nela tive intervenção. Quero as responsabilidades que me cabem, mas não desejo que me atribuam propósitos que não tive».

Egas Moniz serviu, politicamente, com Sidónio Pais; mas nunca (por nunca!) perante este tomou atitudes de acatamento incondicional. (7) Reconheceu em Sidónio Pais qualidades, mas dele discordou, muitas vezes, o que motivou algumas discussões, nas quais essas discordâncias foram bem marcadas – designadamente as relativas ao sistema presidencialista, que Sidónio Pais quis concretizar na sua pessoa, enquanto esteve à frente do Governo do País.

Seja Egas Moniz a depor sobre as divergências que teve com Sidónio Pais e a acentuar, a par disso, as qualidades que nele julgava descobrir:

«O Dr. Sidónio Pais era uma alta individualidade. Digo-o com o maior desassombro.

Nem sempre estive de acordo com o Chefe da revolução de Dezembro (1918). Em breve se verá em que assentavam a nossa divergência e as discussões, por vezes quase violentas, que com ele tive. Fui, entre aqueles que o seguiram, um dos raros que ousavam discordar da sua orientação e fui, com certeza, aquele que mais decididamente se manteve no seu posto, não transigindo.

Mas, por isso mesmo, sobra-me autoridade para dizer que o Sr. Dr. Sidónio Pais era um estadista no verdadeiro sentido da palavra.

Até a sua figura o favorecia.

Tinha linha, como se dizia por toda a parte. Sabia atrair com sobriedade de maneiras. E ao mesmo tempo cultivava a mise-en-scene da sua situação. Até talvez a exagerasse! Pelo menos assim o penso. Mas tinha nobreza de sentimentos, tinha carácter, tinha decisão, tinha bondade!

Todas estas qualidades lhe têm sido injustamente negadas; mas há uma que nunca lhe puseram em dúvida: a sua valentia.

Nem os seus piores adversários lha contestaram. Dentro do seu cérebro havia estigmas da Idade Média. Tinha a ousadia cavalheiresca doutros tempos. Onde via o risco é que se sentia bem.

Nunca recuou perante a ameaça.

Por isso o assassinaram, sem que ele se desviasse do caminho onde lhe anunciavam o perigo.

Era alguém. Talvez em excesso afectado; mas sempre correcto e delicado, atencioso. Porventura muito protocolar; mas não esquecendo nenhum detalhe, prevendo as coisas mais insignificantes, ligando o maior cuidado aos pequenos nadas sociais com que, por vezes, se conquistam os homens difíceis.

(...) No fundo, embora o não dissesse, julgava-se imprescindível, eivou-se mesmo daquele messianismo de que têm enfermado muitos homens públicos portugueses.

(...) A sua obra não é grande no campo da administração pública. Pecou, como pecam todos os nossos estadistas, em abusar da ditadura e encher as colunas do Diário do Governo de leis que, em geral, não eram boas, porque sobre elas não recaía a crítica que é indispensável à melhoria da obra de um homem.

Mas a sua acção foi notável no campo da ordem. À parte violências excessivas em prisões, por vezes não justificadas e, o que é pior, muito prolongadas, contra o que sempre protestei, e que não foram da sua responsabilidade directa, pois no Porto chegou a soltar presos que eram maltratados, a sua acção em defesa do princípio da autoridade foi verdadeiramente salutar. E sem a defesa desse princípio não há governo que mereça o nome». (8)

 

CARTA DE EGAS MONIZ A SIDÓNIO PAIS,

ADVERTINDO-O DOS PERIGOS DO PRESIDENCIALISMO

Em carta de 9 de Agosto de 1918, Egas Moniz dizia a Sidónio Pais, aferrado ao seu presidencialismo de feição ditatorial:

«Tenho a impressão, Senhor Presidente, de que ou conseguimos uma vigorosa agremiação partidária que sirva de base ao actual sistema político, ou a situação baqueará a breve trecho. Não há prestígio que resista à desorganização das forças amigas e estas, sem a acção disciplinada dum partido, não passam do platonismo dos aplausos que mesmo assim irão pouco a pouco diminuindo.

(...) Soou a hora de procurar competências que auxiliem a obra tão brilhante iniciada em 5 de Dezembro.

O Senhor Presidente e o Parlamento têm, para obter esse fim, de caminhar de completo acordo. São dois poderes autónomos, mas que, sobretudo entre nós, carecem de seguir unidos e ligados nas mesmas intenções e propósitos.

Desculpe-me esta longa carta que, em muitos dos seus aspectos, tenho exposto verbalmente a V. Ex.ª. Vivem muitas vezes os Chefes de Estado separados / 27 / da verdadeira opinião pública e a lisonja dos que os servem e um pouco a natural separação das multidões que só observam de grande altura não deixam ver claro. Não quero eu apresentar-me nem como impertinente, nem como querendo alcançar foros de mais amigo. Sou-o sinceramente e como não tenho ambições que vão além da minha cadeira de deputado, ouso vir fazer estas considerações, a que V. Ex.ª dará o valor que entender». (9)

Sidónio Pais teimava no seu presidencialismo, que fazia equação com isolacionismo. Queria monólogo. Monólogo e não diálogo, quando, afinal, quem governa precisa de ser, essencialmente, um homem de diálogo. Há-de falar, e deve escutar. De contrário dará a impressão de ditador enamorado da sua pessoa, a coberto de todas as críticas, e supondo-se infalível senhor de todas as soluções.

Sidónio Pais não respondeu à carta de Egas Moniz.

As férias de Egas Moniz, em Portugal decorreram sem acidente de maior, a não ser o de que começava a ser atacado pelos jornais monárquicos, com o pretexto de que ele queria uma aproximação com as esquerdas, o que lhe merece o comentário seguinte:

«Afinal tudo se resumia em eu desejar colocar os partidos radicais em condições de poderem ascender ao poder, sem ser por meio de uma revolução.

Era o que eu preconizava então, e hoje, se me ouvissem, diria às esquerdas que colocassem as direitas em condições de poderem amanhã substituí-las na governação do País. E se assim penso é porque julgo que se torna indispensável acabar com o espírito de sectarismo que hoje (1919) continua a exibir-se da mesma maneira.

Clicar para ampliar.

Nunca tive o propósito de me unir aos partidos extremistas e radicais pela razão simples de que penso de maneira oposta. É que estou convencido de que em Portugal só uma política moderada pode criar raízes fundas.

Mas sem nada prejudicar o meu ponto de vista, eu queria que os partidos de oposição fossem considerados como força a atender e tratados como adversários com quem não se deseja transacções, mas a quem damos, no campo de actividade em que agimos, um lugar de combatentes, de sorte a poderem, por processos regulares, ascender ao poder. Foi esta a política que então defendi com desassombro e de que não tenho que arrepender-me.

(...) Mal irá o País, se as crises ministeriais hão-de ser sempre resolvidas a tiro». (10)

Egas Moniz – atrás o dissemos – discordava do presidencialismo de Sidónio Pais, e repetidas vezes lho disse:

«O seu mau sestro fez dele um fanático do sistema presidencialista. Fazia voltejar toda a política interna portuguesa em torno da votação desse sistema. Desvanecia-o o mando que previa mais forte adentro dessa fórmula governativa. Agradava-lhe a chefia efectiva das forças de terra e mar, designação que deixou em muitos decretos. Por vaidade? Talvez um pouco; mas principalmente porque, ao tempo, só tinha confiança em si. As aclamações, as palavras dos que o cercavam e o meio amigo que encontrava por toda a parte, radicaram-lhe no espírito a convicção de um messianismo que os argumentos já não conseguiam dominar.

As manifestações tinham uma grande influência nas suas decisões.

– V. não as tem visto, não as tem sentido, dizia-me muitas vezes. Queria que as verificasse pelos seus olhos. É o apoio da minha obra, à minha orientação política.

– Desculpe-me, replicava-lhe, mas eu não ligo importância a essas palmas. Os anos começam a pesar sobre mim e com eles a experiência da vida política. Quando eu era rapaz, vivia com intimidade com o Dr. José Luciano de Castro, que foi um político de rara perspicácia e bom senso. Sorria-se sempre dos que se / 28 / apoiavam nas aclamações da rua. São os mesmos que hão-de insultá-lo, amanhã, comentava.

Através dos vinte anos que tenho andado na vida pública portuguesa, tenho verificado quanto era justa a apreciação do inteligente político dos reinados de D. Luís, D. Carlos e D. Manuel.

Mas não havia possibilidade de demovê-lo! Queria o presidencialismo. Só dele podia vir a felicidade para o País».

E Egas Moniz continua a sua crítico:

«As nossas conversas encaminhavam-se, finalmente para uma conciliação. Chegámos a cedências mútuas. Não havia inconveniente em atribuir ao Presidente da República a chefia das forças da terra e mar, desde que o sistema adoptado fosse o parlamentarista». (11)

Egas Moniz queria que «o Ministério derivasse do Parlamento, caindo, sempre que não tivesse a maioria». Mas era isso que «Sidónio Pais teimava em não querer».

E Egas Moniz acrescenta que no final das discussões com Sidónio Pais, «algumas das quais foram até às cinco horas da manhã», acabava cada um no seu posto: ele, Egas Moniz, parlamentarista, e Sidónio Pais presidencialista.

Egas Moniz queria que todo os republicanos colaborassem na República. Sidónio Pais teimava em ser ele e só ele a governar.

Trágicas consequências previa Egas Moniz para o governo presidencialista de Sidónio Pais. E discordando do presidencialismo, pediu a sua demissão de Ministro dos Negócios Estrangeiros, teimando em voltar ao Parlamento. Confessa que «nunca tivera desejo de sobraçar uma pasta ministerial e sempre tivera pelo Parlamento uma irresistível atracção. Se o abandonei uma vez – continua Egas Moniz –, foi porque se tornou intolerante e eu não podia colaborar com ele. Vindo o presidencialismo, nele ficaria como legislador, deixando a outros a missão de executar». (12)

Egas Moniz fora convidado – apesar de ter pedido a sua demissão de Ministro – a manter-se no Ministério e a chefiar a delegação portuguesa à Conferência da Paz, em Londres, para onde partiria a 5 de Dezembro de 1918.

O presidencialismo absorvente seria a perda de Sidónio.

Este, embora «avisado diariamente de que se premeditava um crime contra a sua vida, descria». E como Egas Moniz lhe pedisse prudência, ei-lo que respondia:

– «Nada receio. De cada dez atentados apenas um vinga. E há-de tremer a mão do que me queira matar!» (13)

Egas Moniz ia seguir para o estrangeiro, e consigo levava a preocupação de que o Presidente, expondo-se como se expunha, poderia sofrer uma agressão mortal.

Egas Moniz chegava a Madrid em 6 de Dezembro. E aí, da parte do Secretário Particular de Afonso XIII, teve a notícia, dada por incumbência do Rei, de que Sidónio Pais fora alvo de um atentado que, por acaso, saíra frustrado.

A profecia de Egas Moniz batia certinha! Sidónio Pais nunca quis ouvir as palavras de Egas Moniz. Resultado: se o primeiro atentado se frustrou, não se frustrou o da noite de 13 de Dezembro de 1918. (14) Uma bala lhe punha termo à vida.

Era vítima do seu sistema presidencialista, a puxar à ditadura.

O homem enamorado do poder goza, a fundo, com o barulho da multidão que o aplaude. Na tepidez desse banho, sente-se como que embriagado. Sente-se ao nível de um deus. Julga-se num altar. Carece de auto-crítica, porque, se a tivesse – e tomasse a lição da história ao pé da letra –, bem saberia que todos aqueles que, de momento, lhe gritam o ave Caesar!, serão os mesmos que, no dia seguinte, lhe darão o «morra !», o «morra!» sem apelo nem agravo. Se não estivesse sob a acção da droga do «poleiro», saberia que a adesão maciça dos «sim», na hora que passa, se transformaria, no dia seguinte, numa intransponível muralha de «nãos» sem direito nem avesso, amassados em ódio, em ameaçadores gestos de vingança.

Desconfiem os políticos dos gritos de aplauso da multidão. Mil vezes provado que esta é a própria inconstância. Hoje passadeira de veludo aos pés do ídolo. Amanhã guilhotina afiada para lhe desaparafusar a cabeça do pescoço!

O nosso Infante D. Pedro quem dizia:

No amo ni punto el amor popular, ny lo quien mucho en el se confia...

O que, em português de agora, quer dizer: Não amo nem apeteço o amor popular / nem

louvo quem nele muito confia...

Ao povo amor devem os que governam. Com ele devem praticar – falando à grega e à fina – a demofilia. Não confiem, porém, na gritaria que o povo venha fazer para a rua, em seu louvor. Esse mesmo povo que, hoje, os coloca num altar, os apedrejará, amanhã. É da história.

Demofilia, sim. Mas desinteressada. Sem nada pedir ao povo, nem sequer o aplauso gritado nas ruas e nas praças.

Sidónio Pais foi vítima da ingenuidade com que tomou a sério os aplausos da multidão.

 

EGAS MONIZ

CONTRA O PARTIDO ÚNICO

Egas Moniz, a avaliar pela condenação que fez do sistema presidencialista de Sidónio Pais, repudiava / 29 / que, no País, houvesse apenas um partido político. No partido único via ele a imagem do governo totalitário e, portanto, da opinião única, o que é manifestamente contrário ao clima de liberdade em que se deve processar toda a vida nacional. Claro que, advogando o clima de liberdade, entendia que o uso da liberdade será sempre feito em favor da dignificação do homem.

Não chega a ser afirmativa paradoxal a de que o homem absolutamente livre é, afinal, volens nolens, um homem absolutamente dependente.

– Dependente de quê? Escravo de quê e de quem?

– Dependente e escravo das suas paixões, sobre as quais não possui domínio, indo para onde elas o empurram.

Toda a liberdade tem de ser necessariamente condicionada. É forçoso que o homem se norteie por um paradigma de integral perfeição, que faça rumo ao homo humanior. Se, a si próprio der integral carta de alforria, sem autolimitações de qualquer espécie, sabidinho que é homem ao mar. Tão certo como estarmos a dizê-lo!

O Homem que, à sombra de que é inteiramente livre, se deixa levar sem auto-resistências, é candidato a troglodita: em vez de animado por um «excelsior!», deixa-se ir, arrastado pelo instinto da caverna. Fica abaixo da besta, porquanto esta, deixando-se levar pela natureza que lhe é própria, não exorbita da justa medida, aquela que aproveita à sua conservação, o que não acontece com o homem naturalmente inclinado a exorbitar do equilíbrio, tocando os extremos daquilo que lhe dá prazer – um prazer que, porém, acaba por transformá-lo em farrapo de si mesmo, esterqueira de levar a mão ao nariz.

 

EGAS MONIZ

NOSSO MINISTRO EM MADRID

Egas Moniz foi nosso ministro em Madrid, durante um ano. Ele o diz no Preâmbulo de Um ano de Política: «Em 15 de Março de 1918 entreguei em Madrid, como Ministro Plenipotenciário, as minhas cartas credenciais a S. M. o Rei Afonso XIII. Em 16 de Março de 1919 abandonei a Presidência da Delegação Portuguesa à Conferência da Paz».

No ano de 1918 – período morto para a actividade diplomática – Egas Moniz resolveu vir passar as férias a Portugal.

Estava nostálgico da sua terra, e ele o diz com muita beleza literária, nas palavras seguintes:

«Eu carecia de ares pátrios. Depois do meu País é a Espanha, de todos os que tenho visitado, aquele em que melhor me sinto.

Tem sol, tem céu vasto e azul e tem arte em cada recanto de ermida e em cada pedra caboucada que serve de asilo a uma fonte ou de abrigo a um santo. Nos seus museus e nas suas igrejas falam as telas dos Mestres com quem sabe conversar com elas!

Num recanto de Toledo, na sacristia do Escurial, ou no templo sagrado que, adentro do museu do Prado, alberga a alma do maior pintor de todos os tempos, Velazquez, há a vida dum passado histórico de requintada sensibilidade.

Pois mesmo a Espanha que tem para mim tantos encantos e atractivos, passa a ser intolerável ao fim de três meses.

Carecia de vir sorver o ar português, deleitar a vista na paisagem modesta dos nossos campos, ouvir por toda a parte a língua com que me criei e até experimentar a doce tristeza da nossa raça na contemplação dos melancólicos crepúsculos da nossa Beira-Mar.

E como não fazia diferença ao serviço abandonar Madrid, preferi a minha aldeia às delícias das praias dos Pirinéus». (15)

*

*   *

Quando Egas Moniz chegou a Lisboa, a política emaranhava-se. A maioria parlamentar elegera Egas Moniz seu leader, mas logo no Parlamento começaram a patentear-se os primeiros sinais de uma desagregação – que muito havia de concorrer (diz Egas Moniz) para o desnorteamento que se seguiu ao assassínio do Dr. Sidónio Pais.

Vieram entretanto as férias parlamentares, e «a política tomava o aspecto de uma preparação para o combate que havia de vir a produzir-se entre presidencialistas e parlamentaristas». (16)

E Egas Moniz informa-nos de que o Presidente Sidónio Pais se mantinha irredutível. Chamou-o a Belém e apresentou-lhe um projecto que desejava ver aprovado – o de um «sistema presidencialista com dissolução».

Em presença disto, Egas Moniz fez declarações peremptórias, dizendo que tão inadmissível era o parlamentarismo sem dissolução, porque passa a ser a ditadura de muitos, como incompreensível era o sistema presidencialista com dissolução, pois passava a ser o poder pessoal. E quem como eu contra ele arriscara a vida na ditadura franquista, não comete a defecção de o votar hoje sob uma forma ainda mais odiosa». (17)

Assim falava Egas Moniz a Sidónio Pais. Continuaram discutindo o caso, mas cada qual ficou na sua posição. Egas Moniz confessa: «Mas eu não podia aceitar o princípio (do sistema presidencialista com dissolução). / 30 / Acrescentei mesmo que só o parlamentarismo poderia fazer a harmonia da família portuguesa» (18)
 

EGAS MONIZ

MINISTRO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS E NOSSO DELEGADO À CONFERÊNCIA DA PAZ, EM PARIS

Depois das suas funções diplomáticas em Madrid, durante um ano, Egas Moniz foi convidado, por Sidónio Pais, para sobraçar a pasta dos Estrangeiros. Como reagiu o convidado? Ele o diz:

«Esquivei-me. Em primeiro lugar, porque no número das minhas ambições nunca me lisonjeou o ser ministro e tanto que, convidado repetidas vezes, nunca aceitei o encargo. Além disso eu sentia que fazia falta no Parlamento, onde não havia, fora do Governo, pessoa que pudesse dirigir uma maioria tão heterogénea e insubmissa como a que tínhamos.

Acrescia ainda que, até essa época, eu estivera tão pouco tempo em Madrid que a minha saída poderia parecer quase um acto de descortesia.

Com estes e outros argumentos consegui a desistência do pedido que me foi feito.» (19)

Todavia voltando Sidónio Pais a insistir, dizendo a Egas Moniz que este o abandonava numa hora de perigo, e dizendo-lhe ainda que, dentro de três dias, faria uma revolução democrática, o convidado rendeu-se. Era, pois, Ministro dos Negócios Estrangeiros.

Tomada a posse, Egas Moniz enviava telegramas de despedida para Madrid. Entre as respostas recebidas, uma delas, de Afonso XIII, era do tear seguinte:

«Egas Moniz, Ministro dos Negócios Estrangeiros, Lisboa. De San Sebastian.

Agradeço sinceramente o amável telegrama que me enviou ao ser nomeado Ministro dos Negócios Estrangeiros e de todo o coração o felicito pelo novo cargo, ainda que lamente a sua ausência em Madrid, onde deixou tão gratas recordações, ficando-lhe eu particularmente reconhecido pelo seu eficaz trabalho para estreitar os vínculos de amizade sincera entre Portugal e Espanha. A Rainha agradece vivamente a sua saudação, que comigo devolvo, extensiva a sua Senhora, desejando-lhe, no seu novo e importante posto, as maiores felicidades».

O Ministério de que Egas Moniz fazia parte estava organizado a 9 de Outubro de 1918.

De 13 para 14, explodia um movimento revolucionário que não vingou.

O armistício da Grande Guerra era assinado a 11 de Novembro. «Desde esse momento – diz Egas Moniz – a gerência da pasta dos estrangeiros tornou-se pesada e cheia de preocupações. Havia que pensar nos trabalhos para a Conferência da Paz, escolher os delegados, reunir elementos, e como tudo tinha de ser feito com o Presidente da República, passei a ir a Belém diariamente». (21)

Em 20 de Novembro era nomeada uma Delegação que acompanharia Egas Moniz à Conferência da Paz.

A posse foi-lhe conferida em Belém pelo Presidente da República.

No dia 5 de Dezembro a Delegação seguia para Londres.

Entretanto, é assassinado Sidónio Pais (14 de Dezembro), como, já atrás, dissemos.

Agora novo Presidente da República – o Almirante Canto e Castro. Egas Moniz pede a sua demissão de Ministro das Negócios Estrangeiros.

Em resposta ao seu pedido de demissão, Egas Moniz recebe, em 16 de Dezembro, telegrama comunicando-lhe que os delegados à Conferência da Paz deviam manter-se no seu lugar. Ficou, pois, no seu posto. Sentia que «não tinha o direito de abandonar a missão diplomática de que fora incumbido num momento decisivo para o País» – diz Egas Moniz (22).

A 20, partia com a Delegação para a capital francesa.

Assassinado Sidónio Pais, começa uma terrível campanha contra o que fora o seu governo. Bernardino Machado dizia o pior do pior, no Temps (20 de Dezembro). Afonso Costa, por sua vez, no Matin (a 19) dava uma entrevista no mesmo estilo.

«Tudo isto – refere Egas Moniz – se dizia e publica nas vésperas da Conferência da Paz, onde iam jogar-se os destinos do País. E estavam em França os delegados à Conferência da Paz que, embora não fossem amigos dos signatários desses artigos, iam

defender os interesses de todos os Portugueses, com o desassombro e tenacidade de que deram provas sobejas.

Era nesse momento que surgia essa campanha violenta contra a situação política portuguesa que nos mantinha nos elevados cargos de representantes de Portugal à Conferência da Paz! E ousavam assiná-la um antigo Presidente da República e um antigo Presidente do Ministério que, ao tempo, ainda era Chefe de um antigo partido político português!» (23)

Insistiram com Egas Moniz para que se mantivesse no seu pasto. E por amor aos interesses do País aí se manteve, apesar de, em Portugal, tudo ir de mal a pior. A 16 de Janeiro de 1919 rebentava um movimento revolucionário, em Santarém, que não vingou. A 20 do mesmo mês era proclamada a Monarquia no Porto, Braga e Viana, num movimento dirigido por Paiva Couceiro.

Comenta Egas Moniz: «Não havia maneira de nos deixarem tratar, com tranquilidade, dos interesses do / 31 / País, numa Conferência que, já por si, se não mostrava muito favorável a Portugal!

Primeiro, o assassinato do Presidente Dr. Sidónio Pais, em seguida o movimento de Santarém, depois a revolução monárquica!» (24)

Teimavam, todavia, em manter Egas Moniz na pasta dos Estrangeiros.

Não daremos, aqui, conta do que foram os trabalhos da Delegação portuguesa à Conferência da Paz, no respeitante às nossas reclamações financeiras, ao problema colonial, e à marinha mercante de guerra. Tudo isso consta largamente no livro de Egas Moniz – Um ano de Política. A Delegação não nos colocou mal. Muito pelo contrário.

Começava, entretanto, a rumorejar que a Delegação ia ser substituída. Os Delegados não queriam acreditar, tanto mais que nunca o Governo discordara da sua orientação na Conferência, e por mais de uma vez tinha instado para que Egas Moniz permanecesse no seu posto, apesar das repetidas crises ministeriais.

«Pessoalmente – dizia Egas Moniz – era-me agradável, embora estivesse pronto a sacrificar com satisfação, o meu bem-estar, ao desejo de servir, até com sacrifício da saúde, o meu País». (25)

O Governo, porém, decidiu que fosse Afonso Costa com outros Delegados a assumir o lugar de Egas Moniz e dos Delegados que o acompanhavam.

E quem dava a demissão a Egas Moniz era o Ministro Interino dos Estrangeiros!

Comentário de Egas Moniz:

«Era o meu substituto no Ministério dos Estrangeiros que me dava a demissão em nome do Governo, apesar de ser eu o Presidente da Delegação Portuguesa à Conferência da Paz, na qualidade de Ministro dos Estrangeiros!

Um Ministro efectivo ser demitido pelo seu substituto é acontecimento que, até hoje, se não deu, nem sei se voltará a dar-se na história política da nossa terra!». (26)

Egas Moniz considerou-se demitido, apesar de terem insistido para que ficasse na pasta dos Estrangeiros.

Honra lhe seja que, por nada deste mundo, quis ficar.

Ainda manteve 10 dias em Paris – de 16 a 26 – para qualquer esclarecimento que houvessem de pedir-lhe.

Em princípios de Abril estava de regresso a Lisboa. Dele as palavras seguintes: «Assim terminou a minha missão diplomática junto da Conferência da Paz, onde trabalhei com a máxima boa vontade. Foi uma tortura que passou e cuja importância moral só pude devidamente apreciar quando me libertaram do encargo que, durante meses, pesou sobre meus ombros». (27)

Era Talleyrand quem assim estabelecia o paralelo entre o diplomata e a mulher: «Se o diplomata diz sim, quer com isso dizer talvez, e o talvez, na sua boca, significa não; e se disser não, logo deixa de ser diplomata. Se a mulher diz não, este não deve entender-se por talvez; se responde talvez, deve entender-se como sim; e se disser sim, logo deixa de ser senhora.»

Supomos que Egas Moniz, como diplomata, seria o que foi como investigador científico – o natural amigo da verdade: disse não, onde a observação e a experiência lhe mandavam negar; disse sim, onde essa mesma observação e experiência lhe mandavam afirmar; e sempre talvez, onde motivos não tinha para ser categórico.

Mirandinamente, foi homem de um só rosto e de uma só fé. Não podia ser diplomata no sentido cheio de reservas de um Talleyrand, o tal que disse que a palavra foi concedida ao homem para ocultar o seu pensamento.

EGAS MONIZ

POLÍTICO LIBERAL

Egas Moniz foi político liberal, adepto e servidor da democracia liberal. Democracia liberal, dizemos, e não (credo!) democracia de massas. A diferença que vai da primeira à segunda é abissal. A primeira é uma forma de convivência inteligente, não dispensa o diálogo, promove-o, considera-o essencial, para esclarecimento das ideias. Não presume ter feito monopólio da verdade. Não dá o seu ideário como nec plus ultra. Admite a oposição inteligente. Requer essa oposição, como obra de contrastaria, como cadinho onde possa depurar as suas ideias. Julgar-se-ia diminuída, na sua probidade, se não tivesse de coloquiar, em atitude crítica, com quem dela divergisse., Quer ter razão, não à força, mas com base em razões que lhe oponham lealmente. Para ter razão quer apresentar razões que possam ser cotejadas com outras razões. Tudo vai de que a discussão ocorra a nível de fair play, como quem diz jogo limpo de alçapões sofísticos.

A democracia liberal sentir-se-ia minimizada, se não tivesse, a passá-la pelo crivo da serena controvérsia, uma oposição bem organizada. A democracia de massas pelo contrário, não admite oposição. E tanto basta para que não mereça a nossa simpatia. O homem-massa julga ter sempre razão. A quem se lhe opõe, com argumentos lógicos, responde com sete pedras na mão. O homem multitudinário não quer convivência – mas apenas total anuência aos seus pontos de vista, impregnados das mais odiosas paixões contra aqueles que se permitam contraditá-lo. / 32 /

Na democracia liberal, as minorias têm lugar. São ouvidas e protegidas. Delas se espera um ponto de vista que mereça ponderação.

Na democracia de massas, as minorias são sumariamente abafadas. Representam um desmancha-prazeres para quem se julga, a fundo e infalivelmente, na posse de uma verdade política sem direito nem avesso, verdade monolítica, a coberto de qualquer crítica.

A democracia liberal coteja argumentos seus com argumentos alheios. É aristodemocrática. Discute com cortesia. É civilizada. Convivente. Abomina a barbárie.

A democracia de massas, ao contrário da democracia liberal, é contundente, dogmática e dogmatizante. É hermética ao confronte das ideias alheias. É incapaz de idear. Toma partido por certas ideias, não porque as tenha pensado em profundidade, mas apenas porque lhas comunicaram em clima emocional. Na carência de capacidade polémica, a democracia de massas apela para a força, não como ultima ratio, mas como primeira, como única razão, porque de facto, quem argumentos racionais não tem, só sabe usar dos argumentos da violência, ou esta se traduza no insulto de fazer corar um macaco, ou se exprima no bacamarte prestes a disparar.

Os homens da democracia liberal não fizeram voto de perfeição integral. Aceitam a polémica da oposição, e a ela se dobram, se a verdade está da outra banda. Não sofrem de narcisite aguda.

Em compensação, ao homem da democracia da massa nem sequer lhe passa pela cabeça que possa errar. Não duvida da sua plenitude. Sentir-se-ia diminuído, se houvesse de comparar-se. Garante, a priori, as suas certezas graníticas. É impermeável a críticas. Sentou praça – e vitaliciamente o fez – numa ideologia à prova de fogo. É vulgar, e julga-se com o inapelável direito de impor a sua vulgaridade. Tapa os ouvidos a todas as demonstrações pelas quais se lhe prove que está em erro. Não procura ajustar-se à verdade, mas antes, arbitrariamente, tudo procura ajustar à sua verdade. Não se tem por perfectível. É, sem contradita possível, a própria perfeição.

Com efeito, o homem-massa não tem exigências de perfeição para si próprio. Tê-las, porquê, e para quê, se ele encarna a própria perfeição?

Só o homem de selecção é homem permanentemente insatisfeito consigo. Se Deus lhe desse, com a sua mão direita a perfeição já acabada, e com a mão esquerda, a possibilidade de, com o seu próprio esforço, ser, hoje, mais perfeito, do que ontem, e, amanhã, mais perfeito, do que hoje, pela segunda dádiva ele optaria.

O homem-massa não visa transcender-se, ultrapassar-se. Julga ter atingido a meta definitiva. Nega a nobreza, no alto sentido desta palavra, como quem diz o estado de alma que exige para si mais deveres do que direitos. Se o plebeu – e plebeu é o homem-massa – é todo pelas facilidades de mão-beijada, o autêntico nobre é pelas vitórias em que dele se exija disciplina, autodomínio, risco em vencer o perigo. Como a personagem de Corneille, dirá: à vaincre sans péril, on triomphe sans gloire. O homem de espírito nobre não quer favores inconfessáveis, dispensa-os. Só vão bem à sua verticalidade moral os privilégios que conquistou com indiscutível honradez.

Se, acaso, é herdeiro de um nome fidalgo, faz tudo por prestigiá-lo. Vê, nessa herança, não um privilégio que o dispense de obrigações, mas um vivo estímulo para o honrar com o seu esforço. Sente que noblesse oblige. A herança fidalga não é, para ele, o fofo colchão em que se deite a dormir, mas um incentivo para, com insofismáveis méritos, exceder os seus antepassados.

O perfeito nobre não o é porque os seus antepassados o foram. Antes, à maneira chinesa, os seus antepassados ganham nobreza com a nobreza dele próprio. Como diz José Ortega y Gasset: «Os antepassados [chineses] vivem do homem actual, cuja nobreza é efectiva, actuante; em suma: é; não foi.»

Não conhecemos a genealogia de Egas Moniz. O que podemos afirmar é que ele, com a sua vida e obra, distinguiu nobreza sobre os seus antepassados. Não foi homem-massa, mas homem de selecção. Não poderia nunca (por nunca!) votar por uma democracia de massas, mas por uma democracia liberal, por uma democracia aristocrática, se tomarmos esta palavra no sentido helénico, e sentido de fina flor, nata, elite, escol.

Egas Moniz foi um intelectual puro ao serviço da política, no sentido majorativo desta palavra.

Queremos o intelectual atento à política, como homem que não deve abdicar da sua cidadania, no alto sentido desta palavra. Não o queremos, porém, (abrenúncio!), ancilosado na mentalidade política, tomada esta no sentido pejorativo.

Com efeito, diferença existe, e profunda, entre a mentalidade de filósofo ou de sábio, e a habitual, ou tradicional, mentalidade política. Se aquela se norteia pelo dito comteano de saber para prever, e prever para prover: science, d'où prévoyance, prévoyance, d'où action, a outra se norteia pela ambição do poder, este transformado em tema e... teima, utilizando, por sistema, a máxima maquiavélica de que os fins justificam os meios.

O político, no sentido desacreditado desta palavra, é o grosseiro pragmatista. Em seu pensar, é verdade o que se traduz em utilidade para os seus sofísticos propósitos de se manter no poder, e é falsidade / 33 / tudo o que daí o afaste. A sua epistemologia assenta na fraude e num subjectivismo arbitrário.

Bom será, porém, que a mentalidade política se corrija desse vício – o da obsessão do poder pelo poder, do mando pelo mando, do penacho pelo penacho.

O programa do político deverá ser governar e servir. Politica ancilla populi. Fora deste perímetro constitui fraude. E dessa fraude foi incapaz Egas Moniz, homem de servir, jamais de servir-se, atreito a reivindicar deveres no exercício da função pública, jamais a reclamar, para si, à sombra da função governativa, qualquer direito inconfessável. Foi homem nobre, que media a sua nobreza moral na proporção das suas obrigações demófilas, repudiando o plebeísmo de aproveitar a função pública para se governar.

Egas Moniz – se formos ao fundo das suas atitudes políticas – foi o adepto flagrante de uma aristodemocracia, aquela que promove o aproveitamento sistemático de todos os valores prometedores.

A autêntica democracia não rasoira valores: procura-os, e faculta-lhes todos os meios para que possam concretizar-se no máximo das suas virtualidades. Não é inimiga das aristocracias naturais. Antes as promove. O que ela repele são as aristocracias alicerçadas em pergaminhos sem a cobertura de valores bem actuais, e insofismáveis. Não entra no seu programa eliminar escóis, antes lhes propicia o aparecimento. Segundo a Declaração dos Direitos de 89, «tous les citoyens sont également admissibles à toutes dignités, places et emplois publics, selon leur capacité, et sans autre distinction que celle de leurs vertus et de leurs talents.»

Não se concede, pois, de mão beijada, o acesso aos lugares responsáveis, mas em função de capacidades meridianamente provadas.

A democracia aristocrática (acasalemos afoitamente estes dois termos) não rasoira valores: dá a cada qual a oportunidade de se desenvolver ao máximo, para, depois, o situar onde mais útil possa vir a ser à colectividade.

A democracia aristocrática – precisamente porque se adjectiva de aristocrática – não abafa personalidades, antes tudo faz para que elas surjam em toda a sua plenitude.

A democracia liberal – para honrar este adjectivo – será tal que liberte o homem da miséria material, da miséria intelectual, da miséria moral. Será tal que dignifique cada vez mais o homem, libertando-o da abusiva opressão dos governantes, que nele crie o agudo sentido das responsabilidades pessoais e cívicas, que dele faça um homem que conheça e possua cada vez mais, para se qualificar integralmente a si próprio, e ajudar os outros a qualificar-se ao mesmo nível. Democracia liberal ou é humanismo que conduza à promoção do humanus a humanior, ou não passa de simples «sopro de voz», expressão vazia de sentido, simples rótulo que muito promete e, afinal, nos traz uma das mãos cheia de nada, outra cheia de coisa nenhuma...

EGAS MONIZ

SIMPATIZANTE COM O SOCIALISMO

Egas Moniz advogou, como político, a melhoria da classe operária. Se hoje fosse vivo teriam nele os operários um dos seus defensores mais calorosos. Parecem de agora, e no entanto foram proferidas numa conferência de há 57 anos, as palavras seguintes:

«...Temos de atender, com cuidado, ao movimento operário e trabalhista, que carece de ser atendido nas suas reclamações. Um Governo, que se preza de bem servir o País, tem de olhar de frente esse grave problema. É indispensável que o operário tenha o bastante para si e para os seus. Por outro lado deve estar ao abrigo de leis protectoras que não só o amparem nos desastres, mas também, o socorram na doença, na invalidez, na falta de trabalho e na velhice.

É preciso que os seus filhos sejam protegidos pelas maternidades e lactários e pela difusão de creches, das cantinas e dos dispensários; é necessário que a sociedade auxilie a educação dessas crianças na escola primária e, particularmente, nas escolas profissionais e técnicas, cuja divulgação se deve introduzir e espalhar pelas nossas cidades e províncias. Urge fixar-lhes um salário mínimo e facilitar-lhes casas baratas, água abundante, banhos públicos gratuitos, transportes a preços mínimos e criar a instituição tão simpática como justa do homestead. Deve regularizar-se, com efectividade, o trabalho das mulheres e crianças a dentro das fábricas, atendendo à higiene das instalações fabris, do atelier, da habitação dos empregados comerciais e de todos os serviços em geral.

Ao terminar esta rápida enumeração do que julgo serem justas reivindicações do mundo Operário, é possível que me tomem por socialista (28).

Sob este aspecto, não repudio a tendência, que o político moderno deve possuir. No advento desta nova era, todos temos de ceder no campo económico do mundo que mais trabalha, isto é, das classes operárias.

Na hora presente, temos de ir ao encontro das aspirações das forças produtoras. Seria estultícia propormo-nos dar-lhes inglório combate. Trabalho e capital poderão, assim, fazer uma aliança honrada e vantajosa ao progresso social. Na América do Norte, raríssimas vezes há uma greve e pela razão simples de que os patrões e operários se entendem por maneira / 34 / que estes não chegam a ter necessidade de formular reclamações». (29)

Egas Moniz, trabalhador intelectual, investigador que, depois das palavras transcritas, veio a ser galardoado com o Prémio Nobel foi – acabamos de o ver – ardoroso advogado da manifesta melhoria da dignidade humana do trabalhador manual, repugnando-lhe que fossem uns a viver na opulência afrontosa, e outros a viver – ou a vegetar – em aflitiva situação económica. (30) Egas Moniz não foi comunista, mas simpatizou com o socialismo.

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Casa do Marinheiro – Avanca

Que pensava Egas Moniz, em matéria de educação e de instrução?

São de 1916, as palavras seguintes, com as quais responde à nossa pergunta:

«Mais do que a instrução é preciso difundir as bases duma educação diversa daquela que tem feito a orientação do nosso povo. É indispensável educar e instruir, mas de maneira diferente da seguida até agora. Não é ensinando, e mal, a ler e escrever, que se podem valorizar homens para a luta da vida. (31) Mesmo nas classes que se não destinam a fazer grandes e profundos estudos, é necessário que alguns mais se façam sob uma orientação acentuadamente técnica, base do progresso dos grandes povos, do levantamento das grandes nacionalidades.

[...] A educação de todas as classes sociais deve ser realizada adentro das escolas com cursos seguidos, divulgada em conferências às classes operárias, difundida pela imprensa e pelo livro.

[...] Até a correcção de maneiras não é indiferente na vida social.

A educação tende a cultivar os bons sentimentos, que devemos fazer prosperar e hipertrofiar, sublimando-os. Só assim se conseguirá obter caracteres, só assim se divulgará a honestidade de processos, só assim se transformará a sociedade intolerante, provocadora e petulante de hoje, na sociedade serena e reflectida de amanhã.» (32)

Se hoje vivesse, não teria Egas Moniz que alterar muito as palavras que aí ficam. Ainda não perderam a sua actualidade.

Acima de tudo, o que ele queria era a formação de homens de carácter, maneira de saberem usar com eficiência criadora os conhecimentos que adquirissem.

Referindo-se à mulher em geral, escreveu Egas Moniz: «A educação é talvez mais precisa à mulher do que ao homem. E muito particularmente à mulher do operário.

Se o capital se reproduz pelo juro, o operário amortiza-se pelo filho, e este será tanto mais garantido quanto a sua educação for mais cuidada. E esta depende mais da acção da mãe do que do pai. Ela deve ter não só uma certa educação que faça da sua individualidade um ser moral completo, mas carece, além disso, de saber educar, de saber dirigir os seus filhos nos primeiros anos da vida, quase sempre os mais importantes para a sua existência». (33)

Egas Moniz refere-se à mulher do operário, na assistência aos filhos nos primeiros anos. Mas a presença da mãe é indispensável junto dos filhos pequenos, em todos os níveis sociais da mulher.

Já alguém chamou à ternura «vitamina psicológica». Metáfora? O que quiserem. O certo é que a ternura / 35 / ajuda a criança a crescer, não apenas fisicamente, mas, sobretudo, no respeitante à sensibilidade.

A criança que não recebe essa vitamina fica minimizada, para todo o sempre.

Não basta que os pais dêem filhos ao mundo. É preciso que, para além de os alimentarem de corpo, os alimentem, também, com a sua afectividade. E se há ternura que pese no crescimento e aperfeiçoamento psíquico duma criança, essa ternura é a do amor materno. A criança precisa de ouvir a voz carinhosa da mãe, precisa de receber as carícias do seu olhar, o afago das suas mãos. As crianças privadas da vitamina psicológica, que é a ternura da mãe, ficam roubadas numa riqueza inefável que nenhuma outra riqueza deste mundo poderá compensar.

A presença da mãe junto dos filhos, nas primeiras idades, (presença traduzida na palavra doce, no olhar de suaves ressonâncias, na mão que ampara, no gesto que tranquiliza, na companhia que vacina contra o medo, na discreta ajuda em dificuldades, no diálogo silencioso dos olhares que se trocam) constitui um tónico moral insubstituível. A mãe não pode passar procuração, seja a quem for, para que a substituam junto dos seus filhos pequeninos. A mãe é mais mulher, se tiver a companhia dos seus filhos pequeninos. A mãe é mais mulher, se tiver a companhia dos seus meninos. E estes, por sua vez, virão a ser mais homens, se tiverem recebido as calorias que só a ternura materna pode comunicar. (34)

A ausência da mãe, relativamente ao seu filho pequenino, gera neste um estado de profunda angústia – a angústia do abandono que o poderá acompanhar por toda a vida. E aqui nos lembra a poetisa galega Rosalía de Castro que, durante toda a sua existência, sentiu, agudamente, o espinho da ausência da mãe, na sua meninice. Filha de amores irregulares, Rosalía foi confiada a uma ama.

A mãe afastou-se, para, aparentemente, tapar as bocas do mundo.

Em boa verdade, com essa ausência sofreu a mãe e sofreu a filha. Bem exacto o que diz o Dr. Bowlby: «A criança tem necessidade de sentir que é alvo de prazer e orgulho para a mãe, e esta precisa de sentir um enriquecimento da sua personalidade através da do filho; ambos carecem de se considerar intimamente identificados. A função de mãe não pode de modo algum ser exercida por procuração. Existem relações humanas e vivas que modificam o carácter da mãe como o do filho. Um regime apropriado exige algo mais que calorias – a alimentação, para se tornar plenamente aproveitável, deve ser ingerida com prazer. Analogamente a função da mãe não se deve calcular em horas de presença – a única medida válida consiste na alegria que a mãe e o filho experimentam em estar juntos». (35)

A carência afectiva precoce, a carência de cuidados maternos, traumatizou, para sempre, a formação da personalidade da criança.

Mas, claro, ao falarmos da influência benéfica da mãe sobre o filho na primeira e segunda infâncias, importa salientar que de mães normais estamos falando.

Se as mães fugirem ao paradigma da normalidade – se forem mães hostis, ansiosas, instáveis, captativas ou superprotectoras – logo a criança se ressentirá, ficando aquém do que seria lícito esperar dela. Com mães ou pais insuficientes, não haverá ambiente afectivo propiciador à personalização construtiva da criança. (36)

 

EGAS MONIZ

POLÍTICO INDEPENDENTE

No mundo da política, Egas Moniz primou sempre pelo espírito de independência, isenção e objectividade, tal como o fez no respeitante à investigação científica, onde mostrou soberana indiferença por todos aqueles que, através de críticas, mais ou menos discretas, pretendiam fazer acreditar que, das suas pesquisas – aquelas que, afinal, lhe deram o Prémio Nobel – nada proviria de original, nem de útil.

O medíocres latiram, mas ele fez seguir a sua caravana.

Egas Moniz conhecia muito bem a psicologia dos medíocres de carreira, uns sujeitos que, não lhes sendo possível elevar-se por méritos próprios, procuram subir (e muitas vezes o conseguem!) pelos processos da subserviência e da humilhação rastejante, perante aqueles que, estando em lugares altos da política, gostam de ser lisonjeados.

Algures na Câmara dos Deputados, em 1909, evocando a memória de José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães, dizia Egas Moniz:

«O homem medíocre fala sempre de méritos que não tem, lança em face serviços que não presta, apregoa sacrifícios que não sofreu e tem sempre a mão espalmada para receber a paga da sua obra em honrarias ou benesses. E porque é mole como a cera, agrada aos que, mercê do nosso modo de ser político, são os árbitros do poder, acomodando-se a todas as situações, sem uma reclamação que possa ser ouvida, sem um ronronar que possa pressentir-se, sem um atrito que possa exteriorizar-se!

Não tem ideias nem precisa tê-las. Pensa pela cabeça do seu dono. Defende por sistema. Ataca por obrigação. Satisfaz vaidades e avigora ódios. É serviçal. / 36 / É submisso. Mas a paga também é certa, segura e remuneradora». (37)

Barbosa de Magalhães, homem que primou pela verticalidade, homem a quem sobrou personalidade de antes quebrar que torcer, nunca abdicou da sua independência. Disse sempre o que tinha a dizer, fosse a quem fosse. E por isso mesmo foi posto de lado. Nunca se curvou perante imposições dogmáticas de chefes omnipotentes.

Também Egas Moniz, no respeitante à política, como, aliás, em todos os sectores da sua actividade, timbrou, invariavelmente, por ser ele próprio, não se dobrando diante do mais pintado.

Egas Moniz foi homem sui generis e sui juris. Personalidade bem marcada. Sigla inconfundível. Orientado pela divisa do iI faut être soi. Homem inarrebanhável. Foi-se atrás dos seus imperativos de consciência. Não macaqueou o mais pintado.

Como o poeta, poderia ele dizer:

Inútil seguir vizinhos.

Querer ser depois ou ser antes.

Cada um é seus caminhos.

 

CULTURA HUMANÍSTICA DE EGAS MONIZ

Egas Moniz quem disse: «Ramón y Cajal, o grande sábio espanhol, Prémio Nobel de Medicina e glória da histologia de todo o mundo, escreveu, algures, que muito lhe pesava a desproporção entre o avanço, cada vez mais acelerado, dos nossos conhecimentos científicos nos diversos sectores do saber humano e o nosso desenvolvimento do cérebro, tão ronceiro e preguiçoso, que, de forma alguma, pode abranger o progresso das ciências no seu complexo conjunto. O sonho dos enciclopedistas de há muito se desmoronou!».

Egas Moniz não presumiu, evidentemente, de possuir cultura enciclopédica. Só poderia presumir de tudo saber, se fosse tolo. Mas soube, todavia, muito mais do que a sua estrita medicina, porque se apenas medicina soubesse, nem medicina saberia, segundo a frase, aparentemente paradoxal, que por aí corre.

Soube da sua medicina, foi original na sua medicina, ao ponto de lhe caber o Prémio Nobel, mas não se ficou por aí. Soube meter a sua especialização num contexto de cultura humanística, com laivos de universal, e daí só tirava benefícios como professor, como homem e como cidadão.

Obedeceu, talvez sem dar por isso, ao famoso preceito de Vítor Duruy, enunciado há mais de um século: Il faut être universel, au profit de Ia spécialité.

A universalidade – a relativa universalidade da sua cultura – aproveitou à sua especialidade. Estamos em dizer que talvez não fosse Prémio Nobel de Medicina, se, por detrás, ou subjacente à sua preparação científica, não tivesse uma larga cultura humanística.

Diz-se que um homem completamente culto é mais raro que as esmeraldas azuis. Não há, aí, ninguém que tudo possa conhecer, e conhecer a fundo.

Certo, certíssimo. Mas será que poderíamos considerar culto o homem que soubesse este mundo e a cabeça do outro?

A cultura não está no muito que se sabe, mas num certo quid que se deve sobrepor ao saber – seja este geral, seja especializado.

Aquilo que deve impregnar o saber – sob pena de este pouco nos adiantar – será uma profunda dose de humanismo.

Sem o saber posto ao serviço da promoção integral do homem, nada feito ou tudo mal feito. Não se pede que deitemos o corpo às ortigas, que descuidemos o bem-estar económico. Mas tudo culminará na espiritualização do homem, fazendo que este seja uma criatura essencialmente fraterna a nível ecuménico.

Ciência que divide os homens, não é cultura, no alto sentido desta palavra.

O saber estritamente profissional, e, para mais, em especialização apertada, encurta vistas, isola. O saber deve ser humanista. Há-de traduzir-se (para que o consideremos culto) em dons de fraternidade humana.

A falta de cultura humanística, a estrita preparação científica, leva os homens a tudo considerar more geometrico.

Roberval, depois de assistir à representação de uma peça de Racine, não se teve, e perguntou:

«Qu’est ce que cela prouve?»

Nem tudo se prova matematicamente, laboratorialmente. Bem sabemos que il ny a science que du mesurable. Mas há ramos do saber que não cabem nas provas estritamente matemáticas.

Mal vai aquele que procura na lógica matemática o esquema das relações entre os homens. Essas relações têm, por vezes, muito de inefável. E o inefável (ai de nós!) é rebelde a senos e cossenos e coisas que tais.

Só a cultura de feição humanística pode fornecer – e aguçar – um sexto sentido para certa inefabilidade das relações entre os homens e para uma larga cosmovisão psicológica.

Essa cultura a possuía Egas Moniz, sem, todavia, lhe faltar a óptima cultura científica. Conciliou as duas. E não consta que, mutuamente, se tenham prejudicado. Antes, reciprocamente, se auxiliaram.

Egas Moniz não foi o estrito investigador científico. Para além de professor universitário, sentiu-se também no dever de ser cidadão atento à política do seu país, e não apenas na qualidade de espectador. Quis ser / 37 / e foi, político intervencionista. A sua educação de cariz humanista – não dizemos enciclopedista – Ievava-o a exorbitar do estrito magistério e da clínica, para dar o seu contributo de inteligência e de civismo às coisas da governação pública. Não quis ser o técnico puro, de quem talvez pensasse: techinus purus, asinus purus.

Com efeito, a simples técnica, nada mais vendo do que a cabeça do alfinete da sua especialização, acaba por ganhar uma certa miopia e paralisia para as perspectivas de conjunto. Egas Moniz não se quis ficar na apropriada especialização. A par da sua cultura científica, esforçou-se por ganhar cultura que lhe propiciasse larga mundividência. Essa mundividência não lhe faltou e foi mercê dela que se intrometeu na política. Fez magistério, sim. Clínica também. Não esqueceu a investigação científica. Mas entendeu que, sendo embora, professor, clínico e investigador, não deveria desinteressar-se da sua cidadania activa.

Egas Moniz não foi, não quis ser, o técnico puro.

O técnico puro, pela falta de mundividência filosófica, que o mesmo é dizer: mundividência humanística, é, nas mãos do político, um instrumento de escravização. O nosso homem, dentro da sua especialização respeitante a uma cabeça de alfinete, só vê valores grosseiramente pragmáticos. Não alcança os inefáveis valores do espírito à escala do grande, do contexto ecuménico da Humanidade.

Egas Moniz não foi filósofo de profissão. Todavia, possuiu a filosofia bastante para se libertar das estreitezas do estrito profissionalismo.

Egas Moniz foi o tipo de homem selecto, a negação do homem vulgar, porque, se este se contenta com uma cultura estática (e esta mesmo a nível de confrangedora penúria), aquele procura permanentemente transcender-se, tendo, como ninguém, o sentido agudo da problemática, para esta escogitando soluções inéditas, ou renovadas.

Fosse Egas Moniz um simples espírito erudito, atafulhado do saber dos outros, sem outra ambição que a de deslumbrar pelo muito do que recebeu de fora, e não teria dado um passo à frente, no campo da medicina. Não foi, porém, o tipo do homem erudito, do citador, recitador e... trescitador do saber alheio. Quis – e admiravelmente o conseguiu! – transcender aquilo que já encontrou feito. Pretendeu atirar a seta da originalidade para além do statu quo. Meteu-se pelo caminho de investigações inéditas, ou apenas esboçadas por outros, interrompidas a meio caminho. Homem de nobre estirpe intelectual, e não homem-massa (o simples repetidor ou passivo eco alheio), entendeu ser seu dever trazer, mercê do seu esforço, da sua dinâmica criadora, um novo contributo à ciência que, como professar universitário, leccionava.

Teve, contra si, a surda hostilidade dos rotineiros, dos homens vulgares (que também os há – se há! – na Universidade), mas lançou-lhes um olhar de desdém, persistiu, apesar de tudo, e contra tudo, e meteu a sua lança nas áfricas da originalidade. O Prémio Nobel não lhe foi atribuído, de mão-beijada, mas em função do valiosíssimo contributo que trouxe a fisiologia do cérebro.

Como professor de alta estirpe intelectual, sentiu-se no dever de se suplantar. Existe uma nobreza moral. Existe, outrossim, uma nobreza intelectual. Se a nobreza moral consistiu em transcender-se, diariamente, no respeitante a qualidades afirmativas de carácter, a nobreza intelectual, a nobreza de um magistério universitário digno do nome, consiste em comunicar aos seus alunos para além do espólio científico em circulação, o resultado de investigações originais de conta própria.

 

QUE PENSARIA EGAS MONIZ, SE ASSISTISSE AO 25 DE ABRIL?

Que pensaria Egas Moniz, se assistisse ao 25 de Abril de 1974?

Talvez repetisse muitas das palavras que proferiu, ao traçar o Programa do Partido Centrista, de que fez parte. (38) Esse programa foi publicado em 20 de Outubro de 1917, e dele extraímos os passos seguintes:

«Não somos radicais, porque nem todas as raízes se cortam; mas não somos tão pouco conservadores, no sentido de retrógrados ou reaccionários, porque não excluímos dos nossos propósitos o espírito de reforma e de evolução. Somos moderados no radicalismo da nossa projectada acção: preferimos conservar melhorando, as energias nacionais, olhos postos nos ideais de reforma social cujas reivindicações justas reconhecemos. Entendemos, porém, que dentro da fórmula republicana que corresponde ao Estado actual da nossa sociedade, afirmando ser liberais, definimos, consequentemente, a nossa reprovação a toda a tirania e a toda a violência, porque também são possíveis no regime, quando ele permite a degenerescência demagógica e anárquica que tudo destrói e tudo esteriliza». (39)

Esse programa ainda agora teria actualidade nacional, em muitos pontos. No citado livro pode o leitor encontrá-lo na íntegra.

Sobre esse programa, faria Egas Moniz, depois, uma conferência no Porto. Muito haveria que transcrever aqui dessa conferência. Reproduzimos apenas o final.

«Procuremos que nos governem homens honrados, desinteressados e sabedores, que não conheçam o / 38 / facciosismo, que sejam justos nas suas decisões e enérgicos nos seus propósitos, e que não esqueçam que a bondade, essa grande e ignorada força, vale mais do que as medidas violentas, que geralmente atingem mais os seus autores do que as suas vítimas». (40)

De facto, Egas Moniz foi sempre contra os regimes de violência e opressão, Ditaduras de pulso cabeludo e de trabuco sempre aperrado, nunca tiveram, não podiam ter, a sua simpatia.

Com efeito, Egas Moniz, sempre que se referiu às ditaduras portuguesas, fê-lo como político liberal, e, portanto, em linguagem de repúdio. Falando da ditadura de João Franco, chama-lhe obra de «demência», filha de um «governo odiado».

Diz ter atacado essa ditadura, que originou o atentado de 1 de Fevereiro (de 1908), com a vivacidade e com o calor que nos dá a convicção de bem proceder. (41) Falou das «infâmias do governo da ditadura», das «violências da ditadura». (42)

Portanto, Egas Moniz foi contra toda a espécie de despotismo. E quem o não é?

Henrique Heine quem dizia que «a Inglaterra foi o único país que cometeu o ridículo de vencer Napoleão».

Não cometeu ridículo nenhum, não senhores! Napoleão quis eliminar a liberdade onde quer que ela existisse. Quis ser o tirano não só na França, mas em toda a Europa! Ora, despotismos nem pintados!

Se Egas Moniz agora vivesse, nesta nossa era de contestação sem freio, será que lhe daria o seu inteiro aplauso?

Sim, e não. Sim, no protesto contra muitos conformismos que ainda aproveitam as pequenas minorias, mas que atiram para a miséria espantosas maiorias. Não, na tempestade de reivindicações que para aí vai de «direitos», que são apenas fáceis e egoístas comodidades. De certo ele gostaria de ver os Portugueses desencadear também uma tempestade em que reivindicassem obrigações. Toda a gente aí se julga a coberto de críticas, fazendo, aliás, de juiz infalível na crítica ao seu semelhante.

Era Augusto Comte quem dizia: «o homem só tem um direito – o de cumprir o seu dever».

Os Portugueses do nosso tempo – muitíssimos deles – trocam o dito comteano, e é como se afirmassem: «o homem só tem um dever – o de reivindicar direitos, atirando com os deveres às ortigas».

Egas Moniz foi político liberal. Advogado de qualquer liberdade? De uma só: aquela que subisse o homem a mais homem, que o promovesse, de humanus, a humanior.

Não poderia, jamais, dar o seu beneplácito a governantes que só a querem para eles, e de todo a negam aos cidadãos.

_________________________________

NOTAS

(1) – Com efeito, em 8 de Julho de 1906, João Franco, em reunião com os seus partidários, no Porto, prometera, se viesse a ser Governo, não se afastar, um milímetro, da Carta. Aí declarava que não faria ditadura. Jurava a Deus que só com o Parlamento faria as leis necessárias para a execução do seu programa governativo.

(2) – D. Manuel, uma vez feito rei, escreveu a seguinte carta ao Presidente do Conselho, publicada no Diário do Governo:

«Meu presidente do Conselho:

Devendo as cortes, nos termos do artigo 80.º o da Carta Constitucional, fixar, no começo de cada reinado, a dotação do Rei, e desejando eu que o Parlamento esteja inteiramente livre de toda a indicação para resolver sobre o assunto, é meu firme propósito que a fazenda da Casa Real não utilize recursos que não tenham a sanção parlamentar.

Creia-me sempre seu muito amigo

Manuel.»

Errata àquilo que a ditadura decretava... D. Pedro V cedera a favor do país a quarta parte da sua dotação, 91 250$000 réis anuais.

(3) – D. Manuel viria a revogar, em 7 de Fevereiro de 1908, a lei da imprensa de 20 de Junho de 1907. O decreto é assinado pelo rei, por Francisco Ferreira do Amaral e Artur Alberto de Campos Henriques.

(4) – Deputado em várias legislaturas, de 1903 a 1917, foi ministro de Portugal em Madrid, em 1917, ascendendo a Ministro dos Negócios Estrangeiros (8-X-1918 a 4-XII-1918). Na qualidade de Ministro dos Negócios Estrangeiros, presidiu à primeira Delegação Portuguesa à Conferência da Paz, em Paris, 1918, conservando a pasta dos Negócios Estrangeiros, mas substituído no seu exercício por Canto e Castro (15-XII-1918 a 23-XII-1918, Azevedo Neves (23-XII-1918 a 27-1-1919) e Couceiro da Costa (27-1-1919 a 30-III-1919).

Em 30 de Junho de 1961, dirigentes das forças republicanas e socialistas solicitaram de Egas Moniz a sua anuência para ser proposto como candidato à Presidência da República. Recusou-se, alegando a sua falta de saúde, e tomando partido pelo candidato almirante Quintão Meireles.

(5)Um ano de Política, pág. 18, Lisboa, 1919.

(6) – Op. cit., págs. 18-20.

(7) – Sidónio Pais assumiu a chefia de um movimento revolucionário contra o governo democrático (5-XII-1917), que acabou por triunfar. Deposto Bernardino Machado, Sidónio Pais tomou a chefia do País, inaugurando então a «República Nova» com as características de presidencialista.

Em 9 de Maio de 1918 realizou-se a eleição presidencial, e Sidónio foi eleito por meio milhão de votos. Os partidos políticos negaram-lhe o sufrágio.

Passaram, depois, a conspirar contra ele. Malograda a tentativa do movimento de 15-VI-1918.

(8)Um ano de Política, págs. 84-86, Lisboa, 1919.

(9) – Op. cit., págs. 145-147.  / 39 /

(10) – Op. cit., págs. 149-150.

(11) – Op. cit., págs. 156-158.

(12) – Op. cit., págs. 159-160.

(13) – Op. cit., pág. 162.

(14) – Quando embarcava, em Lisboa, na estação do Rossio, com destino ao Porto, foi assassinado por um fanático, José Júlio da Costa, que veio a morrer no manicómio.

(15) – Op. cit., págs. 141-143.

(16) – Op. cit., pág. 143.

(17) – Op. cit., pág. 143.

(18) – Op. cit., pág. 146-144.

(19) – Op. cit., pág. 141.

(21) – Op. cit., pág. 155.

(22) – Op. cit., pág. 190.

(23) – Op. cit., pág. 201.

(24) – Op. cit., pág. 259.

(25) – Op. cit.. pág. 385.

(26) – Op. cit., pág. 398.

(27) – Op. cit., pág. 407.

(28) – Mao Tsetung quem disse: «O sistema socialista acabará por substituir o sistema capitalista; essa é uma lei objectiva, independente da vontade do homem. Por muito que os reaccionários tentem impedir o avanço da roda da história, tarde ou cedo se fará e conquistará inevitavelmente a vitória.» (Citações do Presidente Mao Tsetung, págs. 25-26, Lisboa, 1974). A nota é nossa.

(29)Um Ano de Política, págs. 73-75, Lisboa, 1919.

(30) – Já Aristófanes, na Assembleia das mulheres, punha as seguintes palavras na boca de Proxágora (paródia do nome de Pitágoras): «Direi, desde já, que todos os bens devem ser postos em comum, e cada qual deve ter a sua parte, para viver. Não faz sentido que um seja rico e outro miserável».

(31) – Há quem não goste da expressão segundo a qual a escola deve preparar a mocidade para as lutas da vida.

Acham a metáfora demasiadamente belicosa, e quereriam, em vez de uma escola feita para a sociedade, uma sociedade feita para a escola.

Divida-se a conta ao meio: que a escola se faça para melhorar a vida social, e que esta se viva para melhorar a escola. (A nota é nossa).

(32)Um Ano de Política, págs. 76-77, Lisboa, 1919.

(33)Um Ano de Política, pág. 78, Lisboa, 1919.

(34) – O «leite da ternura humana», de que fala Shakespeare não é simples metáfora. Ai da criança que o não «bebeu» a seu tempo!

(35) – Citado em Madeleine Rambert, A mulher só e os seus problemas afectivos, págs. 25-26, Lisboa (1971).

(36) – A propósito, leia Manuel Breda Simões, em Espiral, n.º duplo 8-9, pág. 25, Lisboa, 1965.

(37)Dr. Barbosa de Magalhães, Parlamentar e Político, págs. 19-20, Aveiro, 1955.

(38) – O Centrismo foi movimento político iniciado por Egas Moniz, de acordo com os dissidentes do partido evolucionista que tinham assento na Câmara, Vasconcelos e Sá, Limas Machado, Malva do Vale, Tamagnini Barbosa, O Programa do Centrismo foi publicado em 20-X-1917. No Porto, a propaganda do Centrismo foi iniciada oficialmente por uma conferência de Egas Moniz, no Ateneu, que deu lugar a opostas manifestações ruidosas. Por sugestão de Sidónio Pais, após a revolução de 5-XII-1917, o partido centrista viria a ser dissolvido. Os seus elementos viriam a juntar-se aos sidonistas, para formarem o Partido Nacional Republicano.

(39)Um Ano de Política, pág. 56, Lisboa, 1919.

(40) – Op. cit., pág. 79.

(41) – Op. cit., págs., 12-13.

(42) – Op. cit., págs. 13-14.

 

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