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N.º 15

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1973 

Duas páginas da História de Ovar

Pelo Dr. Lamy Laranjeira

A história da nossa vila é uma história muito caseira, uma verdadeira história de lareira, sem grandes feitos heróicos. Na verdade, pecamos por não havermos heróis, frases lapidares que as mocidades gravem na memória, assaltos a praças fortes, assédios violentos, cargas épicas de ginetes, e tantas outras imagens maravilhosas que as nossas recordações, de vez em quando, vão desfiando.

Alevantados castelos, nem um único houve na nossa história de pobres. E apesar do desejo de alguns, só foi encontrado o lugar do Castelo, nome poético, inverdadeiro, e que mais tarde se transformou em modesta escola primária.

Mas, para nosso orgulho, podemos apontar um pequeno e modesto fortim, perdido, plantado nas proximidades do Carregal. O General João de Almeida elucida-nos de que se tratava duma construção castrense, cujos vestígios ainda existiam em meados do século passado. Devia ser uma atalaia, composta de uma única torre, circundada por um pequeno recinto amuralhado, destinada a servir de vigia e a defender a costa dos ataques dos piratas normandos.

E são estes os únicos vestígios históricos que parecem provar o nosso pouco zelo guerreiro.

Mas, se os monumentos primitivos escasseiam na história de Ovar, tem lugar preponderante a «gente pequena», os «povos miúdos», no dizer clássico do cronista Fernão Lopes, onde todos os heróis se mesclam e nivelam.

E em todos os passos andados da nossa história sempre encontramos o apagado vareiro, ora agarrado à sua enxada, ora a mercadejar pelas povoações próximas, ora na faina da pesca.

A génese da povoação vareira está intimamente ligada a dois grandes factores geográficos, que condicionam toda a nossa história local: – a ria e o mar.

Na verdade, foi o meio geográfico que moldou o tipo étnico do vareiro e lhe emprestou o fatalismo que lhe corre no sangue.

O vareiro assistiu à formação da ria e deve ter sido ele o primeiro entre os primeiros que a conquistou.

De facto, a formação do notável acidente geográfico, que é a nossa ria, é relativamente recente e deve situar-se nos primórdios da nossa nacionalidade.

Um pouco antes do século XII, podemos considerar quase toda a zona baixa da vila como uma região pantanosa, sulcada de inúmeros esteiros e de caniços. A ria prolongava-se até próximo de Cabanões pelas várzeas dos rios da Graça e Luzes e, pelo lado sul e leste desta futura povoação, estendiam-se as hortas e mais terras que, mais tarde, dariam lugar às da Granja e Assões, com a designação de Ovar de Cima.

O próprio e actual jardim dos Campos era, por volta ainda do ano da graça de 1850, conhecido pela Lagoa dos Campos.

Este acidente geográfico, que se estende desde o Carregal ao Poço da Cruz, em Mira, numa distância de 47 km, não é mais do que um esteiro de reduzida profundidade e que tem sido comparável, com os seus inúmeros canais que formam as Rias de Ovar e Murtosa, ao Norte, e de Vagos e Mira, ao Sul, a um enorme polvo de grossos tentáculos.

Normalmente, as rias formam-se devido a movimentos radiais das costas originando-se, assim, invasões dos vales pelas águas dos mares.

Alguns autores, contudo, têm preferido a palavra haff à designação de ria, pois que, sustentam com pesados argumentos, se verifica uma identidade profunda com os acidentes geográficos da costa do Báltico, onde desaguam os grandes rios alemães, sempre limitados por um extenso cordão de dunas a cercar as embocaduras dos rios. / 6 /

O portulano de Petrus Visconti apresenta a região lagunar sem o cordão de areias e, apesar de datado de 1318, tem sido considerado, aquele precioso documento, como decalcado de outros mapas de séculos anteriores.

A costa primitiva do distrito de Aveiro não era mais do que uma reentrância acentuada que tocava em Esmoriz, Estarreja, Eirol, Cacia, Esgueira, Aveiro, Ílhavo, Vagos e Mira, indo morrer no Cabo Mondego. Os rios Vouga, Águeda e Cértima apresentavam as suas fozes completamente independentes.

À entrada desta grande reentrância, de águas quase paradas, efectuou-se intensa sedimentação, resultando a formação de dois cordões aluviais, no sentido um do outro.

Esta transformação operou-se, não somente com as aluviões marítimas, mas também com as aluviões fluviais, desempenhando grande importância as do Rio Douro. Com o auxílio dos ventos predominantes do norte, as areias tendem a deslocar-se ao longo da Costa, na direcção sul, e vão alinhando a reentrância entre Esmoriz e o Cabo Mondego, num trabalho moroso, lento, mas constante de vários séculos.

Acresce a este fenómeno a acção das marés e das vagas que vão alastrando as areias cada vez mais para o interior.

Também os ventos concorreram para a fixação do cordão litoral. As areias e demais detritos transportados pelos ventos, com relevo para o «mareiro», acumulam-se quando encontram qualquer obstáculo, resultando desta acumulação o aparecimento de dunas que, submetidas por sua vez à acção eólica, vão as suas areias sendo transportadas para novos lugares.

Por outro lado, os rios Vouga, Águeda e Cértima realizaram uma sedimentação intensa junto às suas fozes com as aluviões, transportadas pelas suas águas, que se foram acumulando sobre o cordão de areias em vias de formação.

Este cordão tem uma largura de cerca de 2 km. A comunicação com o mar faz-se pela Barra Nova e a simbologia deste nome sugere-nos a existência, em tempos recuados, de barras velhas: – Torreira, Vagos, Barrinha de Esmoriz e Mira, pois que, segundo o Prof. Amorim Girão «por grandes vicissitudes tem passado a zona lagunar, mesmo dentro dos tempos históricos, diversas devendo ter sido as soluções de continuidade no cordão que marginava a Ria, e diversos também os pontos onde nela desembocava o Rio Vouga».

Entretanto vai-se processando a estrutura social da futura vila, numa forma bastante rudimentar e, para a bem compreendermos, não podemos olvidar os trabalhos do notável estudioso, que foi Alberto Sampaio, o admirável historiador das instituições rurais, bem como o manancial de informações que nos foram legadas por Herculano.

Nesse recuado século X, a vida em sociedade, em todo o litoral norte, fazia-se nos castros, onde habitavam vários povos, distinguindo-se, em especial, os túrdulos antigos, estabelecidos na região compreendida entre os Rios Douro e Vouga. Mas, com a dominação romana, os castros foram devassados e toda a precária estrutura social sofreu enorme transformação. A romanização criou uma sociedade rural e os hábitos das populações suportaram o forte influxo da civilização latina.

Dá-se então o aparecimento da villa, unidade puramente agrária e fiscal, e procede-se à sua demarcação administrativa, com padrões. Criada a villa, recebe esta um nome romano, geralmente o do seu senhor e proprietário. Mas, na Península Ibérica, palco de inúmeras invasões de diferentes povos, não foi possível eliminar grande parte dos legados romanos, permanecendo nas sociedades dos povos as influências duma romanização sólida.

Apesar de tudo, a simbiose das diferentes populações invasoras implicou um retalhamento nas sociedades primitivas; às antigas villas sucedem-se novas agremiações: – as freguesias. E se aquelas foram principalmente simples propriedades, as freguesias não são mais do que comunas, erigidas em volta de uma igreja. A Igreja passa a ser, então, o ponto de convergência de toda a freguesia.

As freguesias também resultaram da fusão de villas. Muitas das vezes, o nome da villa mais importante ficava a designar a nova freguesia.

No moldamento do lugarejo vareiro, o processamento histórico da povoação operou-se em termos semelhantes.

Uma pergunta desde já se impõe: -. Qual o primitivo nome da freguesia: Ovar ou Cabanões?

Não há, entre os estudiosos, unanimidade de pontos de vista. E, se a grande maioria opta pela vila de Cabanões, como mater da nossa vila, o que parece não oferecer dúvidas é que Ovar resultou da fusão de várias vilas próximas, sendo, entre as mais importantes a de Ovar e a de Cabanões.

Mas, qual destas vilas a primeira no tempo?

Monsenhor Miguel de Oliveira, erudita Autoridade nestes assuntos, manifestava a opinião que a vila de Ovar é mais antiga que a vila de Cabanões, não perfilhando, deste modo, da tese do autor das «Memórias e Datas». Chega mesma a afirmar, o notável historiador, que carece de fundamento a hipótese de João Frederico, «que os primeiras habitantes dos antiquíssimos lugarejos de Cabanões e S. Donato foram cristãos-godos tresmalhados, depois da funesta batalha» de Guadalete, na Península. / 7 /

Efectivamente, a designação de Ovar remonta ao século X, pois já nesse período, em documento avoengo se fala no Porto de Ovar.

E esta palavra porto de Ovar deve ser tomada no sentido genérico de, não só, de passagem de pessoas e coisas, como também de embarque na beira-mar. Qualquer destes dois significados podia o termo abranger, no caso estrito de Ovar: – porto de mar – o que nos parece o mais curial, dado o facto de, nessa época afastada, a Ria se encontrar em estado de gestação – e também de passagem entre o norte e o sul.

Contudo, no último quartel do século X, o nome de Cabanões veio a ter uma notoriedade mais saliente que o de Ovar.

A que se deve atribuir este facto?

Naqueles conturbados tempos, esta faixa do litoral sofreu enormes devastações com a invasão árabe, capitaneada pelo temível Almançor.

As pobres populações dos indefesos povoados só na fuga conquistam a salvação e tudo abandonavam à sanha mourisca de extermínio. Mas, passados os primeiros dias de terror, voltavam as gentes às suas antigas povoações a tentar refazer as suas vidas e os seus lares destruídos.

E vão de construir as suas aldeias com choupanas ou de «cabaneiras», como eram conhecidas. E desta simbologia apareceu a origem de Cabanões.

O documento mais antigo que se refere a esta vila aparece um século após o aparecimento do de Ovar. Referia-se à pirataria praticada em larga escala nesta parte da costa pelos temíveis normandos, que durante duas longas centenas de anos cruzaram este litoral e chegaram a fundar uma colónia normanda, na Murtosa.

Mas as dúvidas acumulam-se, bem como o campo das hipóteses, quando se estuda a instituição da paróquia.

Qual a primeira igreja no tempo?

S. João, em Cabanões, S. Donato ou S. Cristóvão, em Ovar?

É tradição corrente que o primeiro templo paroquial seria o da capela de S. João, situado no local que actualmente ocupa, na aldeia de Cabanões, então freguesia.

Reza a tradição que o primitivo templo existia no século VIII. Ali esteve o cemitério, no pequeno adro da igreja, de que há ainda vestígios, no túmulo de pedra que naquele lugar se admira, pertencente a D. Paio de Carvalho, denodado cavaIeiro de D. Afonso V, e nas inúmeras ossadas encontradas, por ocasião da abertura da actual estrada.

No que se refere à capela de S. Donato, já no ano longínquo de 922, temos notícias da sua existência, pois em documento dessa época se fala da doação da capela que existia no lugar de Guilhovai (Guilmar), ao mosteiro de Crestuma.

Apesar das notícias que se lhe referem, nada consta que S. Donato chegasse a ser freguesia independente.

Segundo o padre Lírio, o nome de S. Donato deriva do facto daquele lugar ter sido doado ou donato ao mosteiro de Crestuma; no entanto, Monsenhor Miguel de Oliveira admite a viabilidade da tradição, segundo a qual o topónimo vem de ali jazer o bem aventurado Donato, discípulo do apóstolo S. Tiago das Espanhas.

Da primitiva capelinha erigida no local do martírio do santo, que devia datar dos primeiros tempos da cristianização da Península, nada resta, pois foi demolida em 1906, pela simples vontade dos homens.

Mas, o que parece não oferecer dúvidas é que todos os documentos da época relativos à paróquia lhe dão como orago S. Cristóvão de Cabanões.

E onde se situava esta igreja?

Já dissemos que o nome de Cabanões chegou a ter uma maior projecção que o próprio nome de Ovar, designando toda a freguesia.

Ora, nos fins do século XIII, o núcleo urbano da vila localizava-se em Ovar e não em Cabanões. Para comodidade da população, a sede da paróquia erigia-se quase sempre na parte central do aglomerado, aproveitando-se grande parte das vezes da proximidade dos cursos de água.

Na actual situação da nossa igreja concorrem estas circunstâncias. Será, pois, mais fácil admitir que se operou a mudança do nome à freguesia do que terem os vareiros mudado de casa, por vota de 1600, como assevera Monsenhor Miguel de Oliveira.

Uma pergunta agora se impõe: – Como surgiu o topónimo Ovar?

Podemos considerar dois tipos de explicações para a formação do nome da nossa vila:

a) As de tipo meramente fantasista e

b) As com uma dada base lógica.

No primeiro grupo, que, infelizmente, tem maior audiência, o nome de Ovar é devido:

1.º – Às grandes multidões de aves palustres, que nesta boa terra faziam os seus ninhos e aqui vinham «ovar», isto é, pôr ovos.

Esta é a explicação apresentada pelo Dr. João Frederico, nas suas «Memórias e Datas» que, contudo, não chega a terçar as suas armas por ela.

2.º – O nome de Ovar deve-se a uma corruptela das gentes de Cabanões que quando se deslocavam à vila, localizada num vale ou vai, trocavam o I pelo r pronunciando que iam óvar.

3.º – Pinho Leal afirma a origem francesa no sugestivo nome da nossa Grei.

Na verdade, em Franca, corre o rio Var, que desagua no Mediterrâneo, na província de Provença e alguns marinheiros dessa linda região teriam fundado neste litoral norte uma povoação a que teriam denominado de Var, em honra do rio da sua distante terra. / 8 /

4.º – Strecht de Vasconcelos, em artigo publicado no interessante e antigo almanaque de Ovar, sustenta que BAR, do grego, deriva de BALT, palavra que significa massa de águas tranquilas.

Desta forma, Ovar é o substantivo de O BAR, o mesmo que povoação situada à borda do mar e lugar apropriado para a entrada e saída de embarcações.

São estas as explicações fantasistas e que, apesar de tudo, são seguidas por numerosa corte de prosélitos.

Seguem-se, agora, as lógicas.

Comecemos pelo eminente filólogo, Dr. Leite de Vasconcelos, segundo o qual o nome de Ovar é derivado de Odvari, forma genitiva do nome de um proprietário medieval.

Aproveitamos a ocasião que se nos oferece para confessarmos que nos parece ser esta a explicação mais plausível, pois como já tivemos ocasião de mencionar, o nome das vilas deriva do apelido do respectivo senhorio. Acresce a circunstância que todos os elementos germânicos da toponímia peninsular são primitivamente nomes de pessoas.

Em Ovar temos o genitivo do nome medieval Odvarius, que é a forma latinizada dum nome germânico.

Sendo assim, é lógico que se pergunte: – Em que época viveu Odvárius, antigo senhor desta nossa Santa Terra?

A opinião mais correntemente aceite é que os elementos onomásticos das povoações tiveram lugar no antigo período visigótico. Abundavam nessa época os nomes de origem germânica.

Mas as inúmeras explicações não param aqui. Para o falecido Dr. José de Almeida a palavra Ovar tem origem no sânscrito e a sua raiz é Vari, o mesmo que região de águas, que bem pode aplicar-se à nossa região.

O saudoso Dr. Zagalo dos Santos escreveu que ulva significa género de algas, que nascem nos pauis e à beira de águas estagnadas. Ulvar não é mais do que apanha das algas, do conhecido moliço.

Concluía, pois, o erudito vereido, que Ovar, forma actual do verbo ulvar, «significa a terra ou região onde se procurava as algas, hoje moliço, alimento da duna, berço, calvário e coval de todos quantos nos vêm legando a Igreja, a rua, a ponte, o pinhaI, o casario, a sede de interesse, a poesia da tradição e a poderosa grilheta dos costumes, que fizeram a nossa personalidade.

E já agora, para finalizarmos esta despretensiosa conversa, detenhamo-nos um pouco na paisagem humana.

Como será o tipo vareiro?

Ora, já relatámos, se bem que apressadamente, que esta faixa do litoral assistiu a numerosas fixações de diferentes povos, que foram acrescentando à sociedade humana, que então se criava, as suas características próprias, mais predominantes.

Magalhães Lima defendia a tese da existência duma colónia de normandos, na vizinha Murtosa, o que não nos deve causar espanto, sabido que as nossas costas foram visitadas durante duas centenas de anos por esses intemeratos piratas do mar.

Em Ílhavo não oferece contestação de qualquer espécie o estabelecimento duma colónia fenícia.

Assim, os altivos celtas, os bárbaros visigóticos, os aguerridos godos, os cultos romanos, os morenos árabes e tantos outros povos caminharam e estabeleceram-se por vezes, por toda esta zona. Fixação longa, breve, meteórica, talvez um pouco de tudo, mas fixação e com ela a resultante dum caldeamento de sangues de várias raças e tipos.

Com esta mescla de povos se terá por consequência operado, no cadinho misterioso da vida, a origem étnica da população presente.

Que em todos nós se assomam por vezes resquícios de todos estes povos, é uma verdade que não devemos pôr em suspeita.

Correram os anos, os séculos sucedem-se, e os tipos somáticos de cada raça foram-se uniformizando, descaracterizando-se cada vez mais e com maior intensidade, à medida que o tempo decorria, até se chegar ao actual tipo do vareiro.

É inegável que o vareiro – que somos quase todos nós – conserva ainda nestes nossos dias, e em alguns casos mais frisantes, diferenciações nítidas: louros, altos, como os normandos e visigóticos, ou baixos de tez pálida, de grande e desenvolvido tronco, com pernas curtas, como os celtas, ou ainda morenos, de olhos negros, de características acentuadamente árabes. Tudo isto se depara, com grande grau de pluriformidade no homem de Ovar.

Mas, se a passagem, por vezes apressada, destes povos marcou para sempre o corpo do vareiro com os estigmas mais caracterizantes, as suas influências de cultura, de costumes, topónimos e tudo o mais relativo ao viver em sociedade, foi transmitido e assimilado, um pouco, pelos nossos avós.

E, já agora, seja-nos permitido lembrar que o lugar da bela Pousada da Ria, o conhecido Muranzel, é de origem árabe.

No próprio traje, que indubitavelmente sofreu a influência padronizada do tempo presente, ainda se encontram influências muitíssimo atenuadas, é certo, do que acabamos de afirmar: – o gabão vareiro, o barrete do pescador, e tantos outros trajes já completamente desaparecidos, não são mais do que recordações verdadeiras do vestir das épocas recuadas da nossa história, e por razões, a que não pode ser estranho o imobilismo congénito da nossa gente, conseguiu chegar a este século da energia atómica. / 9 /

Do viver dos vareiros, todos os estudiosos são concordes. Foi um viver difícil, eriçado de tremendas dificuldades, uns a cavar penosamente o solo agro, que transformavam em férteis hortas; outros estenderam-se ao longo da corda marítima, a lutar com o mar; outros, exercício da indústria da pesca da xávega; outros ainda dedicaram-se à indústria do sal, estabelecendo as primeiras salinas neste «Portugal à Beira Mar Plantado» e somente mais tarde é que Aveiro e Vila do Conde se dedicaram a esta actividade.

As salinas localizavam-se em Válega, e julga-se que tenham desaparecido há cerca de 500 anos, sem terem deixado continuadores.

Conjuntamente com esta indústria do sal, que atingiu uma importância relativa, desenvolveu-se a indústria da pesca, que chegou até aos nossos dias sem quase usufruir de qualquer progresso.

A pesca exercia-se, e ainda se exerce, em companhas de xávega, e invariavelmente, em todos os inícios da semana, os pescadores de farnel e saca aviada de roupa, deslocavam-se de Ovar ao longo da costa, na procura dos melhores pesqueiros de, aproximadamente, Espinho a Mira.

E como a jornada diária para a vila não era viável, vão de erguer toscamente os seus casebres de madeiros, junto do mar, e aí permaneciam isolados dos seus familiares, durante toda a semana, a curtir dilatadas nostalgias, na safra diária da pesca, se o mar o permitia.

Neste mister chegaram a andar para cima de 3000 almas, repartidas por várias companhas.

Depois do Natal acabavam os trabalhos marítimos e muitos pescadores procuravam canseiras no Rio Douro, Vila do Conde e Póvoa.

A pesca, em Ovar, começou por exercer-se na Ria. E só depois do vareiro ter sentido no seu sangue e na sua carne os desejos de continuar pescador, é que se afoitou ao mar.

Chegado o entardecer de sábado, regressavam a penates a matar saudades e a levar o modesto pecúlio do seu trabalho à família.

Quando o fim da safra vinha recolhiam a suas casas, juntamente com as redes.

Desde tempos imemoriais habitavam a Ruela, e a pouco e pouco foram-se deslocando para ocidente, conjuntamente com algumas famílias, dilatando-se a povoação pela margem direita do Rio da Senhora da Graça. Depois, para maior comodidade, foram-se aproximando da costa, instalando-se definitivamente nesta terra de S. Cristóvão à medida que ela distendia o seu domínio à custa da Ria e do Mar.

Quanto aos que se fizeram lavradores, o trabalho não foi menos pesado, no trabalhar desta terra árida, abandonada pelas águas e sofrendo constante erosão eólica.

Os que residiam perto do mar ou da ria puderam utilizar as ricas pastagens desta faixa de areia que corre paralelamente ao acidente geográfico.

Era a gelfa. E a gelfa, segundo a circunspecta Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, não é mais do que «um campo de pastagens de gado». A gelfa, que se estendia por todo aquele cordão, ao norte do rio Vouga, pertencia a Ovar.

À medida que se verificou o deslocamento progressivo da barra e da foz do Vouga, a caminho do sul, assistiu-se ao crescimento da vila e o seu enteste com Mira.

Houve o cuidado de, em documento público, firmado pelos maiorais, que o limite de Ovar ia até 3 léguas mais ao sul e a consignar este direito alçou-se um marco de esquadria, com o limite do concelho.

No mesmo documento exarou-se o direito dos lavradores vareiros usufruírem dos pastos da gelfa para os seus gados.

Mas o «homem põe e Deus dispõe», e não tardou que o padrão, título da nossa soberania, fosse arrancado e desprezados os direitos das nossas gentes, só lhes permitindo trazer o gado até ao lugar da Senhora do Bom Sucesso, da Torreira.

Depois a gelfa passou de arrendamento ao mosteiro de Grijó por cinco libras anuais, que lá trazia numerosas cabeças de gado.

Mas o mosteiro encontrava-se longe, e o lavrador astuto e pegado à terra, fazia vista grossa e algumas vezes à sorrelfa, outras vezes impante de sobrançaria, mandava para as pastagens da gelfa o seu gado, convertendo esta em logradouro comum.

E são estas as características que condicionaram as vivências do vareiro.

No homem de Ovar, compósito híbrido de vários sangues de diferentes povos, sobressai uma personalidade fortemente individualista, quase egoísta, introvertida.

Suporta nos ombros uma indolência congénita, um espírito sonhador, herdado dos seus avoengos árabes.

As dificuldades do próprio meio agreste, a luta constante com os elementos naturais que o cercavam, as tremendas dificuldades criadas com invasões sucessivas, moldaram no vareiro uma alma submissa, temente a Deus e por vezes desconfiada.

E, se em alguns, não é difícil encontrar o homem combativo, enérgico, a ressumar por todos os poros da pele ideais sem conta, podemos quase augurar-lhe que nas suas veias borbota sangue latino.

Tipo bem definido, o homem de Ovar?

Não. Longe disso. Cadinho de várias progénies, de várias raças, pesa-lhe sempre na sua psique um atavismo de dez séculos de que não pode afoitamente libertar-se.

 

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