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N.º 11

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1971 

 

Antologia Aveirense

 

EMÍDIO NAVARRO

 

NOTAS

BIOGRÁFICAS

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Emídio Júlio Navarro, de seu nome completo, nasceu em Viseu a 19 de Abril de 1844 e faleceu no Luso, em 16 de Agosto de 1905.

Foi aluno do Seminário de Bragança, onde completou o 2.º ano do Curso de TeoIogia. Em Coimbra, não se sentindo com vocação para a vida eclesiástica, matriculou-se na Faculdade de Direito, tendo concluído o curso em 1869.

Deputado, ministro de Estado e ministro de Portugal em França, Emídio Navarro foi sobretudo um grande jornalista.

Quando estudante em Coimbra, fundou o jornal “A ACADÉMICA”, que teve como colaboradores João de Deus, Teófilo Braga e outros.

No “CONIMBRICENSE” também escreveu assiduamente, onde começou a revelar-se dando extraordinárias provas de polemista, de incomparável observador e comentador da vida pollítica do seu tempo.

Regressado a Bragança, abriu banca de advogado e aí publicou alguns artigos sobre a Revolução Francesa aos seus homens mais eminentes e tentou fundar um jornal político.

Em Lisboa, fundou “O PROGRESSO”, foi director do “CORREIO DA NOITE”, órgão do partido progressista, onde ingressou.

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Nomeado secretário do Tribunal de Contas e eleito deputado em várias legislaturas, foi mais tarde para Paris como Ministro de Portugal. Luciano de Castro nomeou-o Ministro das Obras Públicas, tendo desenvolvido notável acção. Abriu grande parte das estradas de Portugal, alargou os serviços florestais, criou, protegeu, edificou e consolidou tudo quanto podia contribuir para o desenvolvimento do património nacional.

Escreveu Quatro dias na Serra da Estrela, prefaciado pelo Dr. Sousa Martins, que o acompanhou na digressão à serra, com o Dr. Carlos Tavares. Colaborou em quase todos os jornais e revistas portuguesas do seu tempo.

Monumento a Emídio Navarro.

Após o regresso de Paris, abandonou por completo a actividade política e dedicou-se ao seu jornalismo. Nesta última fase salienta-se a «questão dos tabacos» que ocasionou extraordinários episódios políticos. Parecia que a sua pena ressurgia, moça, dos tempos antigos.

Minado pela doença, retirou-se com sua família para o Luso, sua pequena pátria adoptiva, como lhe chamou o Professor Fernando Emídio da Silva, no discurso proferido na inauguração do Monumento que as gentes do Luso e Buçaco lhe erigiram para perpetuar a gratidão pelo muito que lhe ficaram a dever. / 22 /

 

DISCURSO PROFERIDO NO LUSO PELO PROFESSOR DOUTOR FERNANDO EMÍDIO DA SILVA, NA INAUGURAÇÃO DO MONUMENTO

Senhora Dona Ernestina Navarro;

Minhas Senhoras;

Meus Senhores:

O monumento que hoje temos a honra de inaugurar representa iniludivelmente uma consagração e uma vitória.

Uma consagração do mérito. E não daquele fácil merecimento que é feito de eco retumbante de algumas palavras sonoras ou da condescendência atarefada de algumas interesseiras solicitudes. Mas de mérito autêntico, indubitável que está para essas auriflamas de pechisbeque como o brilho de uma estrela e para esses anónimos rumores de uma fama dúbia e barata como o toque sonoro e límpido do metal batendo a pedra.

Uma vitória sobre a calúnia, a má fé, a intriga, a inveja, a rotina, a incompetência, a mentira: todas essas forças subalternas e (ai de nós!) omnipotentes que em Portugal desde muito se encontram desgovernando e entravando o carro do Estado; todas essas forças negativas e subtis que, como não podia deixar de ser, deram batalha à inteligência lúcida, à vontade de ferro e ao patriotismo esclarecido do ministro de 1886; todas essas forças tortuosas e sinistras que remeteram em breve para o ostracismo o homem público eminente que, por ter pensado um dia em dominá-las, foi duplamente ferido na sua reputação caluniada e na sua obra destruída, pela razão muito simples de que uma vontade organizada e uma obra de governo eram o inimigo temeroso e comum de que se tornava necessário nem ficasse a lembrança.

É assim que, meus senhores, contemplando o porte enérgico e altivo desta estátua que parece ainda querer guardar as costas contra alguma traição eventual, apoiando-se de encontre à montanha que sobre todos os lugares da terra portuguesa ele amou e serviu; é assim que, meus senhores, contemplando esta autêntica e piedosa ressurreição, em que, como nas velhas mágicas, a virtude esplende radiosa e triunfante e o crime desce a esconder-se nas pregas entreabertas de um alçapão providencial; é assim que, procurando o simbólico significado desta glorificação em que um bloco de mármore calcou a argila pastosa e lamacenta que lhe serve de vencido alicerce – eu sou levado a exprimir neste momento, sombreado aliás por tantas angústias e ameaçado por tantos perigos, um pensamento de confiança na reconstituição e na justiça nacional.

 

Meus Senhores:

Emídio Navarro, cujos talentos luziram a meio de uma das mais brilhantes gerações literárias e políticas deste país, trouxe para os múltiplos ramos da actividade social em que se embrenhou o dom supremo com que se enaltece a vida humana: a vontade esclarecida. Basta lembrar o seu forte e musculoso arcabouço beirão, o passo enérgico e decidido, as mãos grossas, a cabeça solidamente pregada nos ombros largos, a frente nitidamente desenhada, o porte altaneiro, o olhar irrequieto buscando a decisão em que se firme, os lábios espessos abrindo-se a mostrar-nos a dupla fieira dos seus dentes agudos, tudo em Emídio Navarro respira a força, traduz a vontade, desenha a ânsia de lutar.

Formado em Direito depois de um curso notável em que rapidamente conquistou os laureis do accessit, a advocacia e as lutas do fôro, porém, não e atraem, apesar do seu feitio intelectual não ser inadaptável às lucubrações jurídicas.

São as violências maiores do jornalismo e da política que exercem desde logo sobre o seu espírito uma / 23 / atracção irresistível, como se nessas contorções mais ásperas os seus músculos encontrassem apenas o limite marcado para a sua acção natural. Assim é que, fugindo logo ao ramerrão das parcas questões de águas que afluem ao seu escritório de incipiente advogadelho de província, a sua pena coruscante enche de relâmpagos o pacato jornal da sua terra e as suas predilecções partidárias em breve se firmam nos temerosos e inevitáveis cavacos da farmácia. Mas as colunas obscuras de um perdido jornal transmontano e as paredes palreiras de uma farmácia de aldeia não bastam manifestamente a Navarro. Grande nau, grande tormenta.

E assim não admira vê-lo demandando novos horizontes, novas aspirações, novas violências para essa Lisboa que pela larga publicidade dos seus jornais e pela influência decisiva da sua política ele sentia como sendo a sua atmosfera necessária. Navarro era nesse tempo demasiado novo, as desilusões não tinham caído ainda como um chuveiro de neve sobre o coração para que os seus olhos demandassem, de preferência, como mais tarde, os encantos da paz e da beleza rural!

Os fados mais uma vez tinham de cumprir-se.

Chegado a Lisboa, mergulhado na política até aos cabelos, armado para a luta até aos dentes, em contacto diário com os chefes e marechais do partido, o seu valor, como não podia deixar de ser, torna-se rapidamente apreciado. O seu lugar de destaque é desde logo definido e as esporas de ouro em breve legitimamente ganhas.

É pelos jornais do seu partido em que, sucessiva e ininterrompidamente, colabora até à fundação das Novidades que Navarro começa a vida política. E a bem dizer o seu talento e influência de jornalista de combate revelam-se tais que a fama conquistada pela pena incontestavelmente lhe abriu desde logo as portas de todas as consagrações de homem público.

O mérito de Navarro como jornalista nem pelos seus mais intransigentes e irreconciliáveis inimigos pôde nunca ser contestado.

De uma inigualável lucidez na argumentação, vigoroso no ataque, pronto na réplica, escrevendo com elegância, precisão e clareza, sabendo ferir os aspectos capitais de cada assunto e sabendo falar aos sentimentos dominantes do grande público, o seu artigo de fundo diário, transportado com pressa lendária do cérebro ao papel quando o jornal quase composto ia dentro de pouco entrar na máquina – é a história política de trinta anos, tal como a sentiu um alto temperamento do seu tempo e que pode ainda hoje reconstituir-se, sobretudo pela colecção das Novidades, limando-lhe as arestas demasiado vivas e os atrabiliários exageros do desforço e da paixão.

No tempo de Emídio Navarro, o jornalismo português (como quase todas as manifestações da actividade intelectual) atravessava um período áureo. Na tradição próxima ou na arena política ainda, firmavam então os seus artigos de combate os nomes prestigiosos de Rodrigues Sampaio, Teixeira de Vasconcelos, Latino Coelho, Mariano de Carvalho, António Enes, Pinheiro Chagas, Oliveira Martins, Barbosa Cohen, Eduardo Burnay: o penúltimo tão ligado a Navarro e a esta terra, morto ainda não há seis meses; o último, seu adversário temeroso, apenas vivo da velha e gloriosa guarda. Ah! O combate era então rude e vistoso. Para falarmos só das duas pugnas mais salientes da carreira jornalística de Navarro ou sejam daquelas que pela sua proximidade me foi dado conhecer e sentir (a questão Burnay e a questão dos tabacos), os seus vigorosos contendores não eram de trato cómodo e macio: em Mariano de Carvalho havia a combater a maior erudição do seu tempo, posta ao serviço de uma inteligência sem igual na nossa elite e servida a seu turno pela ironia da mais acerada e fina lâmina da esgrima jornalística portuguesa; em Eduardo Burnay havia a lutar um autêntico temperamento de polemista, lúcido e persuasivo na doutrinação, vivo e penetrante no ataque, um tudo nada desdenhoso na ironia também manejada com desembaraço folgazão... Mas como a todas as personalidades e vocações verdadeiramente superiores, a grandeza das dificuldades a vencer só davam estímulos e energias novas ao director das Novidades.

Navarro, com efeito, em poucos artigos sabia aproveitar com habilidade rara os argumentos que, dominando o assunto, convenciam melhor. Esses argumentos, como cajado bem seguro por alma de campónio que se dispõe a varrer uma feira, não lhe saíam mais das mãos. E era de ver, por entre a ânsia do adversário que inteligentemente multiplicava tropeços novos a remover para o seu avanço, a curva repetida dos mesmos molinetes a encher o ar do mesmo estrepitoso alarido de arreganho e de vitória. O adversário tinha de precaver-se contra um embate quase irresistível – na valorosa e decisiva arremetida contra o obstáculo antevisto. E na algazarra do combate, por entre o esfuziar dos ataques derivados, sentia-se de quando em quando a sua parada e réplica firme nas guardas clássicas da esgrima, a contrastar com a gentileza de um jogo momentaneamente floreado em finuras de subtileza e de malícia. E esta segurança na defesa e esta solidez no ataque não constituem os menores encantos do feitio jornalístico de Emídio Navarro.

Por muito admiráveis, porém, que fossem os dotes do jornalista; por maior que tivesse sido a influência dos seus escritos na vida política portuguesa – este monumento, se eu sei compreender o seu real significado, não constitui uma homenagem aos golpes vigorosos da sua pena. Não é, com efeito, o azorrague / 24 / que lá em cima no bronze do seu busto poderíamos adivinhar, num prolongamento ideal, como empunhado pela mão que não chega a aparecer-nos; não é a cota de malha, nem o montante, nem a lança – não são as armas todas do seu poderoso arsenal de guerra que saem hoje desenferrujadas da sua campa para lhe fixarmos a memória no ensinamento que esta estátua representa.

A nossa homenagem, julgo senti-lo distintamente, visa o homem de Estado. E sem que ao espírito crítico se lhe diminua um só dos efeitos de uma corrosão por vezes redentora; e sem que ao articulista insigne das Novidades se regateie por um momento o lugar que precisamente pelas lutas de imprensa ele talhou para o destaque primeiro da sua eminente personalidade, apraz-me pensar que não são as suas faculdades de demolidor, por mais poderosas que tenham sido, mas as suas raras e iluminadas energias de organização e de mando as que em torno deste pedestal hão-de sempre ler-se inscritas pela admiração e pelo reconhecimento públicos.

De resto, a minha satisfação por esse facto é pessoalmente dupla.

Por um lado, sem diminuirmos, repito, a necessária função do espírito crítico, a coragem física, intelectual e moral indispensáveis a um autêntico temperamento de demolidor à Clémenceau; sem tirar a Navarro uma só das glórias que possam caber-lhe na justeza dos seus golpes e nos efeitos das suas campanhas – o facto talvez de o talento nacional se encontrar desde já velha data posto ao serviço de demolir e denegrir e a circunstância ainda de no nosso país se ter em geral demolido demais e edificado de menos: tudo o que venho dizendo, enfim, contribui para que de há muito no meu espírito (erradamente, porventura) a minha enternecida admiração e o meu acrisolado respeito atinjam de preferência quem constrói do que quem destrói, quem afirma do que quem nega, quem produz do que quem critica e quem confia do que quem desdenha.

Por outro lado, para fazer justiça a Emídio Navarro é indispensável sobretudo encará-lo como homem de Governo. Não só porque é nesse campo que o préstimo do grande cidadão pode económica, política e socialmente traduzir-se em um mais largo saldo de positivas utilidades nacionais, mas também porque os próprios excessos da sua paixão política, condenados in limine por tantos, se encontram singularmente atenuados para a justiça que a todos importa fazer quando pensarmos um momento que Navarro assistiu ao aniquilamento quase sistemático da sua própria obra, por via dela sofreu na sua reputação os mais duros e violentos ataques e por via dela ainda, com uma injustiça revoltante, viu destruída a sua carreira de homem público, lançado à rocha Tarpeia, ao mesmo tempo que a exaltadas mediocridades se estendia um benévolo tapete que lhes permitisse não ficar a um décimo do caminho do Capitólio!

Isto para não dizer ainda que são as suas concepções de homem de Governo, a lucidez da sua visão de estadista, que precisamente vêm dar aos artigos que tratam as grandes questões nacionais, como as de fomento, ou os altos problemas internacionais, como a aliança inglesa, aquele relevo e aquela aguda perspicácia que não foram esquecidos por quem o leu e nesses escritos podia reconhecer com facilidade as qualidades que tornam notável o Ministro das Obras Públicas de 1886 e que as circunstâncias apenas não deixaram plenamente evidenciar no Ministro de Portugal em Paris.

O ministro das obras públicas do governo progressista de 1886 foi efectivamente um homem de Estado.

A qualidade dominante do homem de Estado é precisamente a qualidade que no começo destas desataviadas palavras dissemos ser a faculdade máxima do nosso homenageado e que através da sua carreira de polemista não é difícil aliás reconhecer-lhe também: a vontade esclarecida.

Na verdade, Emídio Navarro sabia o que queria e sabia querer. Simplesmente, este equilíbrio tão fácil de enunciar em duas palavras é de uma extrema dificuldade de realização em um cérebro apenas.

Começa por que a mera existência, como humanamente possível, de um homem de Estado só é susceptível de compreender-se quando primeiro se tenha desfeito um curioso paradoxo em cujas malhas aliás têm soçobrado tantos governantes de todas as pátrias.

Por um lado, a absoluta impossibilidade de saber tudo. Por outro lado, a crescente necessidade de informar a obra de governo com os elementos da investigação fornecidos por todas as ciências e por todas as filosofias.

O enciclopedismo, com efeito, além de pretensão crescentemente estulta no próprio campo científico, entorpece as faculdades de acção de um homem de governo. Saber é duvidar. Quando Henri Poincaré introduz a dúvida no próprio seio das abstracções matemáticas – o último recôndito que no nosso espírito tinha ficado para a certeza – imagine-se que oceano de dúvidas não assaltarão o sociólogo e não aturdiriam o político quando este se embrenhasse demasiado fundo nos meandros inextrincáveis e contraditórios da investigação e da doutrina!

Mas o pior – ou o melhor – é que, na verdade, não há ramo da ciência humana, desde a que no espaço contorna o infinitamente grande até à que no laboratório perscruta o infinitamente pequeno: não há objecto da actividade científica – nihil humanum – / 25 / que não interesse e que imprescindivelmente não sirva o Governo de um povo.

Este o paradoxo na sua aparente irredutibilidade. Esta a perturbadora geometria do círculo vicioso. Ou se quiserem antes, estas as suas pontas agudas do dilema.

Resolvê-lo é penetrar no âmago da interrogação temerosa e fixar as qualidades dominantes do homem de Estado, quando este ou antes a sua caricatura não resolva a seu turno todas as hesitações, instalando na ignorância plena a bem-aventurança de alguma vaidade incomensurável...

Ora o paradoxo, na realidade, só se desfaz, e o homem público surge apenas como uma entidade humanamente possível quando o compararmos com o funcionamento de uma grande empresa e a integrarmos em uma técnica semelhante à da divisão do trabalho. Como ao empresário, pertence-lhe o plano de conjunto de organização e de invento; a sua adaptação ao momento e ao meio; a previsão da sua viabilidade e economia; a execução cujo compasso, frequência e potencialidade ele regula – e como contrapartida à sua ilimitada responsabilidade moral e política há que fixar-lhe limites amplos para os movimentos livres da sua direcção e do seu mando. Mas como o próprio empresário também que, em todas as fases da sua acção, tem de dividir mecanicamente as tarefas de forma a confiar por encomenda aos técnicos e competentes o esclarecimento de cada pormenor e a factura de cada engrenagem, assim o homem de Estado, sob pena de condenar a sua obra à impotência e ao fracasso, tem de socorrer-se a cada instante do conselho e do auxílio dos especializados para que por esta única via possível cheguem à sua informação e à sua decisão os únicos elementos que podem com a necessária segurança ilustrar a primeira e determinar a segunda.

Mas porque a mera existência de um homem de Estado não é assim um humano impossível, não se desmereçam por esse facto das virtudes e dos talentos indispensáveis à sua afirmação. O conhecimento dos homens, do momento e do meio; o desbaste e verificação das informações e dos conselhos; a previsão dos efeitos e das resistências de qualquer das suas medidas; a firmeza e o tacto, a persistência e a maleabilidade da sua execução; a mera escolha dos colaboradores necessários (e a escolha destes é fácil e externo barómetro pelo qual podem aferir-se dos merecimentos de um governante), eis o complexo teclado cuja harmonia exige para quem possua o raro dom de no-la fazer sentir as mais nobres qualidades de equilíbrio das mais altas faculdades da inteligência e da vontade humanas.

Ora Emídio Navarro foi incontestavelmente esse estadista.

Num ministério presidido pelo alto valor político de José Luciano; com a fazenda pública administrada pela sagacidade sem igual de Mariano de Carvalho; a vara da justiça entregue às mãos honradas e ao alto espírito jurídico de Veiga Beirão; ao lado de Barros Gomes maquinando já o seu mal sucedido sonho de expansão colonial; ombreando com a farda constelada de S. Januário e a sobrecasaca florida de Henrique de Macedo – o talento, a superior organização do novo marechal político que subira ao seu posto com luz própria, que não precisava do brilho alheio, vai firmar-se com vertiginosa rapidez nos escassos trinta e seis meses de Governo que este monumento precisamente se destina a perpetuar.

Navarro na complexa pasta das Obras Públicas, onde as comunicações, a agricultura, a indústria, o trabalho e o comércio formam o estofo das preocupações de cinco ministros, diagnosticara com presteza o nosso mal e demonstrou fartamente ter mãos para lhe descobrir e aplicar o remédio.

Em esquema, o nosso mal económico era então como continua sendo o inferior aproveitamento das nossas riquezas. Senhores de um subsolo satisfatório, de um solo de excelente produtividade, de uma vantajosa posição geográfica de metrópole e colónias, de inconfundíveis belezas naturais – não era que isso tudo não formasse exuberantemente a quádrupla base de uma indústria desenvolta, de uma agricultura privilegiada, de um comércio expansivo, de um turismo rendosíssimo: de tal sorte que à balança comercial não pudesse rapidamente fazer-se aumentar o volume das suas transacções e mudar quiçá o seu desequilíbrio de sentido; de tal sorte sobretudo que à balança económica se não pudesse assegurar um largo e produtivo saldo em nosso favor. Mas velhos erros de longe vindos, defeitos quase orgânicos, tradicionais pusilanimidades e dispersões traziam inquinado de todos os vícios o meio social e político, onde o baixo nível de civilização material e intelectual manchava agora de negro o lugar que na carta do mundo a nossa audácia e a nossa gente talhara largamente para a independência e para a imortalidade portuguesas.

Este era o mal.

O remédio estava num plano de fomento digno desse nome.

A descoberta da sua fórmula precisa honra já o tacto de governo de Navarro.

Mas um outro merecimento lhe enaltece porventura ainda com mais destaque o seu perfil de homem público: o exacto sentimento que ele teve da necessidade de caminhar depressa na execução da sua obra de imediatas realizações.

Era necessário, com efeito, caminhar depressa, em primeiro lugar, porque na efervescência industrial da Europa do último quartel do século XIX já podiam pressentir-se as temerosas palavras de Salisbury que Fuschini / 26 / queria saber gritadas a cada ouvido português: só têm direito à vida as nações que trabalham e progridem.

E era necessário ainda caminhar depressa, porque a questão social marcara já a crescente esfera intervencionista do Estado e, nestas condições, amortecendo o pleno estímulo da concorrência livre, ia fazer incidir as atenções públicas para uma melhor distribuição de riquezas de preferência a uma produção maior. E Portugal poderia encontrar-se, como hoje aliás se encontra, na situação paradoxal de não poder fazer recuar a hora intervencionista, sem ter deixado actuar plenamente os incitamentos produtivos máximos de que só o individualismo tem o segredo. Quer dizer, era preciso a todo o transe evitar o que então já se desenhava: a situação de haver a distribuir melhor uma riqueza antes de a haver satisfatoriamente criado. O que em meu modesto entender se assemelha também (seja dito entre parênteses) à forma por que em Portugal se arrasta a velha questão do jogo: enquanto lá fora se deixa ao jogo regulamentado produzir os seus notáveis benefícios na criação de praias e termas e quando já dele menos se precisa é que se pensa como na Bélgica em reprimi-lo – em Portugal, onde a livre expansão da tavolagem é um segredo de polichinelo, pensa-se que a moralidade pública consiste em não regulamentar o que vai existindo para simples exploração de nós todos e sem nenhum dos benefícios públicos a ele atinentes.

Ora Navarro não pensava desta maneira em relação ao nosso problema económico. E se o acusam de excessiva precipitação na edição de algumas medidas e de excessiva largueza na concepção de alguns dos seus projectos – as circunstâncias acima referidas não o absorverão plenamente dessa precipitação e dessa largueza, quando para essa absolvição se não queira invocar o argumento rigorosamente económico de que não há colheita sem sementeira, de que não há benefício e fartura sem temporárias abstenções e sacrifícios?

Meus Senhores:

É esta a visão segura da situação e do momento que plenamente dirigiu a acção governativa de Emídio Navarro e faz dele incontestavelmente um homem de Estado.

Como Oliveira Martins no seu Projecto de Fomento Rural, melhor do que Elvino de Brito, Navarro concebe o mais largo plano de fomento que depois da Regeneração germinou em cérebro de homem público do constitucionalismo português.

É assombrosa, toca as raias do prodígio a multiplicidade de aspectos da sua obra, a actividade desenvolvida nos três anos da sua lida ministerial por um homem insuficientemente rodeado das competências especializadas indispensáveis e operando a meio das enferrujadas engrenagens da rotina burocrática. Pode dizer-se mesmo que na complexidade dos serviços do antigo ministério das Obras Públicas não ficou um único escaninho onde a acção impulsionadora de Navarro se não fizesse sentir e onde, apesar de o não terem sabido seguir e de propositadamente haverem contrariado os intuitos da sua herança, não ficasse ligado ao seu nome a lembrança de um incitamento vantajoso ou de uma reforma benemérita.

Passemos, com efeito, rapidamente revista (para não cansar a vossa atenção mas para ao menos lhes medirdes o alcance, à obra do ministro das Obras Públicas de 1886 a 89.

Se considerarmos primeiro os problemas magnos das comunicações e do ensino técnico que juntamente com o crédito agrícola podem formar os pilares fundamentais da reconstituição económica nacional, a obra de Navarro constitui o mais notável plano de fomento concebido e começado e executar nos últimos 50 anos.

Pelo que respeita às comunicações e deixando de lado pelo seu aspecto dispersivo as medidas de reorganização dos correios e telégrafos (basta lembrar a remodelação da posta rural, D. 4 Agosto 1887), em nenhum aspecto do problema se descura a sua ânsia de reforma e de organização. Em matéria de viação ordinária são firmadas pelo seu punho as P. P. 28 Abril, 18 Julho e 17 Agosto 1887, regulando as adjudicações e empreitadas de obras públicas e a construção de estradas municipais e distritais; o D. 21 Fevereiro 1889, último que ele assinou, sobre a polícia das estradas; a P. 28 Dezembro 1888 sobre expropriações amigáveis e sobretudo a lei de 21 de Julho de 1887, a que ele deu um começo brilhante de execução e que, a não ser posta de lado, teria dotado em 18 anos o país da rede de estradas sumariamente digna de uma nação da Europa. Em matéria de viação acelerada o seu pensamento era o de dar à nossa rede ferroviária as malhas que lhe ficaram faltando e regularizar os respectivos serviços, como se pode ler expresso nas P. P. 19 Março 1886 e 23 Maio 1887 que interessam à Beira-Baixa; no D. 15 Março 1888 que regulamenta a fiscalização da construção dos caminhos-de-ferro; nos D. D. 14 Agosto 1887 e 21 Fevereiro 1889 sobre despachos de mercadorias; e ainda na P. 21 Fevereiro 1889 que organiza a fiscalização dos caminhos-de-ferro sobre as estradas ordinárias. As comunicações telefónicas também o preocuparam: o D. 15 Setembro 1887 aprova o contrato que interessa às redes de Lisboa e do Porto. Finalmente, a abertura de portos que assegurassem a expansão comercial aos nossos produtos mereceu ainda a sua larga atenção: basta relembrar as obras do porto de Lisboa onde havia a construir senão o cais da Europa pelo menos um cais europeu (P. 28 Junho 1886; / 27 / D. 22 Dezembro do mesmo ano; P. 6 Agosto 1887 que aprova o projecto definitivo) e, além do porto de Lisboa, os portos de Ponta Delgada e Horta que na lei de 21 de Julho de 1887 receberam um notável impulso.

Isto pelo que respeita às comunicações.

Pelo que respeita ao ensino técnico, não é menos notável a acção de Navarro. O obsoleto D. 16 Dezembro 1852, de Fontes e Atouguia, em matéria de ensino agrícola e os D. D. 20 Dezembro 1864, de João Crisóstomo e 3 Janeiro 1884, de António Augusto de Aguiar, constituíam à época o nosso parco material legislativo. Navarro organiza os Institutos Industriais e Comerciais (D. 30 Dezembro 1886 e R. 3 Fevereiro 1888), reforma o Instituto de Agronomia e Veterinária (D. D. 2 Dezembro 1886 e 8 Novembro 1888), regulamenta as escolas industriais e de desenho industrial (D. 23 Fevereiro 1888). E não deixando em letra morta as respectivas autorizações legais, organiza a escola profissional de Belém (P. 22 Outubro 1886), cria as escolas agrícolas de Coimbra, Faro, Viseu, Portalegre e Santarém (D. D. 3 e 17 Novembro 1887, 18 Julho 1878); as escolas industriais da Covilhã, Alcântara, Porto, Braga, Coimbra, remodelando depois as do Porto e Guimarães (D. D. 13 Junho 1888 e 10 Janeiro 1889); funda as escolas elementares de desenho industrial de Bragança, Faro, Figueira da Foz, Leiria, Setúbal, Viana do Castelo, Vila Real, Funchal e Matosinhos (D. D. 13 Junho 1888 e 10 Janeiro 1889); descendo ainda no campo agrícola a especializar o ensino em harmonia com as aptidões culturais de cada região, estabelece essas delicadas organizações de progresso que poderiam ter sido as escolas práticas de viticultura da Bairrada e de Torres Vedras, a escola prática de lacticínios de Castelo de Paiva, a escola frutuária da 5.ª região agronómica (D. D. 30 Junho 1887 e 18 Julho 1888); aumenta os irrisórios vencimentos dos professores seus dependentes (L. 1 Junho 1888); preenche com elevado critério algumas vagas do professorado técnico superior, nomeando entre outros Vilaça e Dias Costa; manda vir do estrangeiro a modernizar o nosso ensino industrial altas capacidades designadas como tais pelas elites oficiais dos seus países, entre elas os professores Bigaglia, Corrodi e Yanz; completa enfim o seu formidável plano de educação técnica com as instituições paralelas de ostentação e experiência, como o museu agrícola e florestal de Lisboa, a estação ampelo-filoxérica de Torres Vedras, as estações químico-agrícolas, o hospital veterinário de Lisboa, os sindicatos vinícolas que ele organiza e regulamenta (D. D. 24 Novembro e 22 Dezembro 1887, 19 e 27 Dezembro 1888, 14 Fevereiro 1889; P. P. 1 e 30 Dezembro 1887, 14 Novembro 1888.

Mas a acção de Navarro não fica por aqui.

Reorganiza os serviços gerais do seu ministério (D. 28 Julho 1886), e encarando seguidamente cada um dos serviços públicos seus dependentes, cujo funcionamento interessava o fomento nacional, fez passar por todos eles uma corrente de ar fresco e novo, sacudindo-os no seu adormecido torpor. É assim que são remodelados os serviços agrícolas e antifiloxéricos (D. D. 9 Dezembro 1886), os serviços pecuários (D. 16 Dezembro 1886), os serviços coudélicos (D. 22 Setembro 1887), os serviços veterinários (P. 16 Junho 1886), o conselho superior de comércio e indústria (D. 3 Fevereiro 1887), os serviços zootécnicos (D. 3 Janeiro 1889 e P. 24 Janeiro seguinte), finalmente os serviços hidráulicos (D. D. 2 Outubro 1886 e 24 Fevereiro 1887), esses mesmos que no dizer de Sertório do Monte Pereira são o eixo do problema agrícola português.

A agricultura tinha assim, dada a nossa feição económica, um lógico lugar de destaque no plano de Navarro. Neste capítulo, porém, a sua acção ainda se fez sentir nas tentativas feitas para a vulgarização do emprego dos adubos químicos (P. F. 30 Dezembro 1886 e 19 Setembro 1888, R. 27 Dezembro 1888), na arborização das formosíssimas serras do Gerês e da Estrela (D. D.13 e 27 Dezembro 1837), – Serra da Estrela que lhe ficou devendo as páginas maravilhosas de uma autêntica jóia literária e cujas sombras e cujas riquezas a ele há hoje ainda primariamente a agradecer e em tantas rápidas, dispersivas, estratégicas medidas, despachos e cuidados que o natural cansaço dos meus ouvintes, que não o seu minguado valor apenas me força a omitir. Só o crédito agrícola, não sei como, lhe escapou... Porque apropria estatística agrícola, como a estatística demográfica, de resto, lhe não passou despercebida, na necessidade da sua fundamental função informadora: quer ordenando o recenseamento agrícola e pecuário (P. 3 Dezembro 1887) quer preparando com Eduardo Vilaça e de acordo com o congresso de S. Petersburgo o notável censo da população de 1890.

Mas um último aspecto da sua obra (pelas suas derivações e reivindicações em nossos dias) não pode naturalmente ser deixado no esquecimento por quem tem a honra de falar, além de em seu nome próprio, um pouco também em nome de uma sociedade de turismo, a Propaganda de Portugal, aqui representada aliás pelo mais prestigioso dos seus dirigentes efectivos – essa vigorosa têmpera de organizador que é o seu presidente e meu querido amigo, o engenheiro Vasconcelos Correia. Navarro, com efeito, anteviu plenamente, com notável antecipação sobre todos os homens públicos do seu tempo, as possibilidades e as riquezas que da exploração do turismo podiam facilmente provir para a economia portuguesa, como factor positivo apreciável a introduzir na nossa balança de pagamentos, guardadas mesmo as proporções devidas em relação aos exemplos fornecidos pela economia suiça, italiana ou francesa. Para este efeito havia principalmente / 28 / a resolver o problema das comunicações, ligando para a comodidade da admiração estrangeira as belezas perdidas das nossas diversas regiões e paralelamente a dotar as cidades, as termas, as praias dos requintes do conforto, da sanidade e da arte que tornassem aprazíveis as excursões e as visitas. É o que Navarro fez subordinando também a este pensamento a construção das estradas e espalhando em Coimbra, Viseu, Figueira da Foz, Serra da Estrela, Gerês, Porto e Lisboa, entre outros muitos pontos do país, uma forte documentação do seu elevado modo de pensar a este respeito.

Isto para não falarmos ainda da sua pequena pátria adoptiva – de Luso e do Buçaco.

Tal é, meus Senhores, nos seus traços sumários e, salvos alguns aspectos que propositadamente guardámos para final, a obra gigantesca do grande ministro de 1886. Tal é a obra que uma política tacanha e rotineira abafou teimosamente à nascença. Tal a obra de Emídio Navarro que eu bem quisera ter sabido projectar, nos seus delineamentos ao menos, sobre os vossos espíritos, mas para a qual as minhas apagadas palavras eram uma obscurecida lanterna mágica em muito indigna desse assunto e deste lugar. Foi a teimosia do dedicado secretário da comissão executiva da construção do monumento. o Dr. Lúcio Abranches, que decididamente viu pelas lentes de aumento da sua amizade os fracos recursos de quem, minhas Senhoras, por tão longo tempo tem abusado da vossa paciência e da vossa gentileza. Fique o erro desse meu querido amigo lançado à conta do muito que lhe deve esta homenagem e para único testemunho, no seu caso, de que as perfeições não são deste mundo...

Felizmente, porém que a obra de Navarro vivia já na vossa admiração e no vosso reconhecimento! Essa consoladora certeza que já tinha imperado no meu espírito para me não ver forçado a declinar, embora contristadíssimo, a honra que me era dada – essa consoladora certeza me resta ao menos quando daqui a poucos minutos eu abandonar esta tribuna: as minhas palavras não roubaram o lugar a ninguém, porque nenhuma palavra se tornaria necessária para resumir melhor do que pela vossa simples presença a admiração e o reconhecimento de que, interpretando o sentimento nacional, estamos todos possuídos neste momento.

Minhas Senhoras e Meus Senhores:

Vou terminar.

Falando um dia de Navarro, Carlos Lobo d’Ávila repetiu com raro acerto a sentença de Victor Hugo: Les coeurs de lion sont les vrais coeurs de père.

Não há dúvida. Ninguém atacou com um ímpeto mais irresistível o adversário que ousasse defrontar-se e medir-se com ele. Mas ninguém, por seu lado, cultivou com mais esmero as flores do seu jardim que, ao contrário de Numa, nunca foi ele que temeu de ver espigadas e sobranceiras; ninguém serviu com lealdade maior o seu amigo; ninguém socorreu com mais nobreza os seus contendores na adversidade; ninguém patrocinou com mais carinho os que se acolhiam à sua defesa, e ai dele! Tantas vezes lhe pagaram com negra ingratidão as desculpas e os favores; ninguém amou os seus com mais apaixonado afecto e mais paternal solicitude, amparando na esposa a que foi delicada enfermeira da sua alma atribulada, prolongando no triunfo dos filhos as suas próprias ambições, sorrindo com desvanecido enlevo ao atrabiliário bulício dos primeiros passos dos seus netos; ninguém serviu com mais acrisolado zelo esta sua pequena pátria adoptiva de Luso, onde a sua rude têmpera beirã procurou consolo para tantas desilusões e que no seu coração, mais talvez do que a sua pátria, era a sua terra, a sua pátria pequena, como há pouco acentuei, servindo-me do concêntrico e enternecido qualificativo de Raymond Poincaré para a sua dourada Lorena!

As nobres e elevadas qualidades afectivas de Navarro casam-se bem, na verdade, com esta paisagem maravilhosa. As árvores seculares da mata dão-nos como ele a ideia do domínio e da força e, na sua variedade indefinida, lembram-nos também a pujante polimorfia das suas aptidões intelectuais; mas os vales são sombreados e amenos, doira-os aqui e além um raio palpitante de sol e no chão húmido a relva fofa abafa por vezes os passos num tom de recolhimento e de mistério. Devia sentir-se bem aqui quem, como Navarro, ambicionava, reflectia, amava e sofria: das Portas da Rainha ou de Coimbra, de Santo Antão, do Calvário ou da Cruz Alta divisam-se, com efeito, indefinidos panoramas, longínquos e esfumados horizontes, possibilidades eternamente novas; mas nos vales dos Fetos ou dos Abetos, no rumorejar da Fonte Fria ou nas imediações do Convento ou da Cascata, a abóbada cerrada das suas árvores, a pujança e o embrenhado da sua vegetação, o correr brando e cristalino da sua água fez-se, com efeito também, para confidência dos nossos pensamentos, para cenário dos nossos amores ou para consolação das nossas lágrimas.

Como Navarro, porém, acima de tudo era dotado da qualidade máxima que através do nosso modesto esquema temos visto sempre esmaltando-Ihe o perfil – a vontade esclarecida – o poeta Iírico dos «Quatro dias na Serra da Estrela» não era homem para quedar-se nestes seus amores espirituais em um cómodo platonismo. Dispondo dentro ou fora do poder de uma enorme influência, usou dela largamente em benefício desta terra, quer pondo-a em rápida comunicação com os centros da população e do turismo nacional / 29 / (e sob este último aspecto é típica a projectada e ainda hoje não concluída estrada a Penacova, de que tanto se vem falando) quer dotando-a de melhoramentos locais importantíssimos, desde a cenografia do Hotel do Buçaco (a que estão também ligados os nomes de Manini e Ernesto de Lacerda) até o alargamento da mata e desde o estabelecimento balnear de Luso, ao tempo modelar, até a sua estação de correios e a sua escola.

Nestas condições, se em muitos outros pontos do país poderia erguer-se o busto que ensinasse a fixar às crianças portuguesas as másculas feições de Emídio Navarro, em nenhuma outra terra como esta ele se levanta como um dever tão alto de agradecimento e de respeito.

Tácito conta naquele seu latim de bronze (nesse latim que a subida educação humanista de Navarro aprendera a penetrar e a cultivar com afinco); Tácito conta que, apesar de Roma nunca ter erguido uma estátua a Bruto, não havia forasteiro que não perguntasse onde era a estátua de Bruto. E esta simples pergunta, acrescenta o velho e profundo historiador romano, era a melhor estátua que lhe poderiam ter erguido.

Felicitemo-nos todos, meus Senhores, no entanto, por que de hoje em diante não fique em Luso sem resposta uma legítima e idêntica interrogação dos forasteiros: e àquele que quis tornar a sua pátria mais rica não aconteça o mesmo do que àquele que quis tornar a sua pátria mais livre!...

Luso foi, neste ponto, mais grato do que Roma. Em alguma coisa lhe havia de levar a palma...

Mas deixem-me, para terminar, dizer-lhes também: Quando uma comemoração desta natureza não é apenas prestada no vago rumor da praça pública que o homenageado em sua vida só distraidamente conheceu; quando, pelo contrario, um preito como o nosso tem por cenário a terra que sobre todas ele amou e serviu, é minha ideia de que a sua campa se não cobre apenas de uma pedra mais alta, onde o seu nome pode ler-se em letras mais solenes, mas que sobre o seu corpo inanimado, a acalentá-lo e a reconstituí-Io, piedosamente se desfolham as mais perfumadas e deslumbrantes flores que a vara mágica da bondade humana floriu no jardim sem igual do nosso coração.

E, meus Senhores: se, para lenitivo de tantas mágoas, Navarro tão enternecidamente cultivou e amou as flores; se a sua última vontade, aqui expressa, foi a de que o seu corpo baixasse, além no cemitério, ao germinal da própria terra – que nesta abençoada terra de Luso as mais belas flores de Portugal velem e perfumem para sempre o seu repouso e a sua glória e, cercando o pedestal desta estátua, exaltem, para sempre também, a sua lição e o seu exemplo.

Tenho dito.

 

 

QUATRO DIAS NA SERRA DA ESTRELA (1)

(Notas de um passeio)

I

No corrente anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo em agosto, não sei em que dia da semana ou do mez, porque no campo não tomo conta aos dias, estava eu, sub tegmine fagi, muito bem repimpado numa poltrona feita de uma raiz enorme de pinheiro, na fonte do Carregal, na matta do Bussaco, cavaqueando com o nosso bom amigo Silvestre de Lima, director Geral de varias coisas no ministerio das obras publicas, e entre as quaes se comprehende a superintendencia suprema nas mattas do reino.

O tegmine fagi é apenas uma sujeição á conhecida citação do Virgilio. No Bussaco não ha faias, ou antes, não é naquelle sitio da matta que ellas se encontram. Apparecem alguns faias, poucos, de passagem, montados em burricos, mas não enraizam nem medram no sólo. Deveria dizer «repimpado á sombra dos annosos cedros» se o Silvestre de Lima não me tivesse advertido de que essa expressão tambem não é botanicamente verdadeira. O famoso cedro do Bussaco, descripto e cantado em prosa e verso como irmão e rival do cedro do Libano, é tudo menos cedro. É um cypreste, cupressus! Tal qual como acabo de o dizer.

É o cupressus glauca, tambem chamado lusitanica por não haver na Europa outro massiço daquelas arvores frondosas tão importante como o do Bussaco, e por ser de PortugaI, que ellas se espalharam por Hespanha, França e Outros paizes. Para Portugal vieram não se sabe bem se de Gôa, se dos Açores. Em vida do snr. Moraes Soares procuraram-se no archipelago açoriano noticias dos ilustres avoengos d’aquellas respeitaveis matronas, mas não se achou parentella viva, apparecendo, porém, aIguns soallhos feitos de madeira d'aquelle arvoredo, o que deixou a suspeita de que a familia fôra ali exterminada a machado n'um horroroso arboricidio. O snr. Lopes Mendes e outros cavalheiros fizeram indagações analogas em Gôa, e ahi parece que nem nos soalhos appareceram vestígios da linhagem deste arvoredo fidallgo. As chronicas do convento são muito escuras a respeito do caso, e as investigações ulteriores nada apuraram. O mais seguro é dizer-se que veio não se sabe d'onde. Certo é que, no Bussaco, vive como em terra, que é já muito sua, com uma longa sucessão de gerações, todas em pé, o cupressus lusitanica, ou cypreste lusitano. Pelos modos, a família do cypreste é muito numerosa e variada, não sendo uma das suas menores exquisitices o ter o nome de funebre uma variedade, que se emprega na ornamentação de parques e jardins, e que no feitio se distenceia enormemente / 30 / da conhecida arvore, o cupressus fastigiata, de forma esbelta e esguia, com que se marginam os arruamentos dos cemiterios. Ora vão lá fiar-se em nomes de botanica! E aqui está, o que no momento lhes posso dizer do cupressus, ou cypreste.

Dos cedros, segundo me contou o Silvestre de Lima, há só tres variedades conhecidas: o do Hymalaya, o do Libano, e o do Atlas, ou atlantico. A rammia do cedro, do authentico, é formada por um agrupamento de agulhas, mais ou menos finas, sermelhantes ás do pinheiro, essencialmente differentes dos ramusculos que caracterizam o cupressus. Há no Bussaco alguns exemplares d'aquellas tres variedades de cedros, bem como de muitas outras essencias florestaes, dos paizes mais distantes e das latitudes mais diversas, como o laurus camphora, ou arvore da camphora. A matta possue hoje cerca de quinze mil arvores de plantação moderna, na maior parte coniferas. Voltando aos cedros, direi, que mesmo á entrada da portada do convento, do lado esquerdo da escada, ha um soberbo cedro do Hymalaya, de agulhas miudas e finas, e que pelas suas dimenções deixa a gente espantada ao saber-se, que ainda não tem vinte annos de existencia. Fronteiro a elle, está um velho cupressus, pertencente ao grupo dos mais antigos da matta, e muito conhecido de todos os frequentadores do Bussaco. Já pouca ramagem alimenta, e estende os seus braços descarnados, espalmados e alvacentos, como ossada de um grande cetaceo, que comido pelos lobos marinhos e deslavada pelas aguas! No terreiro contiguo tem o agonisante cupressus alguns companheiros, que supportam com inexcedível galhardia o peso dos annos, e que das alturas enormes da sua ramaria copada parecem dizer desdenhosamente ao cedro do Hymalaya, que ainda precisa comer muitas razas de sal, ou sugar muitos litros de resina, para lhes ver o topete. Podera! Teem tres seculos de existencia e engorda! E aqui está o pouco que me ocorre dizer a respeito dos cedros authenticos e verdadeiros em conpetencia com os falsos cedros, ou cupressus, que predominam no Bussaco.

Estava, pois, muito bem repimpado na fonte do Carregal, cavaqueando com o Silvestre de Lima, ermitão da matta, o qual passa ali uma grande parte dos mezes de verão, tanto para cumprir os seus deveres officiaes de velar pelo desenvolvimento da arboricultura, como para tratar de uma bronchite chronica, de que padece. Arranjou para isto uma receita sua. Á hora, em que a cigarra canta, vae sentar-se nas portas de Coimbra e ali passa um largo espaço, resfolegando com toda a força dos seus pulmões. A essa hora, a brisa do noroeste traz para aquelle sitio as emanações dos pinheiraes, de que estão revestidos aquella vertente da montanha, e os seus contrafortes. Diz elle, que por aquelle modo absorve mais pura, e Sem passar pelas mãos dos boticarios, a seiva do pinheiro marítimo; e como a fé é quem nos salva, acha-se consideràvelmente melhor depois d'alguns dias daquelle resfolegar á hora da cigarra. Quem quizer topar com elle a essa hora, vá procural-o ás portas de Coimbra.

Muito bem repinpado, como ia dizendo, em cavaqueira com o Silvestre de Lima, dava-me elle conta dos ultimos visitantes conhecidos que tinham andado pela matta. Aqui esteve fulano, e mais sicrano, e mais beltrano. O Bussaco é hoje frequentado por um grande numero de touristes. O caminho de ferro da Beira-AIta passa no sopé da montanha, a oito ou dez minutos de distancia do entroncamento da Pampilhosa. Quem vae veranear do sul para o norte, raro deixa de visitar a formosa matta, que se anuncia desde pouco adiante de Soure, num convite de luxuriante verdura; quem desce da Beira-AIta, considera a visita como romaria obrigatoria; na gente das provincias do norte começa a manifestar-se a mesma devoção. Além disso, as praias da Figueira, de Espinho e da Granja, tão frequentadas desde o meado de agosto em diante, ficam perto. O Bussaco é uma excelIente estação preparatoria, para ali se passarem os ardores calmosos de julho e agosto. Junto do convento construiu-se este anno, por conta do thesouro, um restaurant. O mesmo individuo, que o tomou de arrendamento, arrendou egualmente algumas casas novas (por tal signal que de um mau gosto inexcedível) tambem mandadas construir por conta da administração das mattas supponho que com dinheiro surripiado no orçamento á arborisação das dunas. O convento, por aquelle lado, já está soffrivelmente mascarado e mascarrado á modenna! Mas voltemos ao caso: quem quizer passar alguns dias no Bussaco ali mesmo encontra gasalho e comida – o que é circumstancia absolutoria, ou pelo menos muito attenuante da irregularidade orçamental, que deixo denunciada. Em Luzo ha dois hoteis. O serviço não é um primor, as commodidades não abundam, mas o preço também não escalda: 800 réis por dia. E come-se á tripa fôrra! O melhor petisco é o belIo leitão assado. N'um d'esses hoteis janta-se de ordinario ao ar livre, em meza estendida debaixo de copado castanheiro. De Luzo ao Bussaco vae-se perfeitamente a pé. É como quem vae da baixa ao passeio da Estrela. E para afastar qualquer fadiga, ha o recurso aos burricos, que são aqui de raça menos fina, e muito mais malcreados que os seus colllegas de Cintra. Como se vê, a visita ao Bussaco faz-se hoje em satisfactorias condições, e por isso, sendo já consideravel a quanltidade dos visitantes, tende ella a crescer enormemente de anno para anno, desde que se abriu o caminho de ferro da Beira-Alta.

Além desta colonia adventicia, e que tados os dias se renova, ha no Bussaco e em Luzo colonias permanentes. O convento tem casas que se alugam. Nunca / 31 / ficam desoccupadas. Ha familias, que aIi se demoram dois e tres mezes. A pureza do ar, e a frescura do arvoredo encantam e são de muito valor hygienico. Vive-se ali n'uma convivência intima, quase patriarchal. Á bocca da noite, reunen-se as familias n'um grande salão de baile, ornamentado de cortiça, e dansa-se animadamente ao som de um piano, com grande escandalo do Francisco. O piano no velho cenobio, açoitando com as suas notas estridulas as faces macilentas dos frades, que em telas apodrecidas se perfilam ao longo das paredes do claustro! O’ tempora!

Ao Francisco se deve em parte a conservação do Bussaco. Era um servidor dos frades. Elles foram-se, e elle ficou, cuidando sempre da egreja. Quando os conventos e respectivas cereas se venderam ao desbarato, alguns individuos da Mealhada e Coimbra entenderam que Bussaco era bom campo de exploração. Os cupressus, os carvalhos e os pinlheiros seculares haviam de dar magnífico taboado! Metteram-se de gôrra com um governador civil, que lhes poz tudo a caminho do barbaro intento. Quando tal soube, o Francisco partiu de carreira, deixando a malta e a sua querida egreja, e foi procurar o pae dos snrs. Serpas, e lavado em lagrimas deu-lhe parte do malefico plano. O snr. Manuel de Serpa correu a Lisboa e o Bussaco foi salvo, escapando á devastação geral. Por tal diligencia merece o Francisco as honras de benemerito.

Mas o Francisco não perdeu o antigo feitio. A invasão da matta pelos melhoramentos e tambem pelas desenvollturas da epoca, escandalisa-o. Sae de noite da sua tóca, e, quando o ruido escarninho do piano se acolma quando todos dormem, o Francisco percorre a matta, inspecciona as modificações, que nella se vão introduzindo, examina as construções novas, que se levantam, e murmura longas apostrophes de reprovação e anathema! Elle até amaldiçôa as arvores novas, de ramaria franjada e variada, que vieram reprovar a matta! Para elle o Bussaco só devia ter carvalhos e cedros. E se alguem lhe disser, que aquellas arvores adustas, que venera e acata com supersticioso respeito, não são cedros mas cyprestes, responderá que o mundo está perdido e que os pedreiros livres, tendo roubado tudo, até roubaram o nome ás suas queridas arvores!

Pobre Francisco! É por isso, para não ver a invasão que o fere no imo d'alma, para não assistir ás profanações da clausura, que elle só dá os seus passeios a horas mortas. Os frades do claustro sahem então das suas tellas para acompanharem o seu velho servidor nas suas digressões solitárias; e os gritos do corujão, que se faz ouvir pelo mais adiantado da noite, reflectem o soluçar d'esses espectros, congregados nos sitios mais sombrios da matta, ao abraçarem-se no velho Francisco num grande chôro lamentoso!

E agora reparo, que ainda lhes não disse, em que estava cavaqueando com o Silvestre de Lima, na fonte do Carregal, e que rellação teve essa conversação com o meu passeio á Serra da Estrela. Fica para a seguinte.

II

Eu fallava do Francisco, o velho sachrista do convento do Bussaco; e já agora sempre direi a razão, porque elle, aberrando dos seus principíos fundamentaes, ousa affrontar a luz do dia e a presença profanadora dos visitantes, quando estes pretendem vêr a egreja do convento.

Na egreja ha tres imagens, de escultura italiana, que constituem verdadeiros primores artisticos. São de meio corpo, e representam: uma dellas a pecadôra arrependida de Magdala; a outra, S. Pedro – et super hanc petram edificabo ecclesiam meam; e a terceira a Mater dolorosa, a que inspirou aquelle soberbo cantico mais belo ainda na singelelza lancinante da letra do que no esplendor da musica, de que o revestiu Rossini, e que começa: 

Stabat mater dolorosa

Juxta crucem lacrymosa

Dum pendebat filius

 Das tres a mais formosa é a da Magdalena. Espanta, realmente, que aquella formosura de cabeça tenha até hoje escapado á rapinagem grauda e miuda, que se tem apossado da maior parte das preciosidades artisticas, que existiam nos conventos... e até fóra d'elles. Aquella cabeça, de menos de metade do tamanho natural, vale alguns contos de réis. Vejam se a sua conservação no Bussaco é ou não caso para espanto! N'aquelIe rosto casam-se, em harmonia sublime, os traços de uma belleza incomparavel com os estragos de uma rude penitencia e os signaes inequívocos de amargura profundissima. As madeixas soltas de uma opulencia luxuriante, teem um não sei que de mádido, que parece ressumbrar pranto; e as veias azuIadas, que se lhe desenham sob a pelle de um branco opalado, parecem traduzir simultaneamente a delicadeza de uma rica organização feminina, que se atesta no oval correctissimo do rosto, e a morbidez de um sangue macerado de continuo pelos ceIicios, que lhe cingem os rins, e dessorado nas Iagrimas que em fio lhe escorrem dos olhos embaciados. A peccadora arrependida está ali fielmente representada, como a creou o Evangelho. Eu nunca entro na egreja do convento, que não me quede, esquecidamente, alguns minutos a comtemplar aqulelle primor da arte italiana!

A cabeça de S. Pedro é também muito notavel; mas como a dôr do santo, por ter negado tres vezes o mestre, é de um mysticismo pouco comprehensivel, não impressiona essa imagem tanto como a cabeça da Magdalena. O meu amigo Sousa Martins, para explicar / 32 / a Carlos Tavares, que ainda não visitou a egreja do Bussaco, a expressão da cabeça de S. Pedro, dizia-lhe que figurasse na sua mente a cabeça de um homem, que tivesse tomado uma dose forte de coloquintidas. Não sei se a expllicação é satisfactoria, porque não sou medico, nem experimentei ainda o tal medicamento. Protesto até não o experimentar; porque, em vista de tal explicação, que me pareceu ter laivos rabelaisianos e voltairianos, suspeito que quem o tomar deve vir a achar-se em dolorosos apertos! O que é certo é que Carlos Tavares deu-se por inteirado, e não pediu mais explicações a respeito da expressão da cabeça do santo.

Escrevo descosidamente, misturando alhos com bugalhos, como costuma dizer-se. Ainda não contei o assumpto do meu cavaco ameno com Silvestre de Lima, e a relação intima d'esse facto com a serra da Estrella, e já enxertei no texto d'estas notas os nomes de Sousa Martins, o abalisado clinico e illustradissimo professor da escola medico-cirurgica de Lisboa, e de Carlos Tavares, um orador distinctissimo, que promette ser um médico não menos distincto, porque conncluiu este anno o seu curso n'aquella escola, obtendo as classificações mais subidas em merito. Soceguem, que tudo lhes será explicado. Não tardará que eu Ihes conte tudo por miudos. Por agora, limito-me a prevenir os meus amaveis Ieitores (se é que os tenho) de que nestas rapidas e ligeiras notas ha um capitulo de um alto valor humanitario e scientifico – o qual lhe não é dado por mim (ça va sans dire) mas pelo nome de Sousa Martins. É uma prevenção salutar para com essa isca, ter quem até lá me ature.

Cá volto ao Francisco, e á imagem da Mater dolorosa. Esta imagem sob o ponto de vista exclusivo da plastica, não é inferior á da Magdalena; mas, sob o ponto de vista do ideal artístico a que o esculptor tinha de attender, é-lhe muito inferior. Se me é licita a comparação, direi que ella traduz as bellezas e os defeitos das madonas de Raphael. Aquella Matter dolorosa debruça-se sobre o corpo inanimado do fillho, e as lagrimas deslisam-Ihe pelas faces, mas sem n'ellas cavarem os sulcos profundos da dor inconsolável. Tire-se d'ali aquella imagem; arranquem-lhe do peito as espadas, raspem-lhe do rosto as Iagrimas crystalinas, e a mesma esculptura Ipoderá servir, e talvez muito melhor, para significar a virgem alvoroçada e pudibunda, que se inclina, n'uma primeira confissão de amor, para o amante ajoelhado a seus pés. Na Magdalena não succede assim. Raspem-Ihe do rosto as Iagrimas, e logo ao primeiro relance se verá, ou que a imagem foi mutilada d'aquelle seu complemento, ou que o esculptor quiz significar que as Iagrimas se tinham evolado das palpebras escandecidas por effeito do ardor da febre. Na Mater dolorosa, a dôr é, por assim dizer, convencional, e resulta, menos da expressão do rosto, do que dos accessorios da imagem. Tambem nas suas virgens e madonas, Raphael traduziu principarmente a belleza mundanal. Se algumas d'ellas são o retrato da Fornarina, a sua sensual amante! A belleza divina vem-lhes dos accessorios, que não da expressão da figura, ao contrario do que se nota nas virgens de Murillo, pintor natural de um paiz mais profundamente religioso, que a Itália, onde o catholicismo não tem sido mais que um paganismo disfarçado...

Se alguns dos snrs. criticos encartados da Arte (com A maiusculo) entende que escrevi tolice grossa, metto a viola no sacco, e apresento-lhes as minhas humildes desculpas.

As tres imagens, que deixo rapidamente descriptas, constituem tres primores artisticos de alta valia, e por certo teriam sido já rapinadas, se o Francisco, o velho sachrista, as não defendesse com a solicitude desconfiada de um cão de guarda. É por isso, e só por isso, que sáe de dia da sua tóca! Elle é o depositário das chaves da egreja, e de ninguem as confia. Quando entram visitantes, perfila-se ao pé do altar-mór, onde estão as tres imagens, e não as perde de vista, com medo de que algum d'elles possa furtaI-as ou danifical-as! Diga-se porém, para desdouro do meu pobre Francisco: este zelo, que indubitavelmente tem sido o salvador d'aquellas preciosidades, é inteiramente estranho a qualquer concepção do beIlo na arte. É o zelo religioso, desprendido de qualquer ideal artistico. Porque o Francisco mostra egual solicitude por um presépe, com figuras grosseiras de barro, que está ao fundo do côro. Para elle o boisinho e os tres reis magos do presépe, que não valem nada, valem tanto como a cabeça da Magdalena! Ha na egreja outras imagens e figuras; mas só as tres, que deixo descriptas, e as do presépe, é que Ihe inspiram aquella solicitude feroz, capaz de o levar ao assassínio contra uma tentativa de furto. As outras deixaria elle furtar sem pena de maior. O porque desta singular mistura do presépe com aquellas tres imagens, é que nunca pude averiguar.

Para acabar com o Francisco, lá vão mais algumas pennadas. O velho sachrista é muito parco de comentários e explicações, menos quando o interrogam a respeito da batalha do Bussaco, ferida em 27 de setembro de 1810 entre o exercito francez, commandado por Massena, tendo Ney, Junot e Regnier por Iogares-tenentes, e o exercito anglo-Iuso, commandado por Wellington, com os generaes Leith e Hill. Essa batalha testemunha o erro crasso, que praticaram dois generaes illustres: Massena atacando posições inexpugnaveis, cuja posse pela victoria lhe não podia dar mais do que lhe deu depois da derrota a passagem de Boialvo; e Wellington defendendo posições, cuja conservação pelo malogro do ataque não impediu, que tivesse de retroceder / 33 / precipitadamente para se acolher ás linhas de Torres Vedras. Sob o ponto de vista da estrategia militar, a batalha do Bussaco foi um duplo desastre. Aliquando bonus dormitat Homerus. E foi para perpetuar a memoria d'este duplo erro de officio, que o snr. Fontes mandou Ievantar, no ponto mais culminante da linha de defeza, um monumento, que um raio já partiu uma vez, e que os solldados do 14 de infanteria são incumbidos de guardar de verão, o que não é desagradavel, e de inverno, o que lhes é extremamente incommodo e aborrecido!

O Francisco conta as peripecias da batalha, e mente, que é mesmo um condemnar para a sua alma! Só póde ter como attenuante para tamanhas pêtas o ter assistido á batallha... de longe, ao abrigo da matta, onde raras ballas chegaram. A esse tempo tinha elle quinze annos feitos. É já velhote, como se vê, mas de rija tempera, pois que tem resistido a tres ataques de apoplexia. Esta força de resistencia vital poderá talvez explicar-se pela forma especiaI do seu nariz, muito parecido, nas dimensões e no colorido com a carúncula de um peru, O sangue afflue apopleticamente... mas a massa cerebral fica illesa, porque a caruncula do nariz incha e o absorve. O que não é pêta, e isso conta elle conscienciosamente, é ter o general Wellington dormido num dos quartos do convento, que ainda se mostra no estado, em que então se achava, e ter elle tido o cavallo amarrado á terceira oliveira do terreiro, contiguo á entrada do convento, donde expedia as suas ordens, quando os incidentes da batallha o não obrigavam a aproximar-se mais da linha de fogo. N'este capitulo, o Francisco faz narrações assombrosas, que deixam a perder de vista, no exaltar grandíloquo, as proezas dos heroes de Homero! Se, porém lhe fallam dos frades, do convento, da vida antiga e socego religioso, que ali havia, o Francisco toma-se de repente meditabundo e carregado, e quasi sempre responde com estas unicas palavras: n'esses tempos havia menos luxo e mais religião! E responde assim, dardejando um olhar de colera por sobre os chapeus de telha e louçainhas garridas, tapageuses, das visitantes que o interrogam. É um ollhar, que vale por um anathema contra a violação e profanação da clausura,

Além de guarda da egreja, o Franoisco é o relojoeiro. Tambem não pude saber a razão da mania; mas é certo que o velho sachrista não consente que alguem cuide dos sinos e do relogio. De uma vez, que quizeram entregar esse cuidado a outrem, para se remediarem os continuados desmandos em que o relogio ali anda, o Francisco chorou taes lagrimas, que não houve remedio senão fazer-lhe a vontade. Como o sino de oiro, cantado por Thomas Ribeiro, desperta nas mornas solidões das noites indianas a recordação das nossas passadas grandezas, assim talvez o sino plangente do Bussaco desperta na alma do pobre Francisco uma ressurreição da clausura, que elle pranteia, e á qual persiste em apegar-se, a despeito de tudo, com a tenacidade de uma alma, que não póde viver de outra vida! O sachrista do Bussaco e o actual ministro do reino teem esse ponto de contacto: um fundiu em magnificos versos acrisolados sentimentos, que outro exprime inconscientemente em magoas do coração. O humilde sachrista não pedirá uma esmola ao radiante ministro; a unica esmola, que poderia pedir-lhe, seria que authenticasse a promessa, que para o consolar lhe fez Silvestre de Lima, de o enterrar no Bussaco, plantando-Ihe um cedro, um cupressus, em cima da cova, Um bello ideal de poesia: o passado rejuvenescendo viridente pelas transformações da natureza! Mal sabe o pobre Francisco, que esse ardente desejo seu corresponde a affirmações pantheistas, que se acommodam muito mal com o juizo final do valle de Josaphat e outras doutrinas religiosas, que os seus frades lhe ensinaram!

E agora acabo de vez com o Francisco e muito solemnemente lhes prometto, que no capitullo seguinte contarei o assumpto principal da minha conversação com o Silvestre de Lima na fonte do Carregal, e bem assim a connexão intima d'essa conversação com os nomes de Sousa Martins e Carlos Tavares, com a explicação das razões que no dia seguinte deram commigo na serra da Estrella, e o mais que se seguiu, muito curioso em aventuras e informações de varias especies,

Até que a final vou dizer qual era o assumpto principal da minha conversação com o Silvestre de Lima, aos tantos de agosto, pelas quatro horas da tarde, na fonte do Carregal, que passa por ser a de mais fina agua de todas as fontes do Bussaco. 

III

Silvestre de Lima estava muito choroso. Alguns dias antes, uns malvados tinham deitado fogo ao matto grosso da vertente occidental da montanha (maleficio já renovado depois d'isso) e por pouco que o incendio não salteia na matta. O sino tocou a rebate; mas, ao contrario do que noticiaram as gazetas – e essa falta de verdade escandalisou profundamente o nosso amigo – ninguém acudiu da povoação de Luzo ou das aldeias visinhas. A gente de Luzo é de seu natural bravia, e olha com olhares pouco benignos para os forasteiros, que lhes dão abundantes elementos de commercio, e para os progressos, que pela affluencia d'elles se realisam, e que lhe augmentam as condições do bem estar. A matta, para ella, não é senão um repositorio de boas traves e vigas, que muito bem podiam ser cortadas para desfazer em taboado, e de matto, que muito bem podia ser queimado, para d'elle / 34 / sair relvagem, que servisse ao pascigo do gado. Por tanto, se a matta ardesse, que a levasse o diabo. Até seria um beneficio!

Mas voltando á vacca fria: certo é que uma grande parte da formosa matta do Bussaco, senão toda, teria sido devorada pelas chamas, se não acudisse ao incendio o destacamento do 14. Os soldados atiraram-se a elle com todo o denodo e valentia, e voltaram de lá triunphantes, arrastando grandes tições da ramaria com que o tinham abafado, e vangloriando-se... de terem derrotado os francezes! As faulhas do incendio fizeram rebentar, sob a fórma picaresca, tradicional das casernas, uma faulha do antigo valor guerreiro, que só pede um ensejo para se manifestar, e um general para o dirigir. O ensejo é de certo mais facil de achar que o general. Aquelles solldados, que tinham derrotado o fogo, sentiam-se de animo capaz de derrotar egualmente os invasores da patria; e quiçá se lastimavam de o não poderem fazer. Grito inconsciente de uma aspiração nobilissima... que deveriamos aproveitar para nos precatarmos!

Os soldados portaram-se valentemente, e o general em chefe, Silvestre de Lima, elogiou-os em ordem do dia. Este caso amofinou muito o nosso bom amigo, porque elle quer tanto aos musgos da matta, como quer aos musgos da sua cara. Mas não era isso o que principalmente o trazia tão penalisado. Casos tristes lhe obumbravam o espirito O verão corria muito damninho para os velhos pinheiros da matta, dignos rivaes dos cupressus ou falsos cedros. Uma duzia, dos mais venerandos e corpulentos, tinham baqueado repentinamente, despedaçando o arvoredo proximo, e deixando em aberto enormes clareiras. Vi uma secção de um d'esses troncos, que accusava uma edade não inferior a duzentos e cincoenta annos para o gigante prostrado! Silvestre de Lima contou-me, que, á hora de maior calor, e quando nem a mais leve brisa se fazia sentir, os vellhos pinheiros começavam a gemer; mas com tão fortes e doloridos gemidos, que se ouviam em toda a matta, causando uma impressão de profunda tristeza, como se fôra um ser animado, que estivesse a despedir-se d'este mundo, e a contorcer-se nas agonias da morte! Dentro de breves minutos, ouvia-se um baque estrepitoso: era o gemebundo pinheiro, que caia, fuIminado! Tão sabido se tomou o caso, que em soando os taes gemidos sinistros, o padre Mauricio, capellão do convento, dizia já para o Silvestre de Lima, seu amigo, e habituaI companheiro de passeio: lá vae mais um! E punham-se a olhar um para o outro, não rezando as encommendaçães pelos moribundos, porque a Iythurgia botanica ainda os não formulou, mas encommendando mentalmente à madre natureza a seiva, que dera vida e ramagem ao adusto patriarcha da montanha!

Silvestre de Lima, pensando reflectidamente sobre o caso, qualificou-o de apoplexia, que elle me explicou pouco mais ou menos do seguinte modo: a ardencia da temperatura, combinada com a humidade do solo, provoca um forte movimento ascensional da seiva; as cellulas do pinheiro, que já estão gastas, estálam, rompem-se; é essa a causa dos gemidos; o estalar de muitas cellullas na mesma zona de secção produz como que um córte, e o pinheiro tomba. Eu fiz um gesto de quem não ficava muito convencido com a explicação, e Silvestre de Lima atalhou, dizendo:

– Também disse isto ao Sousa Martins.

– O Sousa Martins está cá?

– Está. Vae-se hoje embora, em excursão á serra da Estrella.

 

Despedi-me sem mais conversação, e parti de corrida. Não queria deixar partir Sousa Martins sem o abraçar. Em Lisboa, atarefados um e outro com afazeres, que os prendem todas as horas do dia, só de longe em longe nos avistamos, trocando, não um aperto, mas um aceno de mãos. Puz-me a procural-o em Luzo, mas no hotel Serra e no Lusitano ninguem o conhecia de sua figura. Dei-Ihes um signal inequivoco: a cabelleira do abalisado medico. Ah! isso sim! está ahi um senhor com uma grande cabelleira. Não precisei de que me indicassem o seu quarto, porque vi detraz de uma janella a gaforina enorme do illustre clinico. Não vá pensar, quem o não conheoe, que elle usa uma cabelleira de tenor. Sousa Martins traz o caibello aparado comme il faut; mas a natureza é que zomba da thesoura do cabellereiro, porque lhe poz na cabeça pilosos tufos indomáveis!

– Então v. como tem passado?

– Bom, e v.?

– Magnificamente. Então volta á serra da Estrella?

– É verdade. Preciso de alguns esclarecimentos complementares para o meu relatorio e para um estudo importante de postos medicos.

 – Tenho pena de não o poder acompanhar; mas com uma hora só, que falta para a partida do comboio, não me desembaraço.

– Pois eu sinto, que v. não venha, mas não posso perder um dia, á espera

– Então boa viagem. Se jantar a horas, ainda lhe venho dizer adeus. E fui jantar. Volltei ao hotel. Sousa Martins estava atacando as fructas. Faltavam vinte minutos para a partida do comboio.

– Venha dahi, homem!

– lmpossivel. Precisava, pelo menos, de duas horas de trabalho, para deixar obra feita.

– Isso remedeia-se. Á noite nós dormimos, e v. desanca o governo á vontade, se nem ahi o deixar a telha de querer endireitar o mundo.

Reflecti alguns segundos. A idéa era magnífica, e decidiu-me. Fui a casa n'um pulo; entrouxei um bom cobertor, um lençol e uma travesseirinha, para as dormidas ao relento; metti n'um sacco alguma roupa / 35 / branca, e viveres de conserva; puz uma carabina em bandoleira, pau ferrado na mão e toca de partirda para a estação do caminho de ferro, em passo acelerado. Dois minutos depois partia o comboio, começando a deslisar por debaixo dos nove tunneis, e por sobre os seis viaductos, que separam a estação de Luzo da estação de Mortagua. Foi ahi que comprehendi o plural nós, empregado por Sousa Martins. Em Lisboa, aggregára-se-lhe Carlos Tavares, com quem eu já travára conhecimento na Ericeira; Carlos Tavares, que resolvera acompanhar Sousa Martins quasi com a mesma precipitação, com que eu me decidira a partir, e que se apresentava de sobrecasaica e sapato fino, parecendo-Ihe que o solo granitico da serra seria liso e macio como o betume granitico dos passeios do Rocio!

Carlos Tavares, que tem um formosisimo talento, possue tambem os mais formosos oIhos d'este mundo, olhos de antilope, doces, humidos, avelludados. Chegam a ser um escandalo n'um homem de sciencia séria e austera como elle é. E ao vêl-o, franzino e languido, e assim entrajado, não pude ter-me que não dissesse a Sousa Martins, com as minhas prosapias de beirão enrijado em Traz-os-Montes: – este peralta fica-nos por lá desfeito em bocados!

– Talvez! – murmurou elle com um sorriso desdenhoso. Mas o caso é que voltou inteirinho. Outro tanto não sucedeu aos sapatos!

Assim foi, que parti para a serra da Estrella, excursão de que prometi dar conta, porque como já disse, ha n'ella um capitulo de alto valor humanitario e scientifico. Esse era o fim principal da visita de Sousa Martins. O resto foi accessorio, embora de muito agrado para todos nós. Ahi por nove horas da noite demos fundo em Mangualde. A razão d'esta paragem constitue o primeiro capitulo da nossa expedição á serra. Como bons exploradores, que eramos, juráramos que haviamos de descobrir, pelo menos, tres segredos; um por cada cabeça. Como já estava descoberto, o do Cubango, descobrimos o segredo de Mangualde, o de Gouveia, o da lagoa escura, e o da geleira. Para bem dizer, só descobrimos verdadeiramente os dois primeiros. Os dois ultimos, achámol-os mas não os desatámos. Recommenda-os a futuros exploradores, especialmente o da geleira. D'estes e outros assumptos tratarei nos capitulos seguintes, sendo o primeiro destinado á apresentação do phtysico da serra, snr. Alfredo Cesar Henriques, ex-flanneur do boulevard des Italiens, e actualmente cidadão da serra da Estrella, sob o patrocinio de Sousa Martins.

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(1) – É mantida a ortografia da época em que o documento foi escrito.

 

páginas 21 a 35

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