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N.º 12

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1971 

   


Antologia Aveirense

João Pedro da Silva Tavares

(RUY DO VOUGA)

 

NOTAS

BIOGRÁFICAS

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É sempre difícil dizer qual será o escritor ou o poeta mais famoso duma terra, neste caso, do concelho da Murtosa. Não há dúvida, no entanto, de que João Pedro da Silva Tavares, mais conhecido pelo seu pseudónimo literário de Ruy do Vouga, deixou uma obra que, apesar do silêncio que a cerca e do esquecimento a que foi votada, merece os louvores da crítica e das letras nacionais.

Júlio Dantas prefaciou o poema Na Solidão dos Mundos e pôde referir que tendo visto representar a comédia lírica Duelo d'Amor no Teatro Nacional, já então tivera oportunidade de apreciar a fantasia, a bravura e a fuga lírica do talento de Ruy do Vouga. Verificara que, Na Solidão dos Mundos, essas mesmas superiores qualidades se tinham desenvolvido no sentido da sua mais elevada aplicação a uma poesia de intenções filosófico-sociais, claramente filiada em Guerra Junqueiro.

Neste prefácio, Júlio Dantas classifica Ruy do Vouga como um «elegíaco que se apaixonou pelas formas neo-românticas do alexandrino, e que nelas canta, com nobre eloquência e sincera emoção, os grandes ideais de justiça, de bondade e de amor».

Ruy do Vouga, que era natural do Bunheiro, onde nasceu em 1881, estreou-se na literatura com o livro de versos Brados da Mocidade, em 1903. Em 1918, escreveu o poema Na Solidão dos Mundos, já referido, que Júlio Dantas inclui, «pelo espírito que o anima e pelas elevadas aspirações que interpreta», na bibliografia da Grande Guerra de 1914-1918. Compôs também o poema «Mulheres da Bíblia», que foi publicado em 1935 e mereceu largos comentários da crítica de então. Publicou ainda o romance «Por entre Searas», em 1928, «Nas Margens da Ria», em 1937, e «No Altar da Pátria», em 1939. Para o teatro escreveu a comédia lírica «Duelo d'Amor», que foi representada, em 1913, no Teatro Nacional de D. Maria II.

 

           O FIM DO MONSTRO

 

Dorme a cidade nobre e bela do oriente.

Adormeceu há pouco ouvindo o mar fremente

Contar-lhe, com paixão e paternais cuidados,

Um caso sucedido em tempos afastados.

Era um caso d'amor cujo protagonista,

Um príncipe radioso e bom como a Beleza,

Obrara colossais prodígios de bravura

P'ra libertar a sua angélica princesa

Da tenebrosa dor duma prisão escura.

E ao ver adormecida a histórica cidade,

O mar arranca então um hino soluçante,

Tão cheio d'agonias,

Tão claro de saudade

Como se ali batesse o coração gigante

Do velho Jeremias.

Tudo deserto. O céu, soturno e carregado,

Sem uma luz sequer no âmbito infinito,

Ergue-se sobre nós como o tecto pesado

            Dum cárcere maldito.

Rompem, de quando em vez, do fundo dum tugúrio

Ou dum palácio ingente

A asa dum soluço, o sopro dum murmúrio

Como jactos fatais de sangue efervescente. / 48 /

Rebenta além um ai. Ele resume a dor

Desta infeliz cidade.

É a lava da paixão fremindo pelo horror

Das voragens sem fim duma fatalidade.

É toda um'alma ideal caindo das montanhas

De séculos de glória

À escuridão gelada, às lúgubres entranhas

Dos gelos eternais da Sibéria da História.

É como o ai febril duma cativa bela

Que estende o seu olhar pela amplidão sem fim

E já não vê luzir a compassiva estrela,

O astro sedutor

Que um dia lhe doirou a torre de marfim

Assente num sorriso esplêndido d'amor.

Ergue-se a Morte, uivando, em meio das ruínas.

Distantes, os leões, frementes como a lava,

Descerram torvamente as bocas purpurinas.

Passa uma sombra, além, fremente e lacrimosa.

É a alma desta Pátria, inda ontem majestosa,

Arrastando o seu manto humílimo d'escrava.

Ao longe explui a voz satânica e mordente,

Dominadora e forte,

Da sentinela atroz das feras do Ocidente

De guarda a este campo horrífico da Morte.

Os templos colossais, esfíngicos, funéreos,

Alguns tombados já ao ódio dos tiranos,

Têm a voz potente, imensa, de Mistérios

De centenares d'anos.

Eles viram passar as hostes triunfantes

De volta das batalhas.

Ouviram ressoar o grito dos gigantes,

Sentiram palpitar o seio das muralhas.

Eles viram passar os luzidos cortejos

Dos reis omnipotentes.

Sentiram coruscar muitos milhões de beijos

E ouviram soluçar muitos milhões de crentes.

Morreram gerações, tombaram monumentos

E tronos seculares.

E eles desafiando os ímpetos dos ventos

Como desafiando as cóleras dos mares.

Mas hoje, sobre o pó ou tristes como párias,

Soturnos, pensativos,

Os templos colossais de centenares d'anos

Só vêm através das ruas solitárias,

Carpindo – a dor imensa e santa dos cativos.

Rugindo – o ódio rubro e infame dos tiranos.

 

E a noite avança. Agora, o ingente mar profundo,

Como que se retrai, tomado de surpresa.

Lateja fortemente o coração do mundo.

Dilata-se, assombrado, o olhar da natureza.

Há o pavor gelado, estranho, indecifrável,

Das trágicas visões, das convulsões fatais.

Como que se presente o passo formidável

D' inúmeros milhões d'espectros colossais.

Tremem, violentamente, as almas das colinas.

E súbito – visão macabra e repelente!.

Avançam através das lúgubres ruínas

Dois hórridos clarões de luz fosforescente.

Estala uma feroz, diabólica risada.

E enchendo todo o mar e toda a imensidão,

Rompe uma voz cruel, tremenda, desvairada,

Mais rude do que a voz potente dum trovão:

 

«Levanta-te, cidade! Erguei-vos, gerações!

Eu sou um domador de povos e de reis

Mais forte que a Ambição, mais forte que as Paixões,

Tenho na minha mente um círculo de leis

E tenho no meu peito um antro de leões.

 

Fui eu que conduzi às cóleras supremas

As feras imortais a que chamais tiranos.

Liguei-as bem a mim com um milhão d'algemas

E vê-Ias-ei rolar, pelos montes dos anos,

Por entre aluviões d'imprecações extremas.

 

Fidalgo e sedutor, subtil em artifícios,

Eu tive muita vez as rútilas belezas

Chorando no meu peito as lágrimas dos vícios.

Queimou-me muitas vez a carne das princesas,

Sentei-me muita vez nos tronos pontifícios.

 

Depois de presidir à morte d'um país,

Depois de sentir bem o temporal desfeito,

Das cóleras brutais, sangrentas e Febris,

Eu vou-me descansar na doce paz do leito

E fico-me a dormir como um burguês feliz.

 

Na noite em que a Polónia, a velha peregrina,

Soltou, sob os meus pés, o seu extremo arranco,

Os cortesãos gentis da ardente Catarina

Viram-me atravessar, como um fantasma branco,

Os mágicos salões da régia libertina.

 

A arte d'intrigar é a minha acção mais grata.

Ninguém, como eu, baralha as cartas da Politica.

Fui ontem canibal, sou hoje diplomata.

Iludo os meus heróis na ocasião mais crítica

Cantando do Progresso a ingénua serenata.

 

Mas nesta lide intensa, aspérrima, sombria,

Neste lutar feroz de tanta majestade,

Eu sei que vou perdendo a minha simpatia.

Custa-me já erguer ao peso d'esta idade

E sofro d'amaurose e sofro d'anemia. / 49 /

 

Mas hei-de reflorir. A minha omnipotência

Ainda freme e impera em seu fulgor imenso.

Não pode triunfar tamanha incongruência.

Não pode triunfar tão rude contra-senso:

Criar-me o Coração, matar-me a Consciência!»

 

E fica silencioso, aterrador funéreo.

O seu olhar é como o tremebundo olhar

Da Morte contemplando um vasto cemitério.

A própria escuridão palpita como o mar.

E, rápido, uma voz longínqua e imperativa,

Severa como a voz da cólera de Deus,

Fulgura como a luz duma centelha viva

Caindo da amplidão intérmina dos céus.

E a voz ordena:

 

«Adiante, adiante, canibal!

Eu sou a Consciência, a mártir imortal!

Adiante, celerado! Há séculos sem fim,

Desde que a voz de Deus caiu sobre Caim

Que eu luto contra ti, esquálido Proteu!

Adiante, salteador! O mundo agora é meu!»

 

E nisto o velho mar, leão alucinado,

Atira para o ar os vagalhões gigantes,

Titânica explosão dum tédio concentrado.

Os raios e os trovões estalam, fulminantes.

A terra, rebramindo em fortes cataclismos,

Arranca imprecações, em fogo, das entranhas.

Relampagueiam ódio os olhos dos abismos,

Trovejam maldições as bocas das montanhas.

Perpassam, conclamando, as sombras desvairadas

Das vítimas gentis das raivas dos tiranos.

Goteja-lhes do peito o sangue das espadas,

Lampeja-lhes no olhar todo o rancor dos anos.

O Céu inclina um pouco a fronte tenebrosa.

Os arrancos do mar sucedem-se violentos.

A chuva cai feroz, tremenda, prodigiosa,

Por entre o assobiar terrífico dos ventos.

Sibilam pelo ar satânicas pedradas.

Ululam torvamente as campas famulentas.

Chasqueia a escuridão. Estrugem gargalhadas

Mais rudes que punhais de lâminas sangrentas.

E o Génio Mau da Guerra, inerte, dominado,

Misterioso como os ódios mais profundos,

Caminha como um ébrio, um pária escalavrado,

Para o extremo horror, p'ra a solidão dos mundos.

 

Pouco depois surgia o sol omnipotente.

Do peito varonil da histórica cidade

Rompia o brado imenso, o grito refulgente

E audaz da liberdade.

Partiam-se os grilhões de toda a escravidão.

E o mar profundo, além, fitando o azul dos céus,

Vibrava um hino imenso, um cântico à Razão

Como se fora a voz altíssona de Deus.

A PLANÍCIE

– Era uma planície imensa, fértil, em que a vegetação rompia numa forte exuberância de seiva e por onde os olhos mal afeitos a estes soberbos caprichos da natureza se espraiavam largamente, maravilhados de tanta simplicidade e beleza. Espessos cômoros, por onde esvoaçavam açodadamente pássaros, marginavam os arenosos e quase despovoados caminhos; outros, mais ténues, separavam propriedades, cingindo-as. Ao longe, e em torno, alvejavam casinhas de povoações tranquilas. Para lá, do lado do oriente, da negrura dos pinhais que coroavam as sumidades majestosas duma serra, emergia uma ermidinha branca, de linhas vagas – um como lenço saudoso, parecendo saudar o campo enorme. Os milharais enloiravam. Nos quintais, ao declinar do dia, gargalhavam as criancinhas, brincando. Álvaro também folgava. De quando em vez, da alma aromática dos campos, rompia uma canção langorosa, doce e flébil, que se evolava como sonhos de corações estrelados. Passando, assobiavam lavradores satisfeitos do seu dia. Chiavam carros ao longo das pacificas estradas. Da lareiras, onde mansamente crepitava a lenha do pinho familiar e amigo, subia um fumo subtil, que se escoava pela chaminé modesta e impregnava a atmosfera dum aroma consolador e sadio. A noite desdobrava lentamente as suas asas. E, como ave saudosa do seu ninho, Álvaro voltava apressadamente ao lar, onde braços carinhosos o cingiam numa explosão de amor, todo ele a resplandecer como estrelinha d'alva em manhã casta de Maio.

Sonhos meus, meus ideais e meus amores!

Morta a mão que na vida me impelia,

Sede vós minha eterna companhia,

Companheiros leais das minhas dores.

 

Sabe Deus que jamais os vãos louvores

Acharam eco em minha fantasia.

Não é o oiro a luz que me extasia

E nem da Sorte os rútilos favores.

 

Mas quisera uma vida sossegada,

De trabalho fecundo, aproveitada

Para fazer o bem, a bem de Deus.

 

E, por fim, já no termo da jornada,

Morrer como criança descuidada

E reviver no coração dos meus.

 / 50 /

CERCA O DANADO

– Cerca o danado!

E, ao mesmo tempo, dois tiros soavam lugubremente. O moço ergueu a fronte e olhou. Como se fugissem duma visão do inferno, Ângelo e Marta corriam ao seu encontro.

– Álvaro! Álvaro! Socorro!

D'além, armados de espingardas e de foices, alguns homens vinham perseguindo, furiosamente, um cão. E Álvaro compreendeu, num relance, o melindre de momento.

– Cerca o danado!

Num ímpeto, num arranco de decisão indomável, o mancebo conduziu as duas raparigas para detrás dum valado. Nesse instante, aproximava-se um velho, de enxada ao ombro. Álvaro tomou-lhe a enxada, apontou-lhe o refúgio das meninas, correu para o meio da estrada, colocou-se na direcção seguida pelo animal, alongou a cabeça por sobre um pequeno cômoro e esperou.

– Cerca o danado!

Longe, os cães uivavam lugubremente. No campo enorme, alem daqueles homens que perseguiam, encarniçadamente, aquela fera, ninguém. Pleno deserto. A natureza dir-se-ia contemplar, arrepiada, o combate. Nem a mais leve aragem sacudia a mais leve folha. Tudo imóvel, tudo silencioso e frio, como se fora dominado pela mesma consciência, atacada do mesmo irresistível assombro.

– Cerca o danado!

Por detrás do valado, a medo, espiavam seis olhos, horrorizados. Ângelo, numa alucinação, bradou:

– Álvaro! Álvaro Fuja!

E, entretanto, o animal avançava. Avançava cada vez mais distanciado dos seus rudes inimigos, em linha recta, numa corrida vertiginosa, estupenda, como impelido por uma força diabólica.

– Cerca o danado!

As duas meninas num desvairamento, ergueram-se.

Reconhecendo a inutilidade dos seus esforços, os homens suspendiam a carreira. Ao longe os cães uivavam cada vez mais aterradoramente.

– Cerca o danado!

Dum salto, Álvaro aproximou-se do cômoro, baixou-se, abriu com o cabo da enxada uma pequena fresta e espreitou. O animal continuava a avançar, galgando os campos, abeirando-se do cômoro, os olhos faiscantes como brasas, os lábios como que arregaçados num sorriso hediondo, ofegante, ameaçador, terrível. De repente, o mancebo levantou-se, a enxada relampagueou no ar, desceu com a rapidez do raio, ouviu-se um som estranho, de ferro penetrando em corpo duro, e, descrevendo uma volta no espaço, o cão foi estatelar-se na valeta da estrada, pesadamente e sangrando. Depois, um tremor violento e convulsivo, um retesar horripilante de músculos, um quase que imperceptível gemido, um sopro... e a imobilidade absoluta da morte. Então, Álvaro entregou a enxada ao velho, dirigiu-se às duas meninas, que de olhos esgazeados, tremiam, lívidas como cadáveres, falou-lhes, reanimou-as e, com elas, continuou o seu caminho.

 

páginas 47 a 50

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