Acesso à hierarquia superior.

N.º 16

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1973 

Antologia Aveirense

Padre Serafim Leite

EMINENTE HISTORIADOR E CRONISTA DA ACÇÃO DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

Notas

Biográficas

 

O Padre Serafim Leite nasceu em S. João da Madeira, em 6 de Abril de 1890. Depois de frequentar alguns anos o Seminário dos Carvalhos, no Porto, embarcou para o Pará e dedicou-se ao comércio no Amazonas. Aí trabalhou como caucheiro, convivendo muitos anos com os índios do Alto Rio Negro, selvícolas de Padaneri e do Rio Vaupes, aprendendo a sua língua geral, a mesma que os índios falavam no tempo de Anchieta e Nóbrega.

Em 1914 entrou para a Companhia de Jesus. Tendo cursado Letras Humanas, em Múrcia, Filosofia em Granada, Espanha, e Teologia em Enghien, Bélgica, completou a sua formação religiosa e ascética em Paray-Ie Monial, França, e professou, solenemente, em 1932. Neste mesmo ano, meteu ombros à composição da «História da Companhia de Jesus no Brasil», obra monumental em vários volumes.

O Secretariado de Propaganda Nacional atribui-lhe o Prémio Alexandre Herculano, de 1938. Três anos antes, no Concurso Histórico de S. Paulo, fora conferido o primeiro prémio ao seu estudo sobre «Os Jesuítas na Vila de S. Paulo (século XVI)». No género histórico, publicou, ainda, outros trabalhos muito apreciados, entre os quais «Alão de Morais» (1929), «Páginas da História do Brasil» (1937), «Novas Cartas Jesuíticas de Nóbrega a Vieira» (1940), bem como muitos artigos dispersos por revistas portuguesas e estrangeiras.

Reconhecendo os altos méritos de historiador de Serafim Leite, a Academia Portuguesa de História nomeou-o seu sócio honorário. Pertencia, igualmente, à Academia Brasileira de Letras, à Academia de História do Equador e era sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, sócio benemérito do Centro D. Vital, do Rio de Janeiro, membro do grupo português da Academia Internacional da História das Ciências, secção de Lisboa, e fez parte da direcção do Instituto Português de Arqueologia, História e Etnografia.

Foi ainda membro da Comissão Orientadora da Exposição Histórica da Ocupação e do Congresso da História da Expansão Portuguesa no Mundo, realizado em Lisboa, em 1937, e membro da Secção do Congresso Luso-Brasileiro, nas comemorações do duplo centenário (1939-1940).

Pelos serviços então prestados, o Governo Português condecorou-o, em 1938, com o grau de comendador da Ordem Militar de Santiago da Espada, Mérito Artístico, Científico e Literário. Dois anos depois, o Governo Brasileiro conferiu-lhe a comenda da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. Era ainda doutorado «scientiae et honoris causa», pela Universidade do Rio de Janeiro (1949), e pertencia, desde 1950, à Gallery et Living Catholic Authors, dos Estados Unidos.

Residia em Roma desde 1949, no Instituto Histórico da Companhia de Jesus, entregue aos seus trabalhos de investigação e à publicação de documentos relativos à história da Companhia no Brasil, para a secção brasileira, «Monumenta Brasiliae», da colecção «Monumenta Historica Societatis Iesu».

É vastíssima a bibliografia do saudoso finado. Em 1962, publicou-se em Roma uma «Bibliografia de Serafim Leite, S. J.» e já então se registavam, ali, 277 trabalhos, entre os quais algumas novelas e contos, poesia e estudos sociais, publicados em diversas revistas e, alguns, reunidos em volume, como: «lIuminuras» «NoveIas), Lisboa, 1930; «Trajectórias» (1931) e «Do Homem e da Terra» (1932), poemas; «A Retribuição do Trabalho», Porto, 1933 e 1937, etc.

 / 30 / A par da sua colaboração em revistas e da sua actividade científica, Serafim Leite publicou, ainda, diversos artigos no jornal «Novidades», em 1928-29, com o pseudónimo Mário Victor, e pregou retiros espirituais e prestou serviços em associações de piedade.

Com a morte do ilustre historiador, perdeu a cultura portuguesa um dos seus elementos mais prestigiosos nos domínios da História. Dele escreveu, há anos, o prof. Robert Ricard, da Faculdade de Letras do Universidade de Argel:

«Serafim Leite possui um excelente conhecimento da bibliografia hispano-americana. Não sabe apenas o que se publica em Portugal e no Brasil, sabe, também, o que se faz na Espanha, na Argentina e no México, visão amplamente ibérica e, por isso mesmo, autenticamente católica. E como a isto junta perfeita serenidade de expressão e discernimento, é guia que se pode aceitar com toda a confiança.»

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Em Lisboa, quando se soube da atitude do bispo da Baía, D. Pedro Fernandes, logo se compreendeu que o superior da Missão do Brasil devia ser prelado sui iuris, com os poderes que conferem aos provinciais o direito canónico e as bulas pontifícias. Tornava-se urgente a elevação da Missão do Brasil a Província. O provincial de Portugal, que era já o P.e Miró, comunicou a Nóbrega todos os seus poderes, propondo o caso ao geral. Santo Inácio aprovou: «o que V. Rev.ª ordenou no Brasil dando os seus poderes todos ao P.e Nóbrega, isentando-o da obediência do Bispo, tudo está bem» (1). A patente enviá-la-ia ele depois, a 9 de Julho de 1553, e nela Santo Inácio já tinha em vista a ida de Nóbrega aos Carijós do Paraguai, porque o nomeia provincial da Companhia de Jesus não só «na Índia do Brasil, sujeita ao Sereníssimo Rei de Portugal», mas também «noutras regiões mais além» (2) A «Índia do Brasil» era a América Portuguesa; as outras regiões «mais além», a América Espanhola. A patente de Santo Inácio constituía Nóbrega, praticamente, primeiro provincial da Companhia de Jesus não só no Brasil, mas na América. Santo Inácio, por si ou por seu secretário Polanco, mandou-lhe as instruções do que se costuma consultores, e maneira de escrever para Roma, em que não se deviam misturar assuntos internos da Companhia de Jesus com notícias de edificação, pois estas seriam mostráveis a pessoas de fora (3).

Escrevendo a Santo Inácio, Nóbrega agradece a profissão solene (requeria-se para ser provincial), que ainda não fizera por não haver no Brasil nenhum professo, nem na Capitania de S. Vicente nenhum prelado; e diz que o Brasil é acomodado para colégios, terra sã, que poderiam ser enfermarias de toda a Companhia. Ele não sai da Capitania de S. Vicente, em que se encontra agora, porque não tem padre capaz a quem encomende os irmãos que nela residem. Em Assunção do Paraguai devia haver casa da Companhia em união com as do Brasil. Espera o P.e Luís da Grã para decidir. Importa alcançar-se dispensa de todo o direito positivo para o casamento cristão de índios e mestiços. Quanto a si mesmo, já tinha mandado pedir ao provincial de Portugal que o dispensasse do ofício de superior; o padre-geral, se conhecesse «as muitas minhas faltas e erros, que faço cada dia no que me está encomendado», não me daria o cargo – diz ele; e pede pelas entranhas de Cristo que nomeie outro. (4)

Quanto ao Paraguai, Luís da Grã, ao chegar a S. Vicente, manifestou-se contrário tanto à ida de Nóbrega como à sua própria (5); e de Lisboa deram instruções a Nóbrega que como Provincial devia residir na Baía, capital do Estado do Brasil, para «dar princípio a um Colégio»; e para esse fim, nessa cidade, já a 6 de Junho de 1555 se esperava «cada dia» a volta de Nóbrega (6).

Faltava a profissão solene. Ao concedê-la a Nóbrega, dizia Santo Inácio que, não existindo nenhum religioso professo no Brasil, ele a poderia fazer diante de algum prelado como outros muitos a fizeram na Europa (7). Não havendo esperanças da ida do Bispo D. Pedro Fernandes a S. Vicente e tendo Nóbrega de se separar de Luís da Grã, que também devia fazer a profissão, Nóbrega, como bom jurista aplicou o caso: ele, como prelado que era da Companhia, recebeu a de Grã no dia 26 de Abril de 1556; e Grã logo a seguir, já como professo, a de Nóbrega (8).

O provincial torna a escrever a Santo Inácio e insiste pela vinda de Roma de dispensas pontifícias matrimoniais, de consanguinidade, afinidade e honestidade pública, e sobre a dificuldade de aplicar o direito canónico aos gentios já casados, que se convertem, por não se terem casado antes com a intenção de viverem juntos para sempre. A resposta de Roma ao insistente pedido de dispensas matrimoniais demorou, mas veio cabal, ainda em tempo de Nóbrega, e se verá adiante no seu lugar próprio. Por agora, Nóbrega vai para a Baía muito doente. Espera achar já aí novo provincial, para poder descansar um pouco e porque se lhe vai acabando o triénio de governo (9). Escreve também ao P.e Miguel de Torres outra carta, quase toda sobre a educação de meninos e órfãos e como desejaria que o Colégio de S. Paulo de Piratininga fosse colégio fixo, sugerindo como se poderia manter; e o Colégio da Baía, se el-rei o fizer, deve ter renda certa, e «para sempre», dos «dízimos» do Brasil ou do «tesouro» real (10). / 31 /

Nóbrega saiu de S. Vicente para a Baía a 23 de Maio de 1556. Acompanharam-no o P.e Francisco Pires, o Irmão António Rodrigues e mais dois irmãos. Levava as Constituições da Companhia, recém-chegadas ao Brasil, que ele declarou nas casas das Capitanias. Na do Espírito Santo demorou quinze dias, mandou o Irmão António Rodrigues que chamasse os índios da vila com uma campainha e lhes fizesse a doutrina primeiro em português e depois em tupi. Segundo as Constituições, os meninos (mestiços e índios) não podiam viver em casa com religiosos da Companhia. Ordenou que se colocassem noutra separada, junto à nossa, com um curador leigo (Francisco Vaz). Saindo do Espírito Santo, o mau tempo obrigou-o a arribar a 10 léguas da vila. Seguiu viagem e na Capitania de Porto Seguro continuou o mesmo exercício, mandando os irmãos pelas povoações, incluindo Santo Amaro e ajuda; e, tanto no Espírito Santo como em Porto Seguro, com grande fervor dos moradores, sobretudo índios e índias (11).

Chegando à Baía a 30 de Julho, disse a uma família da cidade que se ia organizar agora um colégio onde se poderia estudar tão bem como em Portugal e com menos trabalho e menos custo do que indo ao Reino (12). Nóbrega achou novo governador, D. Duarte da Costa, ao qual pediu duas coisas conducentes à conversão do gentio: aldeamentos (reunião de aldeias pequenas em aldeias grandes de catequese) e proibição de comer carne humana (13).

Pela festa de Nossa Senhora da Assunção (15 de Agosto), ordena o provincial que aos meninos índios catecúmenos os baptize o P.e João Gonçalves, que nesse dia celebrava a primeira missa; e no fim da festa os padres abraçaram os meninos baptizados «não como a servos e estranhos, mas como a filhos de Deus», com inexprimível regozijo de toda a terra (14).

Começa a fundação das aldeias. Primeiro, a do Rio Vermelho (arredores da Baía), tarefa que Nóbrega incumbe ao Irmão António Rodrigues, homem que já tinha dado as suas provas em Piratiniga e com o dom de atrair os índios, que o seguiam de bom grado dizendo que ele lhes «lançava o coração pela boca». O provincial diz a primeira missa na aldeia. Festa com cantos e flautas (15).

Funda-se a Igreja de S. Sebastião (aldeia do Principal Tubarão); nela também Nóbrega celebra a primeira missa com idêntica solenidade à do Rio Vermelho (16), à qual se liga a primeira noção das casas de campo colegiais no Brasil. Nóbrega manda os meninos do Colégio da Baía passar as férias grandes na aldeia do Rio Vermelho, praia do mar, onde se demoram os meses de Novembro e Dezembro, entremeando o descanso com o ensino dos filhos dos índios (17).

Foi talvez neste remanso do Rio Vermelho, em todo o caso depois da sua volta de S. Vicente e antes da chegada do governador Mem de Sá, que Nóbrega escreveu o Diálogo sobre a Conversão do Gentio, primeira obra propriamente literária do Brasil. Pensamento fundamental: os gentios são capazes de se converter em direito, porque são homens, e de facto porque muitos já se converteram. Questão de educação e cultura. E também de graça de Deus em chegando a hora de se converterem. O que urgia era criar circunstâncias externas que facilitassem a obra da graça, num regime de autoridade paterna, sobretudo com a educação dos meninos (18).

Se a conversão do gentio ocupava o pensamento de Nóbrega, os moradores não o preocupavam menos. Fechou as portas da confissão aos que, ou por viverem em concubinato público ou por possuírem escravos injustamente comprados, não podiam ser absolvidos. Se outros de fora da Companhia os absolviam, era com descrédito da religião e dos sacramentos (19). Também alguns moradores começaram a meter-se nas terras dos índios com grave inconveniente para a justiça e a conversão do gentio, que se retirava para mais longe, onde não poderia ser catequizado. Na Baía, já se aguardava novo governador (Mem de Sá), e Nóbrega também espera novo provincial (20). Noutra carta de 1557 trata Nóbrega da situação da Companhia de Jesus no Brasil, educação e conversão; e insiste na necessidade de se fortalecer e segurar a Companhia de S. Vicente, propondo que os homens do Campo se ajuntem todos em Piratininga (21). De Maneira que o P.e Luís Gonçalves da Câmara, escrevendo ao geral Diogo Laines, concretiza em dois os pontos essenciais do Brasil, segundo a mente do P.e Nóbrega: que vão para o Brasil tantos portugueses que façam guardar ao gentio a lei da natureza; basta que os gentios sintam que os portugueses têm força, para os seguirem. O outro ponto é que se façam muitos colégios para a educação dos meninos (22).

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NOTAS

(1) – BN 102.

(2) – ME I 508.

(3) – ME I 509-513 519-520.

(4) – CN 192-201; ME II 164-172.

(5) – BN 116; CN 258; MB II 362-403.

(6) – MB II 230.

(7) – MB I 511.

(8) – CN 204; MB II 276.

(9) – CN 205-206; MB II 275-278.

(10) – CN 207-215; MB II 278-285.

(11) – MB II 298-301.

(12) – MB II 311.

(13) – CN 332; MB III 84.

(14) – MB TI 349-350.

(15) – MB II 350-351.

(16) – MB II 353-355.

(17) – MB I 353.

(18) – CN 215-250; MB II 317-345.

(19) – MB II 433-434.

(20) – CN 250-259; MB II 396-404.

(21) – CN 260-279; MB II 404-419.

(22) – MB II 420-421.

Do livro: «Suma Histórica da Companhia de Jesus no Brasil»

 

páginas 29 a 31

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