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N.º 16

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1973 

Considerações sobre a Gente de Aveiro

Por Eduardo Cerqueira

Jornalista e publicista

Introdução a um colóquio sobre

«Aveiro, Rumo ao Futuro»

 

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A salinagem ancestral em Aveiro.

Mais de um milénio documentalmente certificado testifica a existência de uma Aveiro desabrochante – uma incipiente e indiferenciada povoação alavariense, nascida sob o signo do sal e, acaso, das suas propiciações.

À ilharga de Salla, e das salinas dela própria, que o topónimo enganosamente pareceria sugerir, situava-se Aveiro – quer dizer, Allavario, que ainda era o nome em desabrolho sem a lima que o afeiçoasse do linguajar canhestro à fala adulta que hoje subsiste, fonética e graficamente fixada.

E também a Alavarium dos primórdios do agregado, e delas germinada, com marinhas de sal, já retalhadas verosimilmente em quadrículas, como as janelas do céu que nelas quis ver com seus dons de penetração ultrapassantes dos comuns o artista Almada Negreiros.

Proporcionavam, desde logo, as fulcrais salinas, o elemento para temperar as berças e o conduto parco, ao habitante arribado com o só capital dos seus braços e da sua vontade de sobrevivência. E, paralelamente, com realçar das possibilidades gustativas de uma alimentação de monótona composição e simpleza, lhes vinha dar possibilidades de cura conservante às viandas dos dias assinaláveis, quem sabe se de cerdo – nessa época em que, a um tiro de besta, ou pouco mais distância, se adensava também com sua fauna adomesticada a Mata dos Ursos, cuja reminiscência subsiste na toponímia de uma povoação do alfoz citadino.

E instilava um travo espevitador, esse mesmo elemento que foi o longínquo gene da cidade actual, às línguas desentravadas do homem que lhe fruía o paladar no caldo e no pouco mais da apertada dieta – e, por essa via, e na constância ininterrompida, viria a atiçar-lhe a argúcia para novos misteres, e perspectivas de mais largo raio, e alguma nova etapa de ambição.

E, naturalmente, acabaria por transmitir ao primitivo marnoto alienígena, nos cristais que extraía da água marinha, por virtude de intrínsecos predicados transcendentes, lucidez e sabedoria. E, através desta, por conferir-lhe moderação nos eventuais golpes lampejantes do chiste ou do faceto sarcasmo, e, em identidade com o agente estimulador, a congregação numa cordialidade fraterna. / 38 /

O sal, porventura, conjuga uma dupla personalidade, como os homens que normalmente patenteiam uma certa feição à flor da pele e não logram refolhar a que lhes emana dos esconsos, latente ou latejante, imanente ou em sub-reptícia actuação constante que se instila, e domina, e comanda. Como um leme desproporcionadamente minúsculo em relação à nau transoceânica que, com um curto desvio de ângulo, lhe altera o rumo.

O sal, a par das virtudes mágicas de que imbui, pode atrair e ser veículo de augúrios malfazejos e reais malefícios, pela prática de intencional malquerença despertadas. E, em contraste, admite seus ritos propiciatórios, que dele anulem as potencialidades deletérias.

A existência de salinas implica a óbvia existência de quem as amanhasse. O sal, para cristalizar à luz solar na calidez dos dias estivais, com as brisas do Atlântico – ainda então não domado pelos nautas lusos – ou os ventos dissecantes da Meseta, e, para na tremonha cintilar como os diamantes, necessitava de que os homens o lavrassem com saber, método e pertinácia, e quase o lapidassem à maneira de joalheiros. Como as pérolas que precisam de uma ostra, e um grão de areia catalizador dentro dela, que as gere, e pacientemente lhes dê forma, e, inspiradamente, o tom de beleza singular.

Antes que as químicas inventassem processos rigorosos de análise, os salineiros (que chegaram a Aveiro não se sabe ao certo de onde, nem como, e lhe deram o nome e nela se integraram), no tacto e nas papilas gustativas se afinaram. Apuraram-se para deslindar as percentagens convenientes, quer para a saúde própria e de semelhante, quer para outras habituais utilizações do sal, dos sódios pretendidos e dos magnésios nefastos, e para, pelo refinamento de um paladar de apurados provadores e da sensibilidade táctil, conferir à água, submetida a evaporações sucessivas, os doseamentos exactos.

Aveiro, terá então exercido a primeira influência e mutação no homem rude descido da serra pelos caminhos que o Vouga lhe inculcara.

Ignora-se, salvo Rómulo, o fratricida de Remo, que a loba dos bons fados amamentou para a criação de Roma, ou outros casos comparáveis, quem fundou essas terras antigas que não tiveram um nascimento predestinado e patrocinado pelos deuses.

A terra escreve ela própria, em si mesma, a sua história, hora a hora, para lhe podermos ler, ou soletrar, os sumários de séculos ou milénios de decorrências. Porque nós, mesmo com os nossos penetrantes e potentes meios modernos, não lhe alcançamos o pormenor dessa escrita de caracteres extremamente difusos, e infindos, momento a momento acumulados. Mas tem, incontestável, a sua história exacta, em que o próprio remexer representa um mero episódico, epidérmico embora, mas que fica inscrito.

O homem, esse, deixou lacunas imensas, no trânsito das gerações, nessas épocas longínquas em que quase apenas o conhecimento era de outiva, e só oralmente se transmitia o dia o dia e o pretérito.

E, aqui, neste solo de aluvião, congregado com matérias desagregadas que os caudais de água carrearam, e nos quais as próprias areias do mar terão sido obstáculo bastante para lhes determinar o depósito e a sedimentação, aqui, o homem não brotou, espontâneo, como as algas. Não há um «homem vacuense», como há um «homo taganus», por exemplo.

Veio de algures, descido da serra ou pelas rotas marítimas, sem passaporte, nem carta de chamada – nem registo de entrada que persistisse.

A terra era branda como uma alcatifa, ou areia fulva e ainda movediça. Carecia de pedras perduráveis onde insculpisse alguma memória, e as próprias pegadas, que se afundavam no solo inconsistente, mais maleável e fluido que o barro de mais provecta sedimentação, a formação aluvionar, ininterrompida, as apagava. E as toscas moradias, de torrão e cobertas de colmo, frágeis e de perecíveis materiais, o tempo as desfez e lhes apagou o rasto.

Se bem procurarmos a identificação da gente alienígena ao meia lagunar, de progressivos assoreamentos, e em crescença sucessiva com a invasão de novos materiais desagregados, e de chão fofo e dócil, talvez encontremos uma razão plausível de ecologia humana para a fixação dos primeiros povoadores do ermo adaptado.

Os pés que entram nesse solo com um homem a pesar-lhes por cima, como que se afundam. No chão de lodo, como captadoras antenas ao invés, recebendo uma mensagem. De algum modo, serão raízes e sorverão o húmus, virgem de humanos rastros. E a partir do que se embebem originarão seivas de adaptação e identificação.

Os pés apegam-se, e com eles os homens que neles se apeiam, e, com os homens, as almas dos homens.

E sempre um esforço se exige para do lodo os retirar. Ainda quando a água abunda, e lava e escarola, por um qualquer lapso de tempo se verificou uma adesão e uma osmose, uma penetração germinadora, um apegar, – um ficar da terra.

Aliás, os espíritos também de algum modo se assemelham ao barro e também se amoldam. E, com determinantes comuns, terão sido para eles congéneres os efeitos, na circunstância em foco.

Os homens que, como o Vouga, e, na sua senda insinuadora, aqui desaguaram, ou aportaram nesta / 39 / Mesopotâmia atlântica, rasa mas abrigada no mediterrâneo plácido, ou provindos de mares bravios da Flandres – tanto ou mais que «o bravo mar da Costa Nova» que por meados do século dezanove ficaria na retentiva de Eça de Queirós como termo de comparação –, dos lendários viquingues – que nos teriam deixado elementos de mestiçagem para esses espécimes superlativamente elegantes, ambíguos na arquitectura naval, chamados «moliceiros», e que começam a rarear neste capricho da Natureza que é a Ria – esses homens, fundadores mas alienígenas, enterraram os pés. Enterraram-nos e prenderam-se à terra. Colaram-se à terra, como esta se lhes apegou aos pés, descalços e permeáveis.

O que é menos coeso e duro, penetra-se sem violência. Como que afaga, e abraça, e vincula.

Na terra de ao rez da água, o peixe mais que desafia, oferece-se ao mero lançamento de qualquer tosca rede – a uma qualquer incipiente rede que imediatamente suceda à palma da mão que recolhe, enquanto a água se escoa por entre os dedos semicerrados.

E a luz vibrante, que o espelho da água empoaIhadora, de gotículas lenticulares, superlativa, potencializadora, empolga como uma hossana, como um hino de alegria e exaltação.

Ela, a terra rasa, é como a mão – que terra e mão simbioticamente se influenciam – espalmada, e como ela aberta. Mostra certas linhas cambiadas em veios de água, com também a sua quiromancia, a prenunciarem o futuro. A terra, na horizontalidade desabafada de obstáculos, é, na luminosidade fulgurante que a exalta, o espiritualizador cantochão da paisagem.

O homem da serra, que no agro ribeirinho, embebido de humidade e dócil, brande a enxada com economia de esforço e, agora, aprendiz das fainas da salinagem – provavelmente de didáctica árabe, na tecnologia que permaneceu com mínimo aperfeiçoamento até aos nossos dias celeremente evolutivos – encontrou-se sem limitações de horizontes. E, naturalmente, sem ecos para suas rogações nas emergências angustiosas, e para as imprecações bramadas.

O rumor do mar e o espaço sem entraves deixam descarregar iras, expandir alegrias, elevar preces, cantar e gritar, mas os sons esvaem-se, alargam-se, diminuídos de intensidade, em ondulações de cada vez mais largo diâmetro e mais suave curvatura e não regressam. Não teimam, não perduram. Não encontram obstáculos a repercutir as vozes – nem a limitar as vistas.

Não sofreram, esses homens recém-vindos, a persuasão insinuante dos ecos insistentes e infiltrantes, que instilam a perseverança e a inabalabilidade. O berro, a diatribe, a própria oração, sem nada que os devolvesse, amorteciam no espaço desabafado, e extinguiam-se.

O ambiente que aliás forçará à luta constante, é antagónico com a obsessão contumaz.

Areja e abre. Volubiliza, porventura, porque a terra é mole, e a água fluida, e a luz como que uma imaterialização em contínua instabilidade.

E o homem fala, e brama, e roga, mas, porque a voz não reverte, não toma as palavras, e as ideias e sentimentos que elas traduzem, perpétuas como as Escrituras. Não encontra no eco uma confirmação, e propende, humildemente, para a convicção de que, na livre natureza sem peias, a expansão do espírito constitui uma constante e o estaticismo é um contra-senso.

Não cabem neste volitar, nem o meu cabedal os contém, aprofundamentos. Não topamos, no âmbito a que me confino, vestígios pré ou proto-históricos que nos habilitem a considerar um homem, digamos, autóctone, e a caracterizá-lo.

Aliás, a formação de Aveiro e do seu redor, porque o recorte reconhecido da sua costa o evidencia, é por demais recente para remontarmos a tão transactas eras.

Tomando mesmo de barato que pré-celtas ou celtas, ou lusitanos celtizados tenham descido dos Hermínios, ou da região que os circunda, curiosos, perscrutadores – e de que um outro elemento neolítico que nos haja surdido em prospecções efectuadas no nosso derredor nos atestem a existência de vida humana nessas longínquas épocas – esses núcleos só muito dubitativamente se poderão tomar como o substrato da população aveirense.

A gente de Aveiro não tem significado etnológico próprio. Resulta de um afluxo, provindo de diversos quadrantes, e de uma mescla. A dolicocefalia dominante não passa de uma característica geral do país e das raças – se é legítimo empregar este termo tão indefinido quanto à espécie humana – que na região estanciaram com maior ou menor permanência.

Das gentes que povoam o Baixo Vouga – e com maioria de razão Aveiro, seu centro principal e mais aberto à confluência de migrantes, por via terrestre e marítima – escreveu lucidamente Jaime de Magalhães Lima: «Etnicamente serão uma farmácia, copiosamente provida de símplices, nem um só dos quais poderá já encontrar-se claramente estremado e dominante, tão antiga é a série de composições e reacções em que anda diluído. Não há lugarejo onde não se achem amalgamadas as raças vindas dos quatro ventos da Europa, sem dúvida entremeadas de nutridas brisas de África». (1)

O citado pensador aveirense, numa sedutora incursão pelos domínios da etnologia, mais intuitiva que científica, mas recheada de válidas sugestões, pretende que / 40 / «dois e só dois caudais de diferente cor e diversa substância alimentam essas multidões (as que povoam o Baixo Vouga): tem um a veia mãe em Ílhavo, e o outro na Murtosa».

Aos primeiros, da Ílhavo marinheira, atribui como proveniência «os mareantes que vieram do sul e aprenderam cedo o caminho de tão vasto abrigo», como era, a constituir-se ainda, e sempre em evolução – que vimos procurando incessantemente orientar em nosso proveito – esta «larga baía aberta ao mar pelo poente e resguardada por montes altos de nascente».

Nos da Murtosa e sua ampla esfera de penetração considerou os mareantes que arribaram do Norte. E, doseando-lhes os cruzamentos ambivalentes, acrescentava-lhes «a visita de um ou outro raro vagabundo que desceu das montanhas e se quedou nas praias, seduzido pelos regalos e riquezas das cidades».

Aceite-se que, na base de certas predominâncias de características da gente a ter propriamente como de Aveiro, a estatura e o porte, a musicalidade da fala e certas propensões estejam em parcela influente esses dois meios de mais transcorrente caudal, e a sua junção e caldeamento. Aceite-se, com alguma reserva. Nem o ílhavo tem pegadas mais remotas na terra onde se radicou, nem, em épocas recuadas, excedentes que se disseminem por toda a região que começava a ter algum, ainda que modesto, significado de geografia física, mas também humana. Na velha muralha do Infante D. Pedro – o esclarecido e estimulador donatário quatrocentista de Aveiro – a preferencial designação de porta de Vagos a uma das entradas na já predominante vila comercial marítima, indica uma supremacia sobre Ílhavo. Aliás, ainda em meados do século passado, se discutia, ao pensar-se na extinção de um dos concelhos, qual das respectivas sedes dispunha de mais convincentes condições para a manutenção.

Outro tanto se poderá observar no que respeita à Murtosa, de formação geológica idêntica à aveirense, e, mesmo não sendo contemporânea desta, de pouco antes de certo na constituição de um aglomerado que se difunda e dê semeadura fertilizadora de outros chãos recém-surdidos, a terá precedida.

Aceitem-se, todavia, essas duas correntes factoriais, se não com predominância de evidência incisiva, como agentes – talvez, mais exactamente, com influência recíproca – determinadores, em considerável parcela.

Mas o aveirense – aquele que virá a ser susceptível como que de uma abstracção de paradigmático significado simbólico – constituir-se-ia através de mais complexa miscigenação.

Um porto de mar, e por via dele a atracção de possibilidades artesanais e mercantis – como, não obstante a sua tese, o insigne escritor aveirense, não deixou de considerar – foram sucessivamente criando pescadores e mareantes – de que seriam uma prova a importante confraria, de feição corporativa, em que se agrupavam já pelo século XIV, sob a égide de Nossa Senhora da Alegria – e uma pequena burguesia de mercadores operosos. Estes, quando não provindos deliberadamente para exercer um mister já experimentado, de outras paragens, emanariam, pela propiciação complexiva de novas condições, daquelas profissões e dos próprios marnotos.

Encontramos, pois, as profissões marítimas agrupadas na sua corporação – ou o que o mesmo é, na sua confraria – no século XIV, com sua sede na Capela de Nossa Senhora da Alegria, ainda subsistente, mas que nós nos esquecemos de proteger com o desvelo devido não só como uma relíquia histórica, mas como um documento vivo da nossa evolução social e económica.

Nos tempos em que ainda nem Fernão Vaz de Agonide teria a piedosa e benemérita magnanimidade de criar a Albergaria de S. Brás, (2) nem mesmo existia hospital público – pois só muito mais tarde, em meados do século XVI, como é sabido, se fundaria a Misericórdia – os nautas aveirenses, pilotos das naus e caravelas que desvendaram mares desconhecidos e comerciaram com portos nacionais e estrangeiros – e os pescadores, que haviam sido dos primeiros a frequentar os pesqueiros de bacalhau da Terra Nova, graças à experiência aqui alcançada – mantinham já o seu hospital privativo.

Colocaram-no sob o patrocínio de Nossa Senhora da Graça, na chamada capela – há tanto desaparecida como tantos dos nossos marcos mais representativos de Nossa Senhora da Graça do Hospital, não está apurado se então erguida, se preexistente à obra de assistência, predecessora concludente da mutualidade dos nossos dias.

A gente separa-se. Separa-a a Ribeira e o seu prolongamento para o esteiro das Azenhas – que ainda não se enfeitavam com a obsessiva e desajustada maqueação de paradigmáticas e pretensiosas similitudes venezianas, e, assim, com a talvez mais eufónica, mas também mais prosapiosa e mais generalizadamente inexpressiva de canais.

Separam-na e unem-na. Dividem-na e constituem um traço de união.

De um lado, intramuralhas, dentro dos espessos muros que o Infante D. Pedro tomara a iniciativa de erguer para afrontar algum eventual invasor e os vindouros tempos – e os tempos, e os homens, não obstante a solidez que lhes conferiu demonstraram no seu desaparecimento quanto as obras materiais são efémeras –, de um lado, dizíamos, viviam as gentes principais. Habitavam nobres, a cleresia numerosa da matriz de S. Miguel, os que à sombra de uns e outros subsistiam, e, ao derredor, os primitivos oleiros, e, ainda, / 41 / num desvão, entre as portas da Vila e as de Vagos, insulados na segregação que na época se lhes impunha, os judeus, que as potencialidades mercantes solicitavam.

Para além da outra margem da Ribeira – hoje chamada Canal Central – lentamente ia surgindo a Vila Nova, com a gente entregue às actividades do mar ou da laguna, à construção naval que aquelas exigiam, às fainas do fabrico e reparação de redes e outros apetrechos náuticos.

Da nítida diferenciação de estilos de vida e concomitantes gradações sociais, que não apenas dessa como que fronteira natural formada pelo veio de água, se terá estabelecido, numa dualidade que não implica restringimentos de unidade no comum e essencial, a distinção, dos apodos que uns a outros se jogariam, em propósitos mais gracejadores que pejorativos, de cagaréus e ceboleiros.

Aliás, a prevalência generalizada a todos os aveirenses da primeira das duas alcunhas constituíra demonstração da unidade bipartida, que nem a constituição de quatro freguesias na segunda metade do século de quinhentos, pelo bispo D. João Soares – consagrando o desenvolvimento da então vila, florescente e de mais de uma dúzia de milhares de habitantes – alteraria.

Socorro-me de Rocha e Cunha, a quem se ficaram devendo os mais meticulosos e reveladores estudos sobre a história de Aveiro. O esclarecido e benemérito aveirense observa que a constituição do cordão litoral, formando a laguna, e com ela um magnífico porto «criara no litoral de Aveiro condições de prosperidade e, concomitantemente, determinara o início do declínio dos portos do norte» (3). Do norte do país, entenda-se.

Naquela época, como se verifica do documento que subdivide a primitiva e única freguesia de S. Miguel em mais três, a vila conta numerosos comerciantes estrangeiros – ingleses e flamengos na maioria. Plenamente o justificava o intenso e ininterrupto movimento do porto, e constituía um novo factor para imbricar a genealogia do aveirense.

Entretanto surgia e aumentava, com as possibilidades que o porto proporcionava uma burguesia marítima e mercante, já, digamos, autóctone – que, nesta altura, com todos os caldeamentos verificados e numa fixação perdurável, o termo toma propriedade de acepção – já por novos afluxos de gente tentada pelas perspectivas económicas aliciadoras.

O mesmo ponderado e consciencioso autor qualifica essa burguesia em progressão numérica e de crescente importância, como «activa, inteligente, cheia de iniciativa, conhecedora de técnica comercial pela experiência de gerações, em contacto directo com o comércio estrangeiro e por via dele com civilizações mais adiantadas». (4)

Completa um concludente quadro das forças produtoras aveirenses desses tempos «com mareantes e pescadores arrojados, experimentados marnotos, construtores navais peritos na arte, profissionais de todos os ofícios subsidiários das construções e armamentos marítimos, artífices de ofícios indispensáveis à vida urbana, o pequeno comerciante intermediário, enfim, todos os elementos componentes de uma população intensamente laboriosa». (5)

E, se a vila concentrara o seu esforço nos trabalhos e tráfico do mar, a «actividade agrícola da região circunvizinha, alargando a capacidade de compra – e, certamente, fornecendo a sua quota parte para o aumento da população de Aveiro – prestava sólida colaboração à actividade mercantil». (6)

Dessa colaboração, cessada com as crises da barra – sobrevindas a partir de 1575 – traduzir-se-ia em mais imbricadas mesclas, a que um carácter dominante de integração conferiria, com o renovo de sangue e introdução de genes, os mais díspares, como que uma especificidade comunitária aveirense.

No cadinho de mil ingredientes, no rodar do tempo, o homem de Aveiro foi tomando feição para um certo modo de viver em sociedade, e a sua forma de solidariedade, as suas usanças próprias, os seus gostos peculiares – e até umas particulares características físicas que diferenciavam o homem de Aveiro – o homem e não menos a mulher, tricana ou salineira entre os dois espécimes, porventura, mais extremados e identificáveis do ílhavo ou do murtoseiro.

No aveirense, já de cepa local, os traços seriam menos evidenciados do que naqueles, como em todas as médias, onde todas as agudezas se esbatem, e, mais temperado por outros cruzamentos, a que estava notoriamente mais aberto, e mais polido pelas circunstâncias de meio daí mesmo resultantes, quando não somaticamente, na maneira de estar no mundo e enfrentá-lo.

Nas vicissitudes calamitosas que a vila experimentou, e lhe reduziriam, em dois séculos, o número de habitantes a cerca de uma quarta parte, permaneceram, não os nobres, nem os burgueses abastados, mas aqueles que mais estavam, apesar das condições pouco propícias especialmente para eles, estreitamente ligados às fainas da laguna, então safara e insalubre. Ficou o povo estreme, o que fundamentalmente constituiria o que Homem Cristo considerava, dando ao termo extensão despida de rigor científico, mas indiscutivelmente expressiva, a «raça nativa de Aveiro».

Sigamo-lo, no seu incisivo e inconfundível estilo de panfletário desprezador de eufemismos: «...os ínfimos do povo – reportava-se aos meados do século passado – que restavam da inteligente e forte população do período áureo da vila, ficaram limitados à missão / 42 / – e vamos que era honrosa – de perpetuar a beleza tradicional da raça, especialmente a das mulheres, que em todos os tempos fora memorável». (7)

Confronta-os mesmo com os que haviam arribado a Aveiro nos começos do ressurgimento consequente à abertura da Barra Nova, em 1809, por Luís Gomes de Carvalho – os «arribistas» como os apoda, no seu pendor de etiquetar com alcunhas. E comenta, com aquele proverbial modo desembaraçado de quem diz as coisas pelos nomes mais expressivos, e sem papas na língua: «...esses adventícios, além de brutos, eram feios /.../ verdadeiros ursos, e da mesma forma as mulheres, perfeitas pandorcas – ainda conheci algumas – que os acompanhavam».

Descontemos o exagero para relevar o facto concreto.

E, sem elementos antropométricos, sem mensurações ou índices deliberada e cuidadosamente obtidos para comprovar a asserção do penetrante observador, não podemos deixar de tomar como evidente um certo tipo genérico de aveirense. Ou talvez dois: um predominantemente semelhável ao homem mediterrânico, de tez tisnada, olhos mais escuros e cabelos negros; e outro, mais frequente no Alboi, onde houve uma Rua dos Ingleses, de feição aloirada, pele mais clara e rosada, olhos azuis ou verdes claros.

Abono-me ainda com o depoimento de um escritor de ascendência e coração aveirenses, Luís de Magalhães, numa página das mais belas e exactas, imprescindível em qualquer antologia sobre a paisagem, os costumes e a gente de Aveiro. Aí aponta os barqueiros, não apenas pela sua agilidade, mas pela sua «nobre esbelteza de Iinhas». Fixa-os na sua descrição, «erectos e firmes sobre a proa do barco, no movimento de lançar a vara, esses homens parecem de longe, nos seus trajos brancos, serenas estátuas de mármore, correndo sobre a borda, a percha contra o peito, o tórax saliente, os rins violentamente dobrados, toda a rija musculatura das pernas contraída em relevos poderosos». E acrescenta: «...oferecem por vezes aos nossos olhos essas linhas admiráveis em que o cinzel helénico fixou, como um cânone imortal, toda a estética do nobre esforço humano». (8)

As tricanas – que o polemista famoso de «O Povo de Aveiro», medularmente aveirense, mesmo quando nos seus arrebatamentos acerbamente criticava, por amor dela, a sua terra, classificou, reportando-se à sua infância, pela formosura decantada, de «lendárias» – o romancista de «O Brasileiro Soares», enaltece-as em expressivos termos, que lhes fixam a gracilidade e o quase patrício porte.

Viu-as e descreveu-as «graciosas, de uma elegância magra e nervosa, marchando num ritmo curto e ligeiro sobre as pontas das minúsculas e agudas chinelas, e todas esguias em seus longos xailes caídos, e nas suas longas e compridas saias, que se lhes colam à linha fina das pernas, como as roupagens de estatuetas de Tanagras».

São hoje uma recordação de revivescência circunstancial preparada com finalidades de folclórico retrospecto, essas tricanas prestigiadoras, expoente aveirense de beleza feminina. Desapareceram os seus xailes, a seguir às postergadas mantilhas do século XIX. Foram abandonadas as chinelas, que, com requintes de elegante equilíbrio, em ritmos de leveza alada, moviam, apenas sustidas nas pontas dos dedos dos pés, levitantes e lestos.

As tricanas diluíram-se na massa uniforme das raparigas, todas iguais de indumentária e de predilecções e estilo de vida na incaracterização do nosso tempo. O próprio sangue na tricana, especificadamente aveirense, e a distinção do porte que constituía um dos seus mais evidentes atributos, sofreram novas mesclas medianizadoras, destipificantes, peculiares aos nossos dias, em que o mundo todo tende a tornar-se a terra de toda a gente, tão rapidamente se difundem e interpenetram, e uniformizam os costumes e as causas que as determinam, com as facilidades de comunicações e dos múltiplos motivos de sugestão generalizados e das mudanças das infixas residências.

Volvamos, todavia, aos barqueiros, que seriam os ascendentes daqueles que, um quarto de século mais tarde surpreende na sugestiva plenitude da faina e descreve, dinamizados, em todo o vigor plástico, como um cinzelador, o poeta Eugénio de Castro: (9) «...Não se cansavam os meus olhos de admirar a elegância nervosa e máscula dos barqueiros, que, tendo por vestuário a camisa e as manaias apenas, curvados para a frente, retesando as pernas e fazendo prodígios de equilíbrio, fincavam valentemente na areia a extremidade inferior de uma longa vara e amparavam a superior com uma elegância carinhosa de abraço, nela aplicando ao mesmo tempo a pressão hercúlea dos seus peitos acobreados».

E também ele é suscitado pelas reminiscências de paradigmáticas obras de escultura: «O ímpeto dessa atitude fez passar no meu espírito a imagem da famosa estátua que se vê no Louvre e representa um gladiador combatendo, estátua em que o seu autor maravilhosamente fixou no mármore a atitude violenta e instantânea de um belo corpo de homem».

O filho de José Estêvão exprimiria as suas impressões em equivalentes termos de realce e estabeleceria um cotejo contrastante: «Se o homem propriamente da água, o pescador, o marnoto, o mercantel, tem, assim, a elegância flexuosa de um tritão, o barqueiro – lavrador, gafanhão ou mirão, talvez, oriundo da Beira e descido das suas montanhas em demanda de terras melhores, / 43 / ostenta, ao contrário, a maciça e tosca rudeza de um sátiro. É pesado, lento, desgracioso, de feições vulgares e incaracterísticas». (10)

Observe-se, num parêntesis, que, em três quartos de século, a evolução foi muito profunda, e a apontada diferenciação, rigorosa na época em que escreveu o autor do poema «D. Sebastião» – Luís Bandarra lhe chamaram, por esse motivo, Eça de Queirós e outros insignes amigos e homens de letras – diluiu-se com o tempo e as consequências promocionais do extraordinário caso de colonização interna espontâneo que na Gafanha se verificou.

Nestes três últimos quartéis, por influência de uma mesologia geo-social em progressiva evolução, num local sáfaro (com o esforço do braço humano e o infiltrar do suor que por via dele brota, transformado e enriquecido através de enlaces sucessivos), e novos afluxos para novas profissões, tendo como ponto de partida e mola de empreendimento as actividades marinheiras e piscatórias exercidas preliminarmente e, em chão firme, dia a dia mais consistente, a terra, e com ela a gente, tomaram novos aspectos. E na transposição de características, promocionária e limadora de rudezas, verificaram-se os efeitos dessingularizantes.

O gafanhão – ou, talvez, de preferência o gafanhense, porque o gafanhão, no sentido sócio-antropológico que se lhe atribuía de tipo humano regional menos evoluído, praticamente é hoje infundamentado – pode considerar-se indiferenciado, ou pouco menos, do aveirense ou do ílhavo, em cujo alfoz jurisdicional e económico se sateliza. Aliás, esses mesmos, propendem também, e cada vez mais aceleradamente, para uniformidade que os vem a confundir – no aspecto somático, no cantar da fala que afina pelos diapasões generalizados, nos trajes e costumes pré-universalizados, nos gostos que se imbuem, paralelamente, cada vez mais do estandardizado padrão unímodo, prefabricado e contagiante.

A seu turno, às tricanas, raparigas do povo – no intermédio do estreme dele e das classes burguesa e, ora pela sua gentileza a estas ascendendo, ora, com a idade e consequente perda de gracilidade e mais predicados para a superação, revertendo ao genuíno povo de onde provinham – a essas lhes cantaram, em uníssono, a distinção, a quase patrícia e deslumbrante gentileza, como um dom e um atributo, os nossos escritores e os estranhos.

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Os citados e, por exemplo, Tomás de Carvalho, lente de medicina e homem de letras, ainda ao dobrar para a segunda metade do transacto século de oitocentos, quando chama a Aveiro «Paris Descalço» e nesse símile gradativo as situa como factor primacial. «Esse tipo imortal da beleza feminina» é o qualificador que atribui à tricana de Aveiro, e a cuja formosura considera inexcedida no país. Descreve-a com superlativa admiração de «olhos vivos, alegres e travessos, dentes de uma alvura de jaspe, incomparáveis; feições regularíssimas, o corpo estatuário. A tricana é positivamente um enxerto da Geórgia ou da Circássia».

Salineira e tricana – duas feições do mesmo tipo de beleza feminina.

E relevava-lhe os dons que a tornariam famosa: «Agora acrescentai, que, com quanto de uma vida dura e cortada de trabalho, o seu trato é por extremo polido e delicado, as maneiras palacianas, o conversar finíssimo e espirituoso – A tricana é o enlevo dos olhos –. Isto vem da raça». (11)

A todos excedendo na devoção de aveirismo exalçante, Alberto Souto tornou-a um cartaz das mais intrínsecas e significativas peculiaridades etnográficas, pela palavra escrita e falada, que aprimoradamente cultivava, e trazendo-a à ribalta em retrospectivos desfiles.

Esses barqueiros, que os escritores estetas compararam a esculturas gregas, eram os mordomos das Entregas dos Ramos e das procissões inultrapassáveis de aprumo e pompa. Os que na borda dos mercantéis tomavam as plásticas atitudes das estátuas dos mais perfeitos cânones com que os confrontaram, e na indumentária das horas de gala, com calções, meias altas de seda e sapatos reluzentes de fivela de prata, com fato impoluto e de impecável linha, prestavam culto ao orago das festividades tradicionais com a compostura de palacianos.

E, todavia, reverentes sem contumélias nem subserviências, em digna e espontânea vertical idade – a dos mastros das embarcações que governavam e as varas dos pálios – e erectos sem empertigamento.

Descendiam, aliás, directamente, dos que não haviam acompanhado o êxodo determinado pelas críticas contingências da barra e pela penúria delas resultante.

Esses, a par dos mareantes, que simbolizamos em João Afonso de Aveiro, e simultaneamente com os que se consagraram às actividades do tráfego comercial haviam recebido influxos de civilizações diferentes e beneficiado de uma maior soma emancipante de liberdades. Como lucidamente observou Rocha e Cunha, a importância social adquirida pela burguesia marítima assegurava-lho, do mesmo passo que havia «multiplicado as actividades e criara (nos séculos pretéritos) desafogo e conforto» e, assim, tornara as veias marítimas centros de aspiração das populações rurais, que sofriam uma vida dura de trabalho, servidão e privações.

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A tricana é o «enlevo dos olhos».

As tendências liberais do povo aveirense enraízam nessas épocas e firmaram-se, com as mesmas seivas então sorvidas. O espírito insubserviente, cordato sem doblez, intrinsecamente insubmisso, mesmo que refreado nas exteriorizações, cioso da sua independência e dos seus direitos de cidadania proveio da burguesia emergida do povo, e ao povo se transmitirá. / 44 /

Quando um dia os intérpretes dos sentimentos da comunidade na missão de liderança ou os mentores surgem para a luta, encontram, predisposto, quem os acompanhe, no povo estreme, num povo que é, em toda a extensão, um somatório de homens, com consciência e vontade.

Que, perpassando, numa fugaz evocação algumas das figuras aveirenses de maior evidência, deparam-se-nos umas quantas das de maior projecção e representatividade que se não acomodavam aos ambientes coetâneos, aos costumes em voga, às ideias dominantes, às regras cívicas ou políticas consideradas convenientes para não abalar a quietude da apaziguante estagnação.

Por um outro traço, esta ou aquela atitude ao arrepio das tendências e hábitos prevalecentes, pela independência de pensar e proceder, tinham o ousio de dissentir. E, divergindo, a virtude de serem mais efectivamente prestadios ao comum. Não se poderão, nesse sentido apontar todos os de maior evidência como homens estritamente do povo, na rigorosa acepção do termo. Mas podem incluir-se alguns que não pertençam propriamente a essa escala social nos que, num breve relance se podem apontar como expoentes da colectividade aveirense genuína, produtos do meio ou nele integrados, e por ele tomados como inspiradores e paladinos.

Há, decerto, entre os aveirenses nossos maiores os que afinam pelo diapasão e compasso dos que regem a governação e o pensamento, e, solistas embora, participam no coro geral. / 45 /

Assim, por exemplo, Aires Barbosa, o «Mestre Grego» por antonomásia, lente e lustre da Universidade de Salamanca, preceptor de príncipes. Apegara-se conservadoramente às ideias, digamos, oficiais do tempo, que sofriam as primeiras fendas. Esse mesmo, todavia, para defender o imobilismo do pensamento radicado, sai à liça e quebra lanças. Não se cala, reponta. Não deixa correr, aperta os freios e pospõe obstáculos, que suporá irremovíveis, às novas correntes desgarradas. É do seu tempo, integralmente, e não vislumbra o futuro de que apontam os arrebois, mas corre como que uma cortina para não ver, nem deixar que se veja uma nova aurora, com novas luzes mais cintilantes.

Já no Padre Fernão de Oliveira (ou Fernando de Oliveira, como alguns autores preferem chamar-lhe), o homem que primeiro codifica em letra de forma a linguagem portuguesa; não só o nosso primeiro gramático (1536), mas quem pela primeira vez, segundo tudo faz crer, estabelece em vernáculo as normas técnicas de construção naval – com o seu «Livro da Fábrica das Naus» – e as da «Arte da Guerra no Mar», na qual lhe cabe também o primado cronológico, e não apenas o rasgo de algumas ideias inovadoras mas a penetração de percursor de outras adoptadas em nossos tempos –; esse vulto a que não tem sido dada a merecida posição, pelos apontados apanágios, supor-se-ia um homem de regra estrita. Imaginar-se-ia um homem de medida, de horário, de rigores de disciplina e era um irrequieto, multímodo e versátil nos seus gostos predilectos.

Nautógrafo meticuloso, pioneiro nessa como nas apontadas e díspares especialidades em que se mostra penetrante e douto, foi como, expressivamente o retratou o seu mais aprofundado biógrafo: (12) «Filólogo como João de Barros, aventureiro como Fernão Mendes Pinto, perseguido pela Inquisição como Damião de Góis, navegador como D. João de Castro, porventura o único dos escritores de arquitectura naval do seu tempo e do seu país, ele tem além disso para recomendá-lo à consideração da posteridade uma vida tão cortada de peripécias, que constitui um verdadeiro romance. Foi clérigo e foi soldado, foi marinheiro e foi diplomata, esteve prisioneiro em mãos de ingleses e em mãos de turcos, gemeu nos cárceres do Santo Ofício, teve relações com homens eminentes do seu século...»

Para além de todas essas facetas, teria alguma vez enveredado pela espionagem. Permeável a heterodoxias, não se peja, sacerdote que é, de trajar como os leigos e, para maior escândalo e transviação, como a inglesia dissidente.

Não alinhava, nem tinha relego na língua. Aos próprios inquisidores incomplacentes, que o chamaram a prestar contas de imprudentes escorregadelas suspeitas de heresia, e o tiveram a aboborar as ideias nos cárceres onde punham de molho e amoleciam os entendimentos tresvariados e empedernidos, respondia com cauta e calculada moderação, mas algumas vezes sem ladeantes subterfúgios e acutângulo.

Observa-lhe e realça-lhe esse traço de temperamento o autor atrás citado: (13) «O carácter irrequieto e pouco maleável de Fernando de Oliveira /.../ afigura-se incompatível e duplicidades a que obriga a profissão de espia. Veremos com efeito em vários pontos da sua vida, e sobretudo no processo inquisitorial, provas de uma franqueza quase temerária nas circunstâncias realmente ameaçadoras que atravessava. Nas próprias obras de erudito clérigo, destaca-se a cada passo o propósito firme de dizer a verdade a respeito de tudo e contra quem quer que seja».

Outro aveirense – cavaleiro «talabrico-Iusitanus» se diz ele, no abrir de um chorrilho de honrosíssimos títulos com que acompanha o nome na portada da sua «Mineralogy», a quem um dos seus biógrafos, revalorizador do seu nome injustamente deslenderado, chamou «um trabalho beneditino», frisando que o elaborou, sem pensar em auxílio ou remuneração ou mais exactamente, para se servir da própria prosa do biografado, «With hopes either of a pecuniary or even honorary nature» – podemos, para a circunstância, relevar. / 46 /

E afirmava-se, daquele modo, aveirense, numa obra escrita e publicada em Inglaterra e para correr mundo, mais de meio século depois de ter deixado a terra natal, e de arejar, e enriquecer incessantemente a bagagem científica nos meios europeus mais evoluídos e de certo para um homem de curiosidade aberta e ávida, mais apegadores e proveitosos – o cientista João Jacinto de Magalhães (14), a quem nos queremos referir.

Também era clérigo, entrado muito jovem para a congregação dos cónegos regrantes de Santo Agostinho. Mas, como a propósito de Frei Luís de Sousa, manifestava, ao prefaciar-lhe uma edição francesa da «Vida de Frei Bartolomeu dos Mártires, a sua fundamentada condenação pelo modo imadurecido com que se faziam os votos religiosos.

Ricardo Jorge, (15) no estudo biográfico que lhe dedica, observa que «não se lhe ajusta o hábito, e tanto aporfia pelo despir que da Cúria romana alcança breve de secularização; mudava o hábito de Agostinho pela batina vulgar, um pouco mais elástica. Mas a inquietação do seu espírito não se apazigua com a anulação dos votos e a troca de vestimenta; não se satisfez, enquanto não mudou de terra».

E retomando o mesmo mote, na evocação da profissão do mesmo Manuel de Sousa Coutinho, esse insigne mestre de medicina e prosador, acrescentava: «Treme neste trecho o cérebro rebelde que sentia sobre os lobos através do crânio a úlcera insanável da coroa aberta. Erguia-se dentro dele o espectro de Frei João de Nossa Senhora do Desterro. A batina, mesmo do «abbé» o apertava nas costuras, até que um dia de sufocado a rasgou, atirando os farrapos às urtigas da heresia». (16)

Do século de Verney ou Ribeiro Sanches, com quem manteve relações de amizade, que não apenas no âmbito da ciência, e do acerado Cavaleiro de Oliveira, como eles estrangeirado, não divorciado das humanidades, mas especialmente voltado aos nossos métodos e descobertas científicas, surde-nos também dissonante da massa monocórdica, de ideias e certezas que lhe bastavam.

E aparece (esse de quem Ricardo Jorge diria: «A tanto trabalhar, lutar e sofrer, pôs termo a redenção biológica da morte: /.../ o português desterrado, o neto de Magalhães, o frade de Aveiro, o académico cosmopolita, o físico experimentador, o naturalista consumado, o cientista ardente expirava sábia e santamente, longe e bem longe do cérebro e do coração da pátria») (17), nesse século XVIII em que Aveiro entra no pendor acelerado para a sua mais grave crise.

A vila – só lá para depois de passada a meia centúria setecentista erigida em cidade – atravessava, desde o século anterior, um período de desdita, de retrocesso indetível, de decadência desalentadora, e se bem que guardando as latentes energias ressurgidoras, entregava-se às preces, às procissões e penitências, às construções de novos templos. Ao mesmo tempo, porque de esperança mais forte, fidelidade mais firme e raízes mais fundas, nessa época, em que se roga do céu o que a terra nega, os que permaneceram criam tradições como as das Entregas dos Ramos, e, a par dos torneios da fidalgaria que resta e se exibe no Rossio de S. João em pomposos torneios de equitação, nalgum dia em que dominam os prolongados sentimentos de desdita, aprimoram as arruadas, mas agasalham-se nos gabões – como que um traje talar de remota inspiração monástica, de cultuação, nos costumes locais generalizados, ao primeiro berço.

Aveiro é para João Jacinto de Magalhães um meio demasiado sáfaro para os latentes anelos e propensões de dilatar e divulgar os conhecimentos, logo mesmo que desabrochantes: da Química moderna, que tivera como grande obreiro Lavoisier, com quem manteria contactos; das experiências de Volta ou de Priestley, ou dos mais famosos sábios do tempo, com quem se corresponde de igual para igual, de quem recebe e a quem fornece informações, dá conta de seus próprios trabalhos – e exerce, e recebe, e esclarecidamente a aceita, a crítica dos seus pares.

Não era homem propriamente do povo, mas, para lhe criar novas condições, na ciência e suas aplicações práticas trabalhou infatigavelmente, sem arrefecimento apesar das dificuldades de recursos com que se debateu, mormente nos finais da vida tão laboriosa e prestadia.

Se não era de origem popular, o sangue dos mareantes, dos desvendadores das decisivas rotas marítimas, de proveniência aveirense, e assim, de uma terra de onde saíram pilotos e outros nautas para darem a sua quota parte às tarefas dos descobrimentos, andava-lhe nas veias.

Este gentilhome portugais, «uma verdadeira celebridade, notabilizada e autenticada no mais alto meio científico do seu tempo» – sobrinho trineto do circum-navegador Fernão de Magalhães – não teria autêntico cerne aveirense, mas seria um expoente do espírito de Aveiro.

A terra natal, para as suas aspirações de saber e comunicar, com o sentido largo da universalidade da ciência, era mesquinho canto estiolador, mas o próprio país, quedo e satisfeito, na época, com a sua ignorância suficiente para a rotina, estreito de vistas e iniciativas, não correspondia às suas exigências intelectuais. Deixa o país, para o ilustrar. O país, aliás, a que nunca negou o seu contributo, mas que julga esterilizador e sem o mínimo de condições para desenvolver as suas actividades predilectas. / 47 /

Poderia mencionar, se não fosse despiciendo numa tribuna aveirense falar dos homens de 1828, Joaquim José de Queirós ou Gravito, Clemente de Morais ou José Henriques Ferreira, rebeldes por generosidade de ideais, e a gente humilde que os secundou.

E, depois, José Estêvão, o expoente maior das tendências do meio natal, estímulo e símbolo, figura tutelar-patrono cívico de Aveiro, como é costume chamar-lhe – campeão audaz e inquebrantável das regalias populares e do progresso da sua terra, orador insuperável e soldado intrépido, sempre na liça e na primeira fila. Com ele, na sua cola, gémeo nas ideias, nas lutas e nas contingências delas, Mendes Leite, o homem que fez vingar a abolição da pena de morte por crimes políticos, também precursor, também condenador do sediço e propugnador do pensamento novo.

E, mais para cá, poderia citar esse aveirense estranho, medular, quase patologicamente independente, Augusto Soromenho, que, de guarda-barreiras – como o designou Camilo quando se desavieram – chegou à cátedra universitária, eriçado de espinhos, que não poupava os próprios amigos a quem mais devesse se acaso cometiam algum ligeiro desvio do que tinha pelo recto caminho.

Esse aveirense com um quase doentio conceito de dignidade, que sobrepunha uma farisaica noção do dever às normas e inclinações de afecto e gratidão, rebarbativo e implacável na animosidade, interveniente nas famosas Conferências do Casino, como autor de uma delas, mostra-se em todo o sentido, o homem que não vai na corrente, que a ladeia ou defronta, nas ideias, e nos gostos, e nos actos, à custa mesmo dum azedume constante que o infelicite.

E, naturalmente, logo depois, e ainda acima, ressalta a alusão ao refilão-mor, o mais agreste dos fundibulários nacionais e, como, por exemplo, o qualificava Raul Brandão, «o maior jornalista português do seu tempo», o desmancha-prazeres sem contemplações, que dizia às escâncaras, sem papas na língua nem eufemismos o que os outros teimosamente cochichavam a furto, o derrubador de mal alicerçadas reputações, a voz mais colérica, que seguiu na esteira, e superlativou, até a extremos para que ninguém tinha fôlego para o acompanhar, o que está na tradição psicológica da gente da sua terra, à qual tão benemérita e devotadamente serviu – o panfletário Homem Cristo.

Foi o mais independente dos jornalistas portugueses da sua época de renhidas pugnas de Imprensa, que não só o mais ardoroso, e ao mesmo tempo – homem de Aveiro medularmente, esse singular homem de «O Povo de Aveiro»; foi o doutrinador e polemista mais transparentemente acessível ao povo, do qual se comprazia em dizer que provinha e a cuja promoção praticamente consagrou toda a sua vida de pelejador sem quartel.

E para referir apenas as figuras neste aspecto de identificação com o comum dos conterrâneos, poderei, citar, para finalizar, a própria padroeira, aveirense de adopção, na sua humildade, na sua renúncia aos esplendores da corte e prerrogativas de sangue, a Santa Joana Princesa que, a seu modo, foi inabalavelmente revel. A sua vinda para Aveiro, vila pobre e refece, segundo os qualificativos depreciativos da cronista da virtuosa vida da irmã do Príncipe Perfeito, significa uma vontade e uma atitude de liberdade de opção, de independência serena mas pertinaz, intransigente com a adversa vontade de dois reis – o pai e o irmão – e contra o declarado, quase peremptório parecer da população do reino. Este considerava a Infanta da corte, de acordo com os soberanos, e os conselheiros e áulicos, e os próprios prelados de melhor aviso, como ao reino vinculada, como reserva que assegurasse a continuidade dinástica.

Lutava, para realizar os seus anseios pessoais, a que tudo e todos procuravam impedi-la, postergando os direitos individuais a favor das eventuais necessidades do país, contra os próprios habitantes da vila de Aveiro, de que era donatária. Acima do que representava a sua presença, e as repercussões dela, de que podiam blasonar e beneficiar, e dos seus próprios conceitos de liberdade individual, situavam as conveniências da Nação. Verifica-se, assim, um caso flagrante de resistência às imposições, no voluntário enclausuramento cenobítico da filha do Rei Africano, da brandura que não quebra, e do triunfo da liberdade de cada um dispor do que é o seu direito pessoal.

Também a Princesa-Infanta, aveirense de adopção, que Aveiro estimava como a sua «Lisboa, a pequena», e de quem a gente de Aveiro tomou o patrocínio religioso, nessa recusa de anuir a ditames contrários à sua consciência, exprime e fortalece essa faceta do carácter da gente da terra onde se acolheu, e morreu, e é objecto de veneração.

Mas de rebeldia, com fins anti-rotineiros, de arejamento e objectivos de renovação construtiva é exemplo flagrante esta mesma prestimosa colectividade, este tão estremadamente aveirense Clube dos Galitos – sob cuja égide foram redigidas estas linhas e que nos sumaria e connosco, aveirenses, se identifica no que nos é comum de afeição e afeiçoamento à sua e nossa terra.

Nasceu de uma dissidência congregadora, aveirense a fazer Aveiro mais Aveiro, mais caracterizada e inspiradora de devoção, com elos novos e mais fortes, e enleadores, assente nas tradições e nos costumes e numa colectiva psicologia de uma gente / 48 / conscientemente livre, e que sem arrogâncias nem intolerâncias, nem excessos de temperamento, pode calar as tendências temporariamente, mas não abdica.

O Clube dos Galitos, que pode apontar-se como um exemplo de gregarismo prestante, nasceu da rebeldia contra a inacção, a incapacidade empreendedora ou a repetição até à saciedade das mesmas realizações insignificativas. Fez da cisão um aliciamento e da divisão um elemento unificador. Persiste e torna renovados e mais promissores alentos de propulsão. E não se substitui a nenhuma entidade nem a qualquer usurpa a função e a representatividade. Exerce a sua e tempera-nos as fibras do aveirismo escorreito.

E esse é o papel que a cada um e a todos os aveirenses compete desempenhar, nesta parcela do país e do mundo e a que mais fortes ou mais ténues laços os ligam.

O tempo das duas freguesias e das instituições rivais aos pares – clubes e bandas; corporações de bombeiros e irmandades; dois Senhores dos Passos a olharem-se, malquistados, de soslaio; de cá e de lá das pontes; de cagaréus e ceboleiros – perdeu o sentido, quando a cidade na proporção em que se expandiu, reduziu as distâncias e diluiu as distinções. A cidade é o denominador comum da sua população.

Não deverá, de certo, sem se trair, prescindir de quanto identifica o homem, no que tem de particular e o torna aveirense. Porque apenas uma razão existe, como reiteradamente venho frisando, para que as terras tenham um nome individualizador, e não sejam seca e inexpressivamente designadas por um número – para que possuam e preservem a sua fisionomia e as suas peculiaridades, o seu estilo e a sua personalidade.

Para Aveiro permanecer como tal, necessita que os aveirenses não se desnaturem nem a destipifiquem. Que tão pertinazmente a mantenham no essencial, como a refaçam, e actualizem, e encaminhem para um futuro de reacrescedora prosperidade. E tenham sempre presente o que a sua terra representa de luta, de perseverança contra as vicissitudes. Aveiro cresceu e caiu em ruínas. O seu homem – «se a ria adoece, o homem

adoece com ela», como observou Raul Brandão, nas páginas que sobre ela escreveu, com as tintas dela arrancadas, e da luminosidade que sobre ela se derrama – perdidos os traços urbanos atestadores do passado, perseverou; restabelecida a terra, restabeleceu-se, realentado, e não a deixou extinguir – refê-Ia.

Perdeu quase os vestígios da época de esplendor – da era de quinhentos em que terá sido mais compósito o caldeamento do homem aveirense – e, assim, muralhas, templos, casas nobres, e, em larga parte, mosteiros.

Mas o homem de Aveiro, o mais humilde talvez mas o que garantiu a continuidade – refê-la, com efeito, nova e, todavia como que é permanente e essencial: a água, a luz, a proximidade do mar, que são dons gratuitos mas cumpre não desprezar; e as insinuações que daí resultam para o sentimento e a vontade; e uma maneira de ser e agir com uma transparecedora singularidade, mais de sentir que de definir; e nas relações das gentes. Na fisionomia que lhe imprimiu, por intuição ou deliberado propósito de cumprir as obrigações de fidelidade filial, ao longo do ressurgente século XIX, actualizou-a, e, na modéstia dos recursos de que dispunha, manteve-se com a sua feição própria, inconfundível.

Ao homem de Aveiro de hoje nada mais, pois, se exigirá do que, sendo do seu tempo – e neste dispondo dos meios muito mais poderosos – siga e cultive o exemplo que lhe foi legado, e não perdeu, intrinsecamente a validade, mudadas embora as circunstâncias.

Mesmo quando o próprio signo do sal tende a perder o significado vivo e marcado de progenitura e de singularização panorâmica, e de oficina estatuária de homens sadiamente verticais, somática e espiritualmente; e os barcos trocam as velas silenciosas pelos motores ronronantes, e os remos propulsores, a favor ou contra a maré, se abandonam – e com eles aquela expressiva legenda da genealogia do genuíno aveirense, que «ou rema ou remou» – e não há gabões nem há tricanas, e se esfumam costumes. Aveiro persiste, personalizada, e os aveirenses continuam aveirenses. E solidários, membros de uma comunidade, com o sentimento do que ela tem de igual a todas e de todas distinta, e apegados, quase devotos da sua terra.

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NOTAS

(1)Jaime de Magalhães Lima – «Os Povos do Baixo Vouga», 1968, pg. 25.

(2) – É do ano 1582 o breve do Papa Paulo III que acede à criação desta AIbergaria, com seis camas, para pernoita de passageiros pobres, a que se forneceriam medicamentos se deles tivessem necessidade.

(3)Rocha e Cunha – «Relance da História Económica de Aveiro», 1930, pág. 11.

(4) – Idem, idem, pg. 16.

(5) – Idem, idem, pg. 16.

(6) – Idem, idem, pg. 17.

(7)Homem Cristo – «Notas da Minha Vida e do Meu Tempo», I, pg. 64.

(8)Luís de Magalhães – in «A Arte e a Natureza em Portugal», transcrito no «Guia de Portugal», 3.º voI., pág. 508.

(9)Eugénio de Castro – «Cartas de Torna Viagem», VoI. I, pág. 242.

(10)Luís de Magalhães – L.º cit.

(11) – ln “Campeão do Vouga”, n.º 58, de 31-10-1852, artigo intitulado Aveiro no Circo.

(12)Henrique Lopes de Mendonça – «O Padre Fernando de Oliveira e a Sua Obra Náutica», Lisboa, 1898, pg. 2.

(13) – Ob. cit., pg. 6.

(14) – Nasceu em Aveiro a 4-11-1722 e foi baptizado na desaparecida matriz de S. Miguel a 22. Morreu em lslington, nos subúrbios de Londres, a 7-2-1970.

(15) – Amigos do Ribeiro Sanches» (Y. H. de Magellan), Separata da «Medicina Portuguesa», 1910, pg. 6.

(16) – Ob. cit., pg. 10,

(17) – Ob. cit., pg. 25.

(18)Raul Brandão – «Memórias». Vol. I, 2.ª ed., pg. 247.

 

páginas 37 a 48

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