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N.º 12

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1971 

Murtosa - Torreira e a Ria

 

MURTOSA

«As mais longínquas recordações da Murtosa, dos seus modos, das suas coisas, da sua gente, datam para mim dos tempos de férias que eu, estudante do Seminário, vinha passar com a minha mãe em Aveiro, na nossa pequenina casa da Rua da Estação.

Eram dois ou três núcleos de representantes femininos da raça que faziam por ali perto o seu quartel-general, donde irradiavam em todas as direcções, num largo diâmetro; quase todas mulheres alentadas, vestidas de preto, com um chapelinho tão chato sobre a cabeça que dava ideia de um prato raso voltado para baixo ou, se o tingissem de encarnado ou de verde e lhe pusessem as borlas, e não fosse irreverência dizê-lo, do chapelinho simbólico que encima os brasões dos bispos e dos cardeais.

Distinguiam-se elas em primeiro lugar no bairro pela piedade exuberante dos seus corações; davam logo sinal da sua devoção a Jesus, a Maria, aos Santinhos, como a violeta dá logo sinal de si pelo seu aroma ou o orvalho dos campos pela suave frescura que espalha à volta.

Ao mesmo tempo era gente de trabalho rijo e de infatigável indústria. Para o seu comércio de galinhas, de ovos, de banha de porco nas cantarinhas de barro preto de Arada, elas caminhavam como galgos as estradas todas da região, recolhiam quantidades de bicos abertos nas suas gaiolas de rede ou de ripas, acumulavam pirâmides de ovos sem quebrar nem um só, sustentavam com graça nas ancas, uma de cada lado, com simetria perfeita, como se fossem âncoras de jaspe ou de alabastro, duas bilhas de unto.

Se alguém se aproximava no caminho dalguma dessas «abelhas industriosas», como se diz no ofício de Santa Cecília, e lhe pedia troco de mil escudos ou de nota maior, se houvesse, ela deitava logo mão à algibeira que lhe pendia ao flanco e satisfazia, quase sem parar, ao desejo do transeunte. Talvez que não pudessem ser tão prontos os Armazéns do Chiado, por exemplo.

Só se lhes poderia não levar totalmente a bem que, ao passo que enchiam de aves e de gemas de ovo os mercados da vizinha Espanha, a nós nos deixassem por assim dizer sem um caldo de galinha para as nossas doenças e sem sombra de omeleta para o nosso fastio. Mas os grandes comércios quase se não compreendem sem estes profundos desequilíbrios, e é ter então um bocado de paciência.

Também sabiam, no intervalo dos negócios ou das devoções, descansar ao sol ou ao luar placidamente e regalar a vizinhança das cores pitorescas da fala própria da sua Murtosa.

Mais tarde, quando já ensinava em Coimbra, ou melhor, quando fingia com ensinar em Coimbra, fui à Murtosa fingir que pregava um sermão e vim de lá com a ideia de que a Murtosa, entre as freguesias maiores de todo o país, era um vasto terreno onde, por privilégio inaudito, não germinava a mais pequenina gramínea de escândalo; o jardineiro não tinha lá nada que arrancar ao solo, era só regar e dar graças.

Era de crer que um sangue destes, tão vigoroso, tão são, não se contivesse apenas nos estreitos limites do seu clã e tentasse, como tentou, emigrações de largo estilo.

Lá ao longe, porém, em Lisboa, na Ribeira, pelo Arsenal, a varina não se deixou tocar e muito menos absorver pelo meio, conservou e parece que conserva sempre a mesma pureza no coração, o mesmo Cristo ao pescoço e na alma, a mesma alegria no rosto, o mesmo vigor indomável nos braços, os mesmos traços inconfundíveis da sua origem.

É falso que, quando elas passam com as suas canastras de sardinha ou de pescada à cabeça, salpiquem de propósito os que cruzam com elas nas / 6 / passagens estreitas do Arsenal. Isso poderá acontecer às vezes, mas, salvo defesa legítima, é fora de toda a intenção malfazeja.

Lembra-me, quando estava em Lisboa, de uma delas que foi vítima uma vez da sanha de um alfamista; não sei se o enterro de Sidónio Pais, esse mesmo, foi maior que o dela, se não sou vítima de exageração.

(C. V., n.º 598, de 26-9-1942, pg. 1) 

 

Num esboço da Murtosa, dos seus campos, das suas águas, do seu panorama, da sua gente, ainda que imperfeito ou mais que imperfeito, ainda que traçado às escuras pela mão de um cabouco, como aquele que eu comecei a tentar nas linhas anteriores, não poderia certamente deixar de acentuar uma nota, entre todas talvez a que deita luz, ou uma luz mais do céu: a de ser ela, a Murtosa, um viveiro de vocações para a Igreja.

Dizem-me que os jardins da Murtosa já começaram a não ser tão ricos destas flores, como foram em tempos passados, como foram ontem, e que, agora, já não seria pouco contá-los por duas ou três vezes nos dedos das mãos. Não sei. O Sr. Arcipreste quis ter à volta de mim, na visita, os seminaristas e os sacerdotes que nasceram em berços da terra, embalados pela sua aragem; fez uma espécie de concílio patrício do clero da freguesia. Ora não direi que fosse propriamente uma capela sixtina nos dias das grandes solenidades de Roma; não direi mesmo que fosse a catedral de Lisboa ou de Braga, em maré-cheia de pontifical. Mas o cortejo das sobrepelizes, das dalmáticas e das capas de asperges era longo e vistoso na procissão; e, na Igreja, não só não havia acumulação de deficiência de ofícios e ministros, como até sobejavam clérigos para, assentados sem responsabilidades litúrgicas nos cadeirais, darem ideia de cónegos ou de beneficiados de alguma basílica. Não era ali com certeza que eu podia queixar-me ao povo de ser enorme a seara e serem poucos os operários para a trabalharem.

Vieram do norte e do sul, de Évora, do Porto, de Penafiel e de Beja, e será crível doutras proveniências que escapam no momento à minha memória. Havia lá um monsenhor e um cónego, dois arciprestes, uma dúzia de párocos, e outra, senão mais, de aspirantes mais ou menos próximos do sacerdócio. E o quadro, ainda assim, não estava cheio. Um ou outro, pela sua idade, conjuntamente com os embaraços de comunicações que nos tolhem os passos à margem da guerra, só de longe e em espírito assistiu à concentração da Murtosa. Outros ainda, como um capitular da Sé de Évora, o cónego Silva, nem os intimidaram as distâncias ou os desagravos actuais das viagens só os retiveram no seu posto atenções in loco e manobras especiais dos cargos que desempenham.

Eu creio que é ainda principalmente à Murtosa – e agora quando digo Murtosa quero alargar um pouco mais a vista e referir-me não só à terra como a toda a região murtoseira – creio que ainda é principalmente a ela que a nova Diocese de Aveiro deve a consolação e a glória de conceder vocações a outras que, embora mais ricas de tudo o mais, nos pedem de qualquer maneira a esmola de sacerdotes. Évora, Beja, Coimbra, o próprio Patriarcado, têm por lá, em maior ou menor abundância, filhos que adoptaram das beiras do nosso Vouga.

(C.V. n.º 599. de 3-10-1942, pg. 1)

 

TORREIRA

Eu não gosto de exageros de espécie nenhuma, embora ache às vezes graça a certas palavras grandíloquas, altissonantes, ou a certas imagens ou panoramas vistos à lente de aumento, sem cerimónia coloridos, hipertrofiados, com que nós, na febre do entusiasmo, pretendemos pôr em relevo a beleza que nos fascina ou a admiração que acima de nós e da nossa pequena medida nos ergue. Também a hipérbole pode servir para, feitos os devidos descontos, ficarem as coisas no seu quadro justo.

Nesta ordem de ideias é que eu não receio de dizer que, de todas as terras que eu conheço no mundo, sem falar de Aveiro, porque afinal de um aspecto de Aveiro se trata, outra não há que tenha um encanto, uma magia de águas, de sons, de ruídos, uma luz tão doce, um sol tão límpido, um céu tão transparente, tão meigo, como tem a Torreira. Das terras que não conheço, se alguém me disser que há alguma em qualquer parte mais linda do que a Torreira, tenham paciência, eu não acredito.

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Barco Mercantel

E para prova é que eu, no passado domingo, durante a procissão do rio ao mar, do mar ao rio, e do rio pela lomba à igreja, com uma capa de asperges por cima dos ombros, com uma mitra apertada na fronte, com um báculo de ferro maciço nas mãos, à hora dum dia quente, senti por tal maneira refrescado a velhice, acordados os lânguidos nervos, que, quando alguém me perguntou se eu iria porventura cansado, eu respondi, quase indignado pela injúria que essa dúvida poderia representar para os ares da Torreira:

– Ó meu caro senhor, na Torreira nem os velhos se cansam, ainda que os ponham solenemente debaixo dum pálio, cobertos de espessas vestes umas por cima das outras, levando às costas ou nos braços o peso de um mundo! Como é que na Torreira se morre?

E o que ainda mais completa o enlevo do quadro e lhe imprime carácter é que a gente que a anima está / 8 / em perfeita harmonia com as cores inefáveis do ambiente que a cerca. As criancinhas têm nos olhos a candura dos anjos; embora mais ou menos torradas pelo sol do seu berço e pela áspera exalação das águas, mesmo assim, descalcinhas algumas, de andarem habituadas aos pés na areia, fariam lindas figuras no paraíso, com umas asas aos ombros, a voar e a piar como os passarinhos à roda de Nossa Senhora. Teria aqui Murillo farta fonte para se inspirar.

Dizem que os pescadores são rudes e não se acanham lá muito de deitar a sua praga ao mar, às redes, aos barcos. Isso não teria lá grande alcance e estaria para os pescadores pouco mais ou menos como a camisola aos quadrados com que andam cobertos ou como o barrete de maçaneta que, como uma bandeira, lhes flutua à cabeça. Mas estes, é vê-los: sem afectação, sem arranjos, todavia tão correctos, tão graves, tão sociais, tão gentis, digamos mesmo tão afectuosos, tão abertos de alma, de coração, que até faz bem estar com eles. Até na maneira como as mulheres e as raparigas da terra se aproximavam do pálio para deitar as suas flores à passagem do Bispo, com aquela compostura elegante e modesta que faria lembrar o Arcanjo S. Gabriel no quadro da Anunciação de Fra Angélico, pétala por pétala até à última, e depois a reverência, o olhar, o sorriso final, confundindo-se em seguida na multidão, até nisto, neste pequeno detalhe, se nota qualquer coisa de polido, eu diria de aristocrático, se não tivesse medo de algum sarcasmo, de diamante a luzir através das sombras da sua capa.

Está-se a ver portanto o aprazível cenário que foi no fim, quando, ao sair da igreja, todos passaram diante de mim e uns, com a moeda pronta nas mãos, outros a procurá-la nos bolsos para a deitar na bandeja, foram enchendo das suas esmolas a sacola do Seminário.

Quando eu dizia a um pequenito, por exemplo: – Mas agora ficas sem dinheiro para os teus rebuçados – ele encolhia os ombros num ar de isenção, e dizia: – Ora! – como quem diz: não se trata agora de rebuçados! maiora premunt!

Quando eu dizia por exemplo à mulher do sacristão ou a outras mulheres em igualdade de circunstâncias: – Mas o seu homem já deu; já deu o seu filho! – elas, baixando os olhos, quase envergonhadas do justo reparo, diziam algumas: somos nove lá em casa! diziam outras: somos dez, somos doze! e acrescentavam todas: não há nenhum lá que não queira dar!

(C.V. n.º 877 de 6-3-1948. pg. 2)

Do livro «Aveiro – Suas Gentes. Terras e Costumes» de D. João Evangelista de Lima Vidal

 

* * *

Por toda a Beira Litoral o mais afamado e activo centro de pesca de arrasto era, naqueles tempos, na costa da Torreira, e o seu peixe, mormente as sardinhas, desfrutava as merecidas auras de celebridade retumbante, de saboroso que ele era!... Com localização mais cerca e directa, tal entrepósito achava-se ao alcance menos tormentoso e árduo, das isoladas povoações serranas, perdidas pelas vertentes das montanhas circundantes que só eram atingidas com suado custo e trabalheira pertinaz. Modo de vida sacrificante, quer o suão encardisse os ossos ou as frigideiras dum verão tórrido assassem as carnes dos azemeis em recovas, palreiros, arrastando sapatorras a chiar no trato quase diário de seus machos de cabrestos e cilhões tachados, guiseiras e chocalhos de cobre soantes. Elas, ajoujadas sob as canastras cheiinhas, bufarinhavam pelos cerros ínvios aqueles clúpeos de gordos lombos – presigo maior, então, do pobre! – a parecerem retraços dos esmaltes verdes de Palissy, tantas vezes versicolores nos montes das lotas, ainda vivinhas a saltar, sempre que um gume de sol a poalhar vivo, lhes chapava sobre as escamas da farpela, embebida da salsugem da água, os raios irisados da sua luz, como reflexos de toda a gama dum espectro.

Assoberba-se, igualmente, com seus ares e tomares, fumos ostentosos de praia aristocrática, certo que, pelos meados do século passado, aos seus banhos de fundo e limpo mergulho com pimponices sobre as cristas farfalhantes das ondas, e aos bailes escolhidos do «palheirão» forrado no seu interior pelos brocados das esteiras de bunho, a fidalgaria de muitas léguas em redor, pressurosa e folgazã, acudia a recrear-se aos seus passatempos de alacridade e devaneios, embora muito comedidos e sornos, entregando-se à regalice daquelas areias fulvas e tão empachadas de um salutar iodo. Os rios Vouga e Águeda carreavam-Ihe às barcadas ruidantes e de penachos coloridos com bandeiras festivas nos mastros e à proa, o melhor e empavesado gentio das terras que banhavam, e as raparigas morenas embiocadas nos capuchos lá das bandas do Caramulo, pegureiras bonitas, esmoleres tantas vezes, sempre a alegrar com a sua presença, mesmo no sorumbático do seu burel, as danças-de-roda das varinas pé-leve.

Por lá se divertiram morgados estroinas e pimpões, gentes das cortes amesendadas em altas cavalarias, titulares e políticos de nomeada, burgueses remediados e pobretes em ruínas. José Luciano de Castro, que veio a ser um árbitro da vida política nacional, era o frequentador dos seus banhos higienizados, passando nesta praia as suas férias de estudante buliçoso, e até nela publicou o Boletim da Torreira, gazeta de humorismos e tentativa de literatices etnográficas locais, publicada em 1853 e impresso na tipografia do Campeão do Vouga, em Aveiro. É pena que os nossos / 9 / arquivos, mormente os da nossa região sempre preguiçosos em resguardar dos estragos do tempo e de uma criminosa dispersão estas preciosidades, não possam conter no fundo das suas estantes os cinco números do jornalzinho que tão grande celeuma e intrigas de salão chegou a levantar, entre as donas banhistas do tempo na praia escolhida da sua assídua preferência.

Perdura ainda hoje, entre os mais velhos murtoseiros, a forma da sumptuosidade das festas em que foi recebido o duque de Loulé na sua visita à Torreira, em 1867. Este venerando ancião era filho do também duque de Loulé, velho Mendonça, descendente da estirpe dos senhores de Biscaia, ligados aos Vale de Reis e ao Rolim que tinha sido condenado à morte por ser um dos que invadiram Portugal com as hostes de Massena e a quem D. João VI, em 1821, perdoou no Brasil quando ele pessoalmente o procurou para tal fim, conforme pormenores manuscritos num diário cuja cópia coeva o registo do meu arquivo avaramente guarda. Havia sido o chefe do chamado partido histórico, o qual em 1856 fora incumbido de presidir a um governo moderador sem qualquer inspiração setembrista, erguido perante o grupo de políticos audazes da Regeneração em seus planos de fomento e de economia, aos quais a mocidade ardente de Fontes dava alentos impulsivos, agitando doutrinas renovadoras.

Acompanharam-no nessa diversão e passeio à linda praia que toda ela se movimentava então nas estúrdias sonorosas da romaria de S. Paio, – festa do melhor cunho e feição folclóricos da região marinhoa – seu filho o conde de Vale dos Reis, o ministro de Estado honorário Matias de Carvalho, o par do reino José da Costa Pinto Basto, D. Luís da Cunha, Figueira Freire, Francisco Ribeiro da Cunha e outras individualidades de relevo. O trajecto fluvial fez-se, ilustrado de grande animação e calor eufórico de vibratilidades emocionais, saído do cais da Ribeira, em Ovar, num cortejo inicial de 14 barcos que depois engrossou e se converteu numa flotilha embandeirada passante de 40 embarcações. Os edis camarários de Estarreja e Sever do Vouga apareceram a fazer os seus cumprimentos com bandas de música, assistidos pelas pessoas mais gradas das suas vilas. Os ares atroavam-se com o estampido dos foguetes e dos vivas. A certa altura desta grande manifestação de simpatia acorreram também em mercanteis adornados com festões de flores os arrais da Torreira e «era digno de ver-se a alegria que respiravam aqueles rostos crestados pelo sol de Agosto, aquelas expansões de entusiasmo de almas singelas»..., no dizer do cronista do Campeão das Províncias. Nunca, nos factos históricos desta costa se viu uma coisa assim!...

Então, pelas tardes serenas, já de luz baça dos crepúsculos bem serenos e varridos de pesadelos, que o mar, sortílogo aglutinador, tanta vez, dos maus humores, das tristezas mofinas e sem conto, ia mergulhando nos fundos glaucos do insondável pélago, a empertigada gente d'algo, flamante de chanças, estadeava-se pela praia, descalça, no costume obrigado de todos os dias, amparando-se ao seu cacetinho de brunido marmeleiro ou de cana da índia, no jeito daqueles janotas e faias dos tempos faustosos do Império.

Bem depressa os pares sequiosos se perdiam, em andanças e contradanças, por entre a neblina das moiteiras misteriosas, passarinhando até encontrá-las, àquelas apetecidas corcovas de afundimento abertas pelo vento mareiro, a concitá-los a inscrever na areia alisada dos seus terraços, as garatujas de um gorjeio de amor. Como a enflorar-lhes a cor, era lá que se encolhiam sobre os caules veludosos ou rastejavam nas brandas monticulações, as gotas azuis dos «cordeirinhos», pequeninas lágrimas presumidas, dir-se-ia antes pingos do azul-claro de Signarelli que um romântico artista, amante dos silêncios e dos ermos nostálgicos, por aqui e por ali, deixasse cair da sua paleta distraída, ao pintar uma das suas maravilhosas telas com a luz divina desses entardeceres.

De passo, as donas a quem o Diabo nada quis pedir, destacadas em vigiar ao rondó vespertino, as ondas, pertinho, a delir murmúrios e cícios de leves sonidos embaladores como canções de berço, toda a beleza de tons sanguíneos do sol a deitar-se nas lantejoulas das águas, deixaram-se ficar para trás, embevecidas de tantas maravilhas e a simular que entretidas no arregaçar tímido das saias compridas de folhas e rendas, quando a mareta sem a menor pudicícia e recato, vinha espreitar-lhes os segredos e tocar com os salpicos das espumas, os artelhos finos, de pele macia, mais alva que o luar...

O regresso fazia demorado, pelo lusco-fusco dentro, já a entenebrescer com a volta, coisas e pessoas numa fusão indecisa de tons, e começavam também a espreitar, rebitados na umbela azul dos céus um nada encandescidos, os cravos das primeiras estrelas, enquanto as ondulações mansas das vagas dobravam sobre o lençol das areias, epenechadas as suas cristas pela ardentia de miríades de seres que entornavam, à doida, incontáveis, infinitos cântaros de leite luminoso.

Vinha depois a ceia, suculenta, que os arrais das companhas, às famílias eleitas por seu trato e méritos, haviam antes amimado com as espécies finas, abocadas às redes dos últimos lanços. Após o prândio tradicional, as matronas sem mester de vigiar encolhiam-se ao canto aconchegadinho da sala ainda tépida das quenturas dos últimos raios do sol. Sentavam-se que nem mouras acocoradas sobre esteiras a rezar o / 10 / terço pelos seus mortos, para que Deus os aliviasse depressa das penas dos Purgatório. Nesse comenos, as julietas, essas, porque o folgar e divertir era atributo funcional do seu veraneio e da sua mocidade, iam-se para o «palheirão» assim popularizado, mais tarde substituído pela «assembleia» chique dos Sebolões. Urdiam logo uma roda de jogo de prendas, chegadas aos toques das pernas dos romeus, beliscões inocentes ou à surrelfa, de permeio, ais e soluços, desejos e anseios. Erguiam-se a jeitos de melopeia arrastada e plangente de «amentar as almas» no ermo profundo da noite, as estrofes mirradas do Noivado do Sepulcro, em que um sadismo em voga, romântico e piegas, tange emotivamente as cordas dos alaúdes nacionais. Tal uma nódoa de azeite, tanto alastrou pelos salões perfumados a incenso, da gente de prol, ouro-velho e sanefas de secular brocado, ora até pelas alcovas pintalgadas a ocre das marafonas. Foi uma praga como as do Egipto!...

Naqueles bons tempos passados, esta praia aliciava, assim, sem esforço, a especial atracção dos paroquianos das redondezas que nela vinham divertir-se a seu modo e gozar horas bonançosas, fora das agruras do dia-a-dia trabalhoso e cruciante. Depois, as modinhas do antigo curso foram obliteradas como velhas usanças botas-de-elástico, por anacrónicas e até risoteiras ridículas mesmo na opinião de muitos fabianos. E a afamada estância perdeu os seu créditos de rejuvenescimento de físico em ruínas, sendo desprezada pelo seu exotismo de patina, palmar, à margem das modernidades espampanantes que outras mais audazes e aventureiras ultrapassaram por seu mais fácil acesso, melhores cómodos, vida mais alegre, luxuosa, com regalos de prazeres, jogo e sensualidades..., que não nos mimos da Madre-Natureza tão pródiga, ar aberto, paisagens de fascinação, encantos múltiplos e seus primores de recato – complexo de jucundidade e abonos morais, muito de atender e preferir, se este mundo não andasse do avesso.

E porque os olhos, tocados e encandescidos de alumbramentos e de falsas miragens, já não vêem a nitidez dos melhores e mais elevados lances a alcançar, há que fornecer-lhes a visão doutras perspectivas mais rúbidas, doutra ética com aparências mais aliciatórias, ainda que seja de conturbado regabofe para presigo do corpo, que a alma, ilaqueada pelo efémero, já não conta...

Do livro «Murtosa – Gente Nossa» de Lopes Pereira

 

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A ria é um enorme pólipo com os braços estendidos pelo interior desde Ovar até Mira. Todas as águas do Vouga, do Águeda e dos veios que nestes sítios correm para o mar encharcam nas terras baixas, retidas pela duna de quarenta e tantos quilómetros de comprido, formando uma série de poças, de canais, de lagos e uma vasta bacia salgada. De um lado o mar bate e levanta constantemente a duna, impedindo a água de escoar; do outro é o homem que junta a terra movediça e a regulariza. Vem depois a raiz e ajuda-o a fixar o movimento incessante das areias, transformando o charco numa magnífica estrada, que lhe dá o estrume e o pão, o peixe e a água da rega. Abre canais e valas. Semeia o milho na ria. Povoa a terra alagadiça e, à custa de esforços persistentes, obriga a areia inútil a renovar constantemente a vida. Edifica sobre a água, conquistando-a, como na Gafanha, onde alastra pela ria. Aduba-a com o fundo que lhe dá o junco, a alga e o escasso, – detritos de pequenos peixes.

Exploram a ria os mercantéis, que fazem o tráfego da sardinha, os barqueiros que fazem os fretes marítimos, os rendeiros das praias que lhe aproveitam os juncais, os marnotos, que se empregam no fabrico do sal, os moliceiros que apanham as algas, e finalmente os pescadores da Murtosa, que são os únicos a quem se pode aplicar este nome, e que entre outras redes usam a solheira, a rede de salto, a murgeira e a branqueira.

O homem nestes sítios é quase anfíbio: a água é-lhe essencial à vida e a população filha da ria é condenada a desaparecer com ela.

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Se a ria adoece, a população adoece. Segundo Pinho leal, em 1150, Aveiro tinha doze mil habitantes e armava 150 navios. A barra atulha-se, a terra decai. Em 1575, com a barra outra vez entupida, os campos tornam-se estéreis e a cidade despovoa-se. A alma desta terra é na realidade a sua água. A ria, como o Nilo, é quase uma divindade. Só ela gera e produz. Todos os limos, todos os detritos vêm carregados na vazante até à planície onde repousam.

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A sardinha, sempre a saltar, vivinha.

Ninguém aqui vem que não fique seduzido, e noutro país esta região seria um lugar de vilegiatura privilegiado. É um sítio para contemplativos e poetas: qualquer fio d'água lhes chega e os encanta. É um sítio para sonhadores e para os que gostam de se aventurar sobre quatro tábuas, descobrindo motivos imprevistos. É-o para os que se apaixonam pelo mar profundo; e para os medrosos que só se arriscam num palmo / 12 / d'água – porque a ria é lago e mar ao mesmo tempo. Com meios muito simples, um saleiro e uma barraca, tem-se uma casa para todo o verão. Pesca-se. Sonha-se. Toma-se banho. E esquece-se a vida prática e mesquinha. Dorme-se ao largo, deitando-se a fateixa ou abica-se ao areal: um foguaréu, uma vara, a caldeirada... Começam a luzir no céu e na ria ao mesmo tempo miríades de estrelas. Vida livre dalguns dias, de que fica um resíduo de beleza que nunca mais se extingue. É a ria também sítio para os que querem descobrir novas terras à proa do seu barco e para os que amam a luz acima de todas as coisas. Eu por mim adoro-a. É-me mais necessária que o pão. E é esse talvez o ponto da nossa terra onde ela atinge a beleza suprema. Na ria o ar tem nervos. A luz hesita e cisma e esta atmosfera comunica distinção aos homens e às mulheres e até às coisas, mais finas na claridade carinhosa, delicada e sensível que as rodeia. A luz aqui estremece antes de pousar...

 ...Aqui o drama é o da humidade. As névoas têm na ria uma vida extraordinária: cada gota possui uma alma distinta e irisa-se como uma bola de sabão. De forma que não só as figuras se harmonizam com os fundos, mas a todo o momento e à minha vista a paisagem húmida se transforma e muda de aspecto: afasta-se, prolonga-se, não tem fim nem realidade. Ao longe árvores violetas nascem n'água, o horizonte ainda cinzento teima em fixar-se, mas espumas azuis já estremecem junto a reflexos verdes. Bois pastam na água, um barco navega no interior das terras... A ria é mágica e possui uma luz própria que a veste. Vem acolá uma vela vermelha que é uma nota inédita neste sonho diluído em água... É este o momento em que começa a aparecer o azul e que convém anotar. Dissolvem-se as névoas, mas deixam o ar carregado de humidade, deixam a luz reflectindo-se em milhares de gotas invisíveis, deixam a atmosfera impregnada de frescura e de vida. Esta passagem para o azul faz-se lentamente até o azul dominar de todo. Atenuam-se as neblinas e ficam ainda farrapos suspensos, derretidos nos agueiros, agarrados à terra e embrulhados nas ervas. Um grande lanço de água vem até mim em pequenas ondulações azuis e por camadas sucessivas, como estas manchas que os pintores acumulam nos quadros com a ajuda da espátula. Junto ao barco a água reflecte um azul vivo e fresco como nunca vi. Longe azul desmaiado, perto azul como tinta. Vejo diante de mim a amplidão azul, num assombro. E todo este azul se põe a estremecer nos milhões de gotas extáticas de que se compõe a atmosfera e que se impregnam agora e ao mesmo tempo da mesma cor... Azul, azul, azul...

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Distingo um fundo muito roxo – o recorte dos montes. Aqui a ria mais larga, aumenta ainda e divide-se, de um lado até Ovar, do outro até Salreu. É além, é além... Casinhas num reprego da encosta, onde apetece viver, perdidas no mundo e esquecidas do mundo. Mesmo à beira de água e reflectida na água a Murtosa aureolada de oiro: algumas casas brancas reluzindo, algumas árvores muito verdes em contraste e um canalzinho de abrigo para os barcos estranhos, com o leme estrambólico atravessado por um pau. Aconchego e sol. A fantástica esquadrilha desdobra-se na água que estremece, menos em certos veios que ficam lisos de propósito para reflectirem os mastros num sarrabiobisco até ao fundo.

Agora o barco encalhou e a água está dourada até onde a vista alcança. Deixo-me ficar, olhando para o funda da areia. A meu lado há um verde que nenhuma paleta pode dar um verde vivo, um verde trespassado da luz que se côa pelos canaviais e todo se arrepia à superfície do veio, ao mexer das quatro tábuas do barco, para enfim parar absorto no silêncio. Bóia aqui nestas águas uma alma entontecida, humilde e tímida tão ténue que pode desaparecer num sopro de um momento para o outro. Existe, mas não se sabe bem que existe. É quase nada. Um fio de oiro, silêncio, um reflexo de luz... Andem devagarinho com o barco – não vamos nós assustá-la.

Do livro «Os Pescadores» de Raul Brandão

 

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Eu nunca tinha visto a ria de Aveiro. Daí – dirão – este meu entusiasmo. Ora a laguna, com os seus múltiplos canais, seus campos encharcados, seus horizontes abertos, sua exuberância de luz e seu sonho / 13 / de distância – é bela sempre e cada vez mais, afirmam os que todos os dias se banham no mistério da sua extensão panorâmica.

A ria de Aveiro – é uma maravilha. Fujo a descrevê-la, porque isso não está agora no meu programa.

Faltam aos meus olhos os palácios de mármore, as colunas de oiro, as igrejas erguidas em renda, as margens coalhadas de sonho e arte: S. Maria degli Scalzi, S. Marcuola, a casa dos Contarini, e a distância de oiro sobre gaze de azul de S. Giorgio Maggiore. Mas –lembro-me de Veneza... Uma Veneza despida, no seu estado imaculado, em plena exuberância primitiva, onde se adivinha a vontade de Deus, de tudo ficar como ele a criou. Maravilha contemplativa!

O canal segue até o mar, lá pr'a baixo, nem eu sei pr'a onde. E as margens respiram humildade e humidade; evolam-se dos pisos encharcados emanações salinas, vêem-se fumos de casas que há um quarto de século abrigam heróis que refazem as areias em seiva, até darem rosas e pão, frutos ,e sombra – e, ao longe, com riscos de asas brancas de patos ou de gaivotas, esplendem as cidades: cidades agachadas que se fizeram a esforços que nenhum homem da Cidade é capaz de entender: cidades a que se chamam vilas, aldeias, lugares, praias de doce título e dulcíssima vida laboriosa: a Gafanha, mais Gafanha, S. Jacinto, a Murtosa, o Bunheiro, a Torreira. Os fundos cenográficos são recortados em bruma que não cabe nas paletas dos pintores: a Gralheira, o Caramulo, e adivinha-se o Buçaco na má vontade da manhã, que acordou sombria.

É uma maravilha a ria de Aveiro!

de Norberto de Araújo

 

* * *

No velho pontão da Bestida, que as invernias todos os anos despedaçam, dir-se-ia que Portugal acaba. Portugal e a terra na sua solidez física, nos seus costumes mais vulgares, e até nalguns dos elementos mais primordiais da sua vida. É outro mundo, líquido, brumoso, feito de distância azul, isolado do continente por uma ria maravilhosa, paleta de mil cores, tão larga que cabe nela o Tejo, nos seus dois quilómetros de água tranquila e adormecida. Fecham-se atrás de nós, como sob o pano de uma ribalta, as terras ribeirinhas da Murtosa, e de Bunheiro, entre pâmpanos virentes, muito tufados, milheirais extensos que ondeiam as suas bandeiras doiradas, pomares cerrados, onde os ramos já nos estendem os frutos maduros, corados de sol, que fendem a casca, pejados de sumo.

Uma fotosfera prateada envolve a ria que vem do Furadouro, lá longe, para nascente, recortada de canais, hérnias líquidas daquele ventre de água, extraordinariamente fecundo que se desentranha em admiráveis espécies piscatórias que, por vezes, como a carnuda tainha, se vêem saltar à superfície cristalina, tão límpida que se enxerga o seu fundo doirado de areia, manchado duma verdura submarina, o moliço, com que a dez léguas em redor se adubam as leiras.

A visão da paisagem, na sua penumbra sobrenatural, ascende em sonho na visão extática de lirismo. Não há uma cor violenta, naquela paleta aquática, mas tons, sobre tons, prateados e violetas, tão etéreos e fugitivos, que parecem pintados numa laca japonesa, pelo pincel dum Outamarco ou dum Fujita.

de Artur PorteIa

E, conforme a hora e o cenário do céu, essa paisagem elisiamente calma, ao mesmo tempo movimentada e silenciosa, oferece tonalidades diversas: ora é toda em nuances de sanguínea, com toques e relevos de oiro; ora em tons de azul, frescos e transparentes como os das marinhas dos azulejos de Delft; agora é o verde que predomina em gradações sucessivas, desde o verde-negro dos pinhais ao verde-marinho das águas paradas; depois é o alaranjado dos poentes; depois o violeta dos crespúsculos; depois os cinzentos desbotados; os pálidos tons de pérola, as aguadas de nanquim da noite que começa...

*

«E se há luar, se a lua cheia, surgindo atrás da cumeada das serras longínquas, vem banhar toda essa extensão de águas e de planícies – então os aspectos que ela oferece têm qualquer coisa de maravilhoso, de irreal, como uma visão criada por um sortilégio mágico. Entre o céu e a ria, a linha da terra fronteira é apenas um longo e fino traço escuro, um delgado filete de sombra. Os astros que cintilam no espaço / 14 / cintilam também nas águas, como se o firmamento se desdobrasse ou prolongasse em abismo aos nossos pés. E de leste a oeste, sob a incidência do luar, um grande leque de prata tremeluzente abre o seu enorme triângulo luminoso sobre a água, a que a aragem apenas dá uma ligeira crispação. É um esplendor! Então, num grande silêncio, em que só o monótono rumor do mar se ouve, uma pequena bateira de pesca movida a remos, um moliceiro velejando lentamente, um mercantel impelido à vara, atravessam, lá ao longe, essa zona iluminada, num destaque nítido e cortante de pequenas sombras chinesas. E dir-se-ão visões de sonho, barquinhos de fadas, tripulados por minúsculos gnomos, negras gôndolas misteriosas, deslizando sem ruído numa laguna de águas argentinas...»

*

Os moliceiros e os pescadores da Murtosa são os que mais a povoam. Toda a semana, durante alguns meses, vivem sobre essas águas, apanhando o moliço ou lançando as redes, dormindo na proa dos seus barcos, cozinhando neles ou perto deles, em terra, a sua frugal caldeirada.

«Ria de Aveiro» de Luís de Magalhães

Mas a ria enche-se de asas brancas, garças reais que coalham o azul, além sobre a barra, onde a névoa fumega indecisa e lenta, e do outro lado, sobre Pardelhas, Estarreja, até Ovar bolinando ao vento.

É uma verdadeira esquadra, embandeirada em festa, porque hoje é dia de São Paio, na Torreira. Cada barco traz a sua povoação, a sua aldeia, a sua canção, as suas guitarras e adufes. A ria torna-se melodiosa, e sussurra, vibrante nas suas ondas de água, finas como cabelos de mulher, que os ventos represados percutem como uma arcada de violino. Durante muito tempo embala-nos aquela música aquática, dolente e enlanguescedora. As tonalidades mudam. Já não há azul. Os longes tornaram-se brumosos, e a água oleosa, baça, não tem uma vaga, uma crispação. Dir-se-ia um lago imobilizado por um silêncio astral. Um cinzento de agonia envolve esta paisagem de além mundo, prostrada na morte, se o sol não acordar antes da tarde.

Mas,sobre a Torreira, estralejam os primeiros foguetes da festa, com os seus balões brancos que, num jeito de pára-quedas, ficam a pairar no céu, e as canções dos barcos, que já não se ouviam, volta a ecoar numa harmonia de alaúde, sonambúlicas na sua tristeza de ladainha. Nem no dia de hoje o homem deixou a faina da ria. Ainda tem tempo para ir à sua casa lacustre trocar os farrapos curtidos de salmoura pela véstia negra de festa. À tona d'água vogam os moliceiros, de amura baixa, velas brancas, quadradas muito, altas sobre o mastro, a proa subida e recurvada como o pescoço dum cisne, voltado para trás. O seu galbo esbelto, de fina estrutura náutica, que alguns dizem herdado dos Fenícios, mas que seria mais exacto, talvez, atribuir às embarcações dos Vikings, é uma curva alada, quase imponderável, que não fende as águas, antes desliza desposando as suas formas líquidas, numa subtil perfeição de equilíbrio.

Cada um ostenta à proa, num ingénuo painel pintado de cores álacres, numa rusticidade de ícone, a que não falta o fundo de oiro, um rei coroado, de sumptuoso manto de arminhos, com todos os atributos de majestade. É modelo antigo que a tradição mantém ainda. Mas há variantes. A mais vulgar é um par de noivos com grande legenda de graciosa malícia, que o artista assina.

Dois homens, um à vara e outro ao moliço, este último com dois ancinhos, verdadeiras cravelhas de guitarra que vão rapando o fundo da ria e são levantados, alternadamente, constituem toda a sua tripulação. Há dezenas, centenas, todos do mesmo tipo, variando, apenas, na pintura da quilha, por vezes recortada da «falca», em largas bandas horizontais, onde o negro é constante, orlando dum almagre que criou ferrugem de oiro.

Mas a ria enche-se, mais e mais, de velas brancas. Parecem as núpcias do mar, que vêm de longe, de Aveiro, no seu labirinto de esteiros, vales e canais, aqui alargando, em golfos de contornada parábola, além mais impetuoso e extenso, quase sem limites terrestres, carreando peixe ou criando-o no seu fundo rico de plâncton.

Artur Portela, O São Paio da Torreira, a Romaria dos Pescadores

 

páginas 5 a 14

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