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N.º 16

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1973 

O Cortejo das Ofertas na Região de Vale de Cambra

Por M. Romero Vila

Remonta à primária existência do homem na terra, o culto dos mortos e as suas oferendas fúnebres.

Culto que até hoje se tem inalteravelmente mantido com o seu carácter sério, carinhosamente humano, profundamente brotado de sentimento saudoso, votivo e telúrico.

São estas as características que nos revelou a visita que, há mais de um mês, fizemos, em Altamira, Espanha, à exposição de A Sombra de um Homem da Idade da Pedra, em que junto da cabeça do homem enterrado se encontra um animal em posição encurvada de maneira que as patas dianteiras se prendem às traseiras, como, ainda hoje, se leva singularmente os cordeiros para a feira ou mercado. (1)

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Aguardando a organização do enterro, as oferteiras têm os cestos nas mãos esquerdas, em sentido de oferta.

A existência deste animal, sepultado juntamente com o homem, nessa antiquíssima CUEVA MORIN, Província de Santander, há mais de 29 000 anos, e cuja descoberta constituiu um dos fenómenos raros e felizes que é concedido, providencial e excepcionalmente, a alguns estudiosos pré-historiadores, vem demonstrar que o homem desde sempre «teve determinadas formas de tratar os seus mortos e os seus lugares especiais» (2) e que os costumes, ritos e formas de sepultar os mortos, actualmente existentes e, que lentamente se vão modificando e desaparecendo, deixam de ser velhos, embora sempre expressivos, perante o descobrimento desta sepultura pré-histórica do Homem de Morin.

J. Gonzalez Echegaray, no seu curioso estudo La SOMBRA de un CAZADOR de La EDAD de PIEDRA, afirma que «Possivelmente, esta oferta foi colocada na sepultura, para assegurar uma provisão de caça ou de alimento ao espírito do caçador(3)

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Um rito próprio de enterramento foi também descoberto, comparando várias sepulturas da mesma Cueva Morin. Em todas se notaram que as pernas dos mortos se encontravam afastadas e a cabeça, que devia estar ligada ao pescoço e este ao tronco, estava perfeitamente também separada.

Houve, portanto, um rito especial de enterramento do homem pré-histórico e o mesmo estudioso Gonzalez Echegaray, afirma: «Todos estes indícios sugeriram que os sepultados neste sítio, foram mutilados post mortem. Cremos inclusivamente, ao achar o machado de pedra junto do morto, ter encontrado o objecto com que foi decapitado. Trata-se de uma peça rude achada junto ao pescoço do Homem Morin I». / 33 /

«Uma mutilação parecida post mortem dos cadáveres se pratica ainda hoje, em algumas sociedades primitivas, para impedir que o espírito do defunto volte a rondar a comunidade onde viveu.» (4)

Uma oferteira que amavelmente nos mostrou o milho e o tamanho da toalha que cobre o cesto redondo de verga.

Caso idêntico verificámos, em África, em 1959, quando, assistindo a um enterro indígena, no mato, numa das margens do Rio dos Bons Sinais, Quelimane, Moçambique, vimos os nativos a sepultar caneca, pratos, panelas, utensílios caseiros e particulares da morta na mesma cova, e os condutores do caixão a esfregar os corpos com uns pedaços de ervas secas, fervidos numa panela junto à campa da morta, para que a doença e o seu espírito não se apegasse aos seus corpos. 

Neste apanhado histórico, à guisa de preâmbulo, nota-se que, desde o início da existência humana na terra, houve um rito nos enterramentos dos mortos: – corte das pernas e da cabeça, para que o espírito dos mortos, na imaginação dos povos, não vagueasse entre os vivos; Oferenda fúnebre: – na existência da gazela, cabrito ou rebeco, (como é chamada nos Montes Cantábricos, Espanha, a cabra brava) junto ao homem caçador, para que o seu espírito se alimentasse e a sua memória perdurasse na lembrança dos vivos; sinal sobrenatural ou crença em valores espirituais: – na separação das pernas e da cabeça, para que a imortalidade do seu espírito não se servisse dos órgãos vitais da comunicação social. E na existência do machado, pertença própria e sua defesa, na última morada.

Fizemos este resumo e fomo-lo buscar à primeira civilização humana – a Idade da Pedra – para expor o CORTEJO das OFERTEIRAS ou AS OFERTEIRAS, ainda existente na Região de Vale de Cambra, especialmente na freguesia de S. Pedro de Castelões, afirmando que se desconhece a era, a data, concretas em que começou tão regional costume de homenagear os mortos e de conservar a sua memória.

Costume imemorial, acentuou o actual Prior de S. Pedro de Castelões, P. João Martins das Neves e que, na nossa pobre opinião, mergulha nos primórdios da existência humana, desde que o homem começou a dar morada digna e respeitosa aos seus defuntos e a ter consciência do seu destino eterno.

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O desfile das Oferteiras de S. Pedro de Castelões, a caminho da igreja paroquial.

As Oferteiras dispõem-se, à frente dos funerais, em fila indiana, precedidas do rapaz da campainha. Em número ilimitado, dependendo somente do consentimento da família e da possibilidade de conseguir, no Lugar ou na Freguesia, donzelas disponíveis para isso.

E assim se chama a este desfile das raparigas nos funerais, O Cortejo das Oferteiras.

Não há na escolha e no convite qualquer exigência social ou económica, apenas serem solteiras, reputadas de boa fama e com a idade máxima de 25 anos. Até há pouco tempo existia o costume de o número ser ímpar (pernão, como diz o povo) – costume que por se julgar eivado de superstição, se procurou evitar.

Vestidas rigorosamente de preto, desde os sapatos ao lenço da cabeça, com saia, blusa, xaile fino (tipo varina), manta ou véu preto.

O pequeno cesto de varas redondas, coberto inteiramente pela toalha de linho branco, pousado na rodilha branca sobre a cabeça, sobressai perfeitamente em todo o conjunto fúnebre, dando um tom de pura saudade e bela homenagem aos mortos que vão a sepultar. Esta toalha existia, outrora, em todas as casas, servindo primeiramente para os baptizados das famílias. O milho que leva o cesto é oferecido pelas pessoas amigas, vizinhos e parentes e, no seu conjunto deve dar um alqueire, em enterro de adulto, e meio alqueire, em enterro de anjinho. Primitivamente, eram duas boroas de milho que se destinavam aos pobres. / 34 /

A renda da toalha é disposta de uma maneira especial, cobrindo toda a boca do cesto que leva o milho e fica pendente das abas, não permitindo ver-se qualquer parte das varas redondas de que se compõe o cesto.

Esta oferta, apresentada de uma maneira airosa e cheia de simbolismo, na pungente hora de luto e dor que a todos impressiona, é uma nota de alva candura e significativa manifestação de condolência amiga.

Tem um cerimonial próprio, desfilando, uma após outra. As oferteiras são senhoras de expressivo silêncio ou rezam o terço durante todo o caminho do enterro.

Ao chegarem à igreja, retiram os cestos da cabeça e seguram-no, em modo de oferta, no braço esquerdo. Ajoelham diante da tarimba aos pares. Colocam os cestos no chão. E assim se conservam, enquanto se rezam os responsos finais no templo.

Terminadas as orações litúrgicas e enquanto retiram o morto da igreja com todo o restante povo para o cemitério, as oferteiras vão deitar, numa pequena tulha numa dependência da casa de Deus, o milho que traziam nos cestos.

A propósito, convém dizer que existia numa freguesia da região de Vale de Cambra, supõe-se que em Macieira de Cambra, uma casa a que chamavam Tulha, que servia de armazém dos cereais que os frades de Santa Cruz de Coimbra recebiam do povo, quando esta região dependia religiosamente do antigo e célebre Mosteiro conimbricense, que, como se sabe, é dos primórdios da nacionalidade portuguesa.

Depois juntam-se de novo, no mesmo lugar, aguardando a chegada do sacerdote que acompanhou o funeral ao cemitério. Beijam a estola e rezam em conjunto o Pai-Nosso. Em tempos de mais fé, cada uma das oferteiras rezava a oração dominical. Após a recitação colectiva desta oração, retiram-se para casa.

Mas não fica só por esta pública homenagem aos defuntos. No domingo seguinte, volta uma só oferteira à igreja, com o cesto coberto da mesma forma, trazendo-o no braço esquerdo, com pão e vinho. Actualmente bolachas e uma garrafa de vinho fino.

Apresenta-se vestida impecavelmente de preto como no cortejo do funeral.

A sua presença, no meio da assistência à missa paroquial, gera uma vivência de sentida e respeitosa recordação dos recentemente falecidos, que pela lei inexorável foram arrebatados do seu convívio.

Aproxima-se do altar-mor, pousa a oferta no chão, ajoelha-se e espera assim, até ao fim da missa paroquial. É uma viva presença de saudade que, há poucos dias, a grei prestou com o seu cortejo, ao levar para o cemitério os recém-falecidos, e que ali se encontra, palpitante, prestando a Deus dos vivos e dos mortos, a sua adoração e os seus rogos.

O sacerdote, no final, abeira-se da oferteira que, segurando na mão esquerda uma vela acesa, com a mão direita vai recebendo e lançando, numa salva, as ofertas que lhe deram, para ali pública e devotamente rezar pelos mortos. Outrora, as pessoas também assistiam, mas actualmente deixam isso à oferteira e ao sacerdote. / 35 /

Terminadas as orações, a oferteira levanta-se e leva a casa do Prior a oferta que foi dada pela família.

Este pequeno rito é chamado Segundo Ofertório, que ainda se encontra em uso em quase todas as freguesias da região. Em Macieira de Cambra este ofertório é apresentado em forma de torre, com a toalha armada ao redor da garrafa e por cima das bolachas que o cesto contém. Nas freguesias de OsseIa e Nogueira do Cravo, do Concelho de Oliveira de Azeméis, circunvizinhas da região de Vale de Cambra, também existe este costume. Nesta última, oferece a família uma carreira de pão (o conhecido pão de UI), uma garrafa de vinho comum e uma galinha, ao Pároco da freguesia.

O Cortejo das Oferteiras e o Segundo Ofertório já não existem em todas as freguesias. Conservam-se ainda nos nossos dias, com insignificantes modificações e com certa e razoável pureza, na de S. Pedro de Castelões.

Desconhecendo-se a exacta origem deste aparatoso e público modo de homenagear e lembrar os mortos, parece-nos que sai espontânea e naturalmente dos nobres e superiores sentimentos da natureza humana.

Não será ousado, com certeza, ver no Cortejo das Oferteiras a repetição mais perfeita e mais profunda e religiosamente humana, do rito, da oferenda e da crença que encontramos no valioso achado do Homem da Idade da Pedra da Cueva Morin, em Espanha.

Rito: – na maneira de enterrar os mortos, acorrendo pública e colectivamente com os seus bens e com a parte mais sã, pura e atraente da sua idade – as donzelas –, pondo-as em desfile, em homenagem aos seus mortos.

Oferenda: – na oferta do pão ou do milho, para que no valor destes as suas almas sejam lembradas e socorridas pela fé e sentimentos fraternos de todos os que os conheciam.

Crença: – na recitação das orações durante o funeral, na igreja e na missa do povo.

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NOTAS

(1), (2) e (3)Trabalho, La Sombra de un Cazador de La Edad de Piedra, de L. G. Freeman e J. Gonzalez Echegaray, págs. 12, 7 e 12, edição do Museu de Prehistoria e Arqueologia, Santander, 1972.

(4) – idem, pág. 18.

 

páginas 32 a 35

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