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N.º 11

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1971 

Júlio Dinis
O médico das almas simples

Pelo Dr. António Tavares Simões Capão

Professor do Liceu de Nampula

I

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Na sociedade em que vivemos, encontramos sempre pessoas de carácter que nos desconcerta; umas de temperamento indolente, olhando tudo à sua volta sem interesse ou preocupações; para esses tudo está bem na vida; outras são exaltadas, nervosas, sempre agitadas, para quem o tempo não chega, sempre ocupadas no trabalho diário, em actividade constante, desdobrando-se incansável e febrilmente na luta pela vida, enquanto a saúde lhes é favorável, e não aceitando os inactivos e os desinteressados; algumas, de compleição doentia, por vezes sentimentais, emocionam-se com facilidade perante as situações dolorosas próprias e alheias, deixam-se sucumbir por seus estados depressivos, não suportando nem os seus momentos angustiosos nem os dos outros e permitindo deixarem-se dominar absolutamente pelas contrariedades da existência; outras ainda constituem uma parte da colectividade que não agrada a ninguém – são as de acções desonestas, as que se vangloriam com o mal dos outros e não se importam de usar de artimanhas para avançar, aproveitando-se das boas vontades e das boas intenções sem que qualquer remorso lhes fique a mordiscar na consciência; há também o grupo daqueles que se julgam superiores ao conjunto, quer pelo saber quer pelo poder que quase sempre lhes vem de atitudes menos altruístas, espécie de tiranetes aproveitados para a subordinação da massa; são os pavões da sociedade que acabam par atrair sobre si a desconfiança, a antipatia do conjunto e até o próprio ódio; são as que, jogando com atitudes dúbias ou equívocas, não geram amizades e acabam por viver isoladas. Finalmente, algumas são uma espécie de anjos protectores da sociedade, principalmente dos infelizes, e formam uma minoria, porque ser bom e rectamente cristão não é tão fácil como parece.

Ora estes tipos humanos, que fazem parte da galeria literária de figuras criticadas através da sátira social de todos os tempos, são tão reais hoje como foram ontem e como serão amanhã.

Há certas palavras que traduzem conceitos sociais e políticos que não podem de maneira alguma dar-nos o significado de uma realidade em toda a sua extensão; aceitar com toda a amplitude a significação do termo democracia, por exemplo, é estultícia tão grande quanto já o fizera crer o próprio Platão a propósito do conceito de república, uma vez que ele concluiu que esta forma de governo só seria possível, realmente, para uma saciedade ideal, que, em boa verdade, não, existe. Efectivamente, para qualquer dos casos há sempre um grupo que domina e que tenta orientar os outros, nem sempre seguindo directrizes de acordo com a totalidade. Dentro dessas concepções da vida política, temos de / 8 / colocar o homem agindo sob as possibilidades e capacidade da sua inteligência e do seu coração, concordando ou discordando, mas vivendo.

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Desenho à pena de Júlio Dinis por Vítor Mendonça (1970)

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Se isto foi assim e continua a ser, não há dúvida nenhuma de que o espírito dominador e tirano se foi modificando através dos séculos e o indivíduo, a pouco e pouco, embora por vezes com muitos sacrifícios, foi conquistando a liberdade a que tinha jus, ao mesmo tempo que foi desarticulando e destruindo os vínculos da ideologia absolutista e dominadora, que, justificando-se em certas alturas históricas, não deixava de constituir um vexame à liberdade individual que assiste ao homem como um privilégio que advém da sua origem divina, como criatura provinda da vontade e da bondade de Deus.

Foto n.º 1 – Reprodução da fotografia pouco conhecida do escritor com lunetas, que pertence à família Duarte Silva.

Eis, pois, porque o homem, conhecendo direitos inalienáveis, foi lutando e conquistando o seu próprio lugar; mas é a revolução ideológica e filosófica do século XVIII que definitivamente o lança no caminho que deve seguir, colocando-o no lugar mais conveniente, pois que o século seguinte não apresenta mais do que uma prova real de contas postas em equação anteriormente, tendendo para o desenvolvimento da técnica que havia de dar à humanidade possibilidades de progresso até então imprevisíveis.

Vencer o espaço e o tempo, isto é, percorrer o espaço num mínimo de tempo, é preocupação que absorveu o homem desde a invenção da roda; com esta e com o aproveitamento das forças da natureza, estava ele a entrar no domínio da máquina, procurando atingir um maior rendimento com um mínimo de esforço.

Foi, pois, o homem, ao longo dos tempos, reagindo a estruturas sociais e de pensamento empedernidas; e destronadas ideias e atitudes medievas, já sem razão de ser, o espírito crítico põe em dúvida um conjunto de axiomas e de juízos de valor considerados imutáveis; a dúvida começa a pairar sobre a verdade e a solidez de um edifício que, dentro em pouco, ameaçaria desmoronar-se, porque as bases, apodrecidas pela velhice, principiavam a ruir em toda a sua extensão.

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Figura n.º 2 – Iconografia de Arnaldo Zagallo Gomes Coelho Duarte Silva, actual possuidor das obras da biblioteca de Júlio Dinis de que falamos, residente em Nampula.

Descartes, com a dúvida metódica, isto é, com uma dúvida que serviria para atingir a verdade, magistralmente exposta nesse prodigioso livro que culminou a grande revolução das ideias e que se chama o «Discours de Ia Méthode» (1636), abria como um portento, a porta à ciência, ao mesmo tempo que dava a cutilada final nos princípios aristotélicos tradicionalistas, durante / 9 / tantos anos em plano superior, acerrimamente defendidos e considerados inultrapassáveis; ora este notável autor coloca em lugar à parte a moral prática que é assegurada pela tradição consuetudinária e a religião que escapa ao seu método, visto que está baseada na autoridade, logo que ele empreende a análise que há-de arruinar os princípios filosóficos tradicionais. E como se manifestou, durante toda a vida, um crente sincero, muitos escritores e outros vultos intelectuais aceitaram as suas teorias como um meio moderno de defender a religião; com efeito, no século XVIII, a razão apoiou-se na análise e na evidência para fazer a apologia da fé contra os espíritos fortes. Mas a razão individualista, que escapa a qualquer limitação, tanto serve para construir como para destruir; daí o facto de Bossuet se aperceber do perigo em questão, que o século XVIII viria a confirmar plenamente.

Se este século, em França, foi considerado o século da filosofia, e esta não é tida então como um mero exercício especulativo, mas uma força em acção; se passou a ser considerado o século da ciência, que nesse tempo também não era especulativa, mas uma força que queria conquistar as almas, pondo-se ao seu alcance para a vulgarização; se é o século da revolução, isto é, tendente a destruir em todos os aspectos da sociedade os princípios da autoridade; se os escritores já não pensam em trabalhar para um público aristocrata, que até então constituía uma elite, mas enveredam pela filosofia prática para conquistarem a opinião pública; se o século XVIII foi tudo isso, também é verdade que foi o Século do cosmopolitismo: a França, olhando para a sociedade universal, lançava para fora das suas fronteiras os seus ideais, ao mesmo tempo que recebia de toda a Europa novas ideias, adesão às suas e uma mais forte excitação intelectual.

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Foto n.º 3
– Ver legenda explicativa.

Portugal, por mercê de circunstâncias históricas, políticas, económicas e sociais, não pôde ficar alheio, nem sequer indiferente, à profunda convulsão em que a Europa se debatia, mantendo-se, como foco alimentador da combustão, esse país extraordinário.

Com tudo isso, o dealbar do século XIX é, do ponto de vista técnico, e científico, vincadamente promissor; os nossos escritores e intelectuais, obrigados a andanças pelo estrangeiro, verificam a necessidade de reformas dentro do país, propícias ao avanço das ciências em todos os campos, nomeadamente no das comunicações internas e externas e na remodelação dos processos agrícolas, já que a terra era considerada o grande manancial da riqueza de qualquer país, e, particularmente do nosso; daí adviria, como consequência imediata, a remodelação das estruturas industriais e das transacções comerciais.

Ora a vida de Joaquim Guilherme Gomes Coelho decorre, não longa, em pleno século XIX, desde 14 de Novembro de 1839 até 12 do mês de Setembro de 1871; nasceu e morreu no Porto que era, como é ainda hoje, o grande centro comercial desse vinho espirituoso dos socalcos do Douro que tem o seu nome, filho de D. Ana Constança Potter, mas órfão muito cedo; trazia nas veias sangue inglês ligado aos burgueses comerciais da cidade, tendo conhecido, na intimidade, famílias inglesas e observado aspectos da sua formação, seus usos e costumes; por outro lado, viveu em época tranquila e assistiu às reformas do Partido Progressista e / 10 / do Regenerador que se alternavam no poder; Júlio Dinis observava e anotava; assistiu também ao período agonizante do Romantismo piegas e ao nascer do Realismo, com a «Questão Coimbrã», mantendo-se, todavia, à margem das lutas literárias e filosóficas, trilhando, com equilíbrio e bom senso, um caminho que aproveitava as pedras positivas de uns e de outros. E marchou seguro de si próprio.

II

A FEIÇÃO TEMPERAMENTAL DO ESCRITOR

E O AMBIENTE DO SEU ROMANCE

O povo português tem características especialíssimas que o individualizam e especificam entre todos os povos da velha Europa; latino, distingue-se profundamente dos seus irmãos de origem; no conjunto europeu, embora mais aparentado com os latinos, difere destes, mas muito mais substancialmente dos outros, nomeadamente dos germânicos. E no grupo de particularidades que o caracterizam, tornando-o um povo sui generis, está a razão por que, através dos tempos e em momentos oportunos da história, nunca o colosso da Espanha conseguiu dominar este cantinho da Península Ibérica, nem as poderosas águias napoleónicas o submeteram inteiramente; em qualquer dos casos históricos que se invoque teve necessidade do auxílio externo e alheio; mas este só foi evidente na quantidade e na técnica, porque o fortalecimento interior próprio da raça sempre foi chama viva no peito de cada pessoa nele nascida, vincadamente identificada com a terra numa amálgama indómita de sangue a polarizar esforços e a fazer reverdescer e a produzir os campos.

O Português não é uma raça pura, como não creio existir alguma; a ideologia da raça pura ou a purificar só podia nascer na cabeça de um louco como o tão tristemente célebre Hitler, cujas ideias foram alimentadas pelas teorias filosóficas de Nietzsche; era a utopia idealista num campo da sociedade a querer vencer a razão dos fados consumados pela história dos povos europeus.

O povo português é semelhante a um tapete tecido e cerzido por vários sangues, por várias raças, das cores mais diversas; aí anda misturado o sangue ibérico, celta, fenício, godo, franco, saxão, árabe, romano, negro, hindu – tapete tão matizado que faz ressaltar à vista uma característica primeira e fundamental: a facilidade de cruzamento com os povos mais díspares a dar a ideia de plurirracialidade muito particularmente sua e dispondo-se a integrar todos esses indivíduos no tablado político e territorial da nação. Mas isto, que é verdade para a português actual, já o fora decerto modo antes da avalanche dos descobrimentos; simplesmente depois deles se veio a alargar e a concretizar longe do solo pátrio. Evidentemente que, à volta desta, outras se agrupam, brotando, da insuflação telúrica, como o entusiasmo, o espírito de aventura e a impulsividade ao lado do carácter amoroso e lírico, da brandura e da generosidade. Lembramos com emoção o conteúdo ideológico daquela dúzia de páginas de Albino Forjaz Sampaio. «Porque me orgulho de ser português», que são uma resposta válida e dada muito a tempo ao orgulho do Conde Afonso Celso, brasileiro.

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Foto n.º 4 – Ver legenda explicativa.

Foi, pois, assim o povo português através dos séculos; e ainda hoje o é; sem a menor repulsa e com o maior à vontade deste mundo, qualquer homem português funda o seu lar em comunhão íntima de etnias; o que, digamos de passagem, não se observa com esta liberalidade peculiar, nos outros povos europeus, e muito em particular, no inglês.

De qualquer modo, o nosso Júlio Dinis, português do Porto, trazia nas veias, por parte da mãe, sangue inglês; e como se cruzara o sangue, o escritor seria também o produto de um cruzamento temperamental, embora já muito diluído na terra portuguesa; assim como Bocage herdara da sua ascendência francesa o tique da inconformidade e da rebelião a preconceitos, o espírito aguçado para a resposta sempre pronta e acutilante, dons que ele esbanjou prodigamente, assim o nosso Gomes Coelho deixou desabrochar em si o toque fleumático da alma inglesa, a ponderação e a acalmia propícias ao julgamento dos homens e das coisas sem estados de excitação; é figura que, sem grande esforço, podemos imaginar nas ruas tortuosas e nevoentas dos parques de Inglaterra.

Desde muito cedo que Júlio Dinis ficou marcado pela tísica; e, tendo-se dedicado ao curso de medicina em que se formou, alcançando boas classificações, inclinou-se posteriormente para o magistério, vindo a ser professor da Escola Médico-Cirúrgica em 1865, por nomeação precedida de dois concursos de provas públicas. Estava, quanto a nós, bem escolhido o seu ramo de vida que não lhe pedia grande agitação, mas que o lançava no estudo e na reflexão; de temperamento ponderado e atreito à bonomia, o nosso Autor não terá tido «uma predisposição inata para a alegria, para a esperança e para o amor à vida», como quer ver a maior parte dos críticos; sabia muito bem, como médico, que a doença de que era vítima não poupava ninguém e que ele não podia ser uma excepção à regra; a tuberculose era então um dos maiores flagelos da humanidade e ele tinha plena consciência disso; o que nos parece é que, mercê de condições temperamentais, terá sido capaz de sublimar um estado desesperado e de transformá-lo num exemplo sadio de / 11 / resignação que faz transparecer uma lição de optimismo e de alegria que não podem corresponder à sua realidade pessoal. As situações de vida jubilosa que transparecem da sua obra em geral regulam uma série de situações de altruísmo que não deixam de nos impressionar; era um consumado artista; tinha que aproveitar a vida de maneira positiva; não lhe interessava seguir as pisadas dos ultra-românticos, acrescentando mais situações e descrições lúgubres; e, ao mesmo tempo que mantinha o equilíbrio literário entre duas posições que se apresentavam antagónicas, ele procurava uma válvula de escape para o seu mundo interior que tinha os dias contados; e já que não podia gozar, na realidade, de uma vida verdadeiramente alegre e sã, procurava transmitir aos outros, por uma força antinómica invulgar, tudo aquilo que pode levar à felicidade terrena; e esta resignação comprovada vai ele constantemente buscá-la à pureza do Evangelho, do que nos dá tantas provas através das suas obras. Por outro lado, pouco se tem olhado para as fotografias do nosso primoroso escritor; em nenhuma delas o Autor se deixa transparecer em felicidade e alegria que fez brotar de todos os corações; pelo contrário, podem ser interpretadas como o indicativo de um homem abatido e vencido pelas circunstâncias dolorosas da doença que o minava; e Augusto é, com certeza, a alma mais gémea da sua.

Sabemos também quanto ele procurou alívio para os seus males; o sossego do campo, as estadias na Ilha da Madeira, provam também as preocupações do homem que, sendo médico, tinha consciência do seu mal e sentia que a vida se lhe escapava a cada instante.

Desta combinação de situações coincidentes na sua existência – a vida de professor no Porto, as suas estadias em vários lugares no campo, mas relativamente perto dessa cidade nortenha – deram-lhe possibilidades de criação de uma ambiência própria para os seus aliciantes romances.

III

DO BUCOLISMO AO ROMANCE CAMPESINO

Pensarmos que o movimento romântico foi o rompimento absoluto com os ideais clássicos, é mostrarmos ignorância sobre o espólio literário da época em todas as suas fases. Na verdade, o retorno à Idade Média e aos valores nacionais implica um debruçar constante sobre temas e ideias do passado, incluindo a cultura clássica; foi-o, sim, nos aspectos particulares da arte e nas estafadas regras formais; mas há valores clássicos que são eternos, e desses a cada passo os topamos em escritores românticos, realistas, simbolistas, etc. A ruptura deu-se, efectivamente, em oposição a tudo o que cristalizara: ideias, conceitos e situações; pugnava-se pela eclosão de novas directivas capazes de orientar o homem no sentido de progresso e de opor a uma ideologia estática, uma ideologia toda dinâmica e individualista. / 12 /

Aliás, o conhecimento das literaturas antigas e as suas relações com as sociedades coevas fazem parte de uma cultura que todos os vultos intelectuais posteriores têm obrigação de ter assimilado como substrato base, sobre o qual tem de assentar todo o edifício cultural moderno. Por isso mesmo nós encontramos um Eça de Queirós a deliciar-se com algumas odes de Horácio, até porque o tema do Carpe diem apresenta enormes possibilidades para ser explorado pelos realistas.

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Foto n.º 5 – Ver legenda explicativa.

Dos muitos exemplos que poderíamos citar na obra de Júlio Dinis, lembramos aquele passo em que Daniel, acabado de formar, se sente entediado e, num desabafo, relembra, com intenção inversa, o locus amenus da vida virgiIiana:

«Ó sonho dourado dos poetas de geórgicas e idílios, como eu me estou deliciando em ti! Eis a secura quies, os otia in latis fundis e os molles somni, de que fala o poeta. É isto! Ora eu sempre queria que aquele bom Virgílio me dissesse o que se há-de fazer no campo a estas horas do dia?» (1)

Pelo boca da sua personagem, que, após o curso, se sente atirada para o começo da vida prática e à espera dos primeiros momentos em que possa mostrar a utilidade do que andara a fazer, ironiza a paz virgiliana, embora venha a aceitá-la com toda a força da sua alma nos sucessos posteriores da sua encantadora novela.

O romance campesino, aliás, e muito particularmente entre nós, não pode ser tido como uma criação espontânea e original do século XIX; a natureza idílica, quer se apresente como mero cenário, quer como fonte de emoções, perpassa, vigorosa, através das composições trovadorescas, espraia-se em rajadas precocemente românticas na «Menina e Moça» e estilizada e deliciosamente envolvente nos quadros clássicos das éclogas de Bernardim, Sá de Miranda, António Ferreira, Camões, Diogo Bernardes, etc., religiosamente renascentista nas descrições naturalistas da «Consolação às tribulações de Israel» de Samuel Usque; e se alguns pastores são popular e rudemente caracterizados em certas peças de teatro vicentino, que quase chegam a tocar a écloga, não são menos realistas pela sua rudeza os pastores de Manuel de Melo; em contrapartida, Rodrigues Lobo continua as descrições lírico-sentimentais ao lado de facetas moralistas que seguem a directriz mirandina.

Mas é fundamentalmente no século XVII com as «Pastorais e os «Romances» de Rodrigues Lobo que vai surgir a base do futuro romance campesino; eram descrições da natureza em prosa, alternando com composições poéticas clássico-líricas, como aconteceu com a «Diana» de Jorge de Montemor, com a «Menina e Moça», mas seguindo sobretudo o modelo da «Arcádia» de Sanazzaro.

De feição diferente, tentando um retorno aos ideais clássicos puros e em luta aberta com o estilo barroco, com a atitude arcádica de influência francesa, alterna a nossa literatura do século XVIII com a crítica marcadamente filosófica e iluminista. / 13 /

E, dentro do racionalismo reformador, chegamos ao século XIX; é aqui que, de mistura com lendas medievais e narrativas históricas nacionais, surge a primeira criação de novela campesina; Herculano tem o grande mérito de, no seu tempo, estabelecer um tema a que só Júlio Dinis, posteriormente, daria forma definitiva, mas de tal modo que nenhum dos seus continuadores foi capaz de igualar; ele foi entre nós a grande organização de artista do romance campesino. E temos a confirmação de que, desde muito cedo, lia com entusiasmo «O pároco da aldeia», novela por que sentia grande estima.

Depois da exploração do ambiente burguês e comercial do Porto, que o autor conhecia de perto e muito bem, depois das descrições da vida aperaltada dos meios portuenses, Júlio Dinis lançou-se no estudo activo dos ambientes burgueses campesinos, porque só estes poderiam trazer à sua alma angustiada a serenidade e a paz por que ele tanto se esforçava. Conheceu profundamente esses meios rústicos e bebeu sofregamente a docilidade dos campos na sua alegria primitiva e sã. E a doença terá sido um factor considerável na descoberta desse mundo tantas vezes desprezado.

IV

AS FIGURAS DA OBRA DE JÚLIO DINIS: ASPECTOS

REALISTAS A PAR DO IDEALISMO ROMÂNTICO

É simpático e convidativo o mundo humano das obras de Júlio Dinis; as figuras femininas, rodeados de uma auréola de pureza e de simplicidade, convidam-nos a penetrar no mais íntimo das suas almas e a travar com elas um diálogo indefinido; mergulhadas num ambiente de burguesia, quer se integrem na vida da cidade ou na vida rústica de proprietários mais ou menos abastados da aldeia, trazem às obrigações dos trabalhos a nota suave e poética da felicidade patriarcal; se elas não fazem parte integrante da família a que estão unidas pelos laços do sangue, como acontece com Madalena e Cristina, estão ligadas a ela por uma espécie de generosidade universalizada que é fruto do amor emanado do Evangelho que se espelha no rosto e nos corações das personagens: é este o caso das órfãs Margarida e Clara em relação ao Reitor e à casa de José das Dornas ou de Cecília em relação à família de Mr. Richard Whitestone. Jenny constitui o fulcro da família inglesa, à volta da qual gravitam os sucessos familiares nas suas relações íntimas com a família Quintino; é o anjo do lar a coordenar todos os movimentos com tendência a desvio.

Beatriz é o símbolo feminino da família aristocrata em decadência, a pairar como anjo tutelar sobre a Casa Mourisca e a alimentar os últimos dias da vida de seu pai já impotente para reagir à derrocada, mas orgulhoso demais para aceitar novas soluções que podiam ser a salvação económica; por isso, a figura de Beatriz só nos aparece em comparação com a de Berta, e, sobretudo, como uma recordação saudosa; corresponde de certo modo, e em plano social diferente, à Ermelinda da «Morgadinha», uma outra flor que estiola entre um pequeno conflito familiar e religioso, entre um laivo de razão e o fanatismo. A Chiquinha trigueira do João da Esquina é o tipo leviano de rapariga saída de uma família que vive do negócio e que não tem propriamente um modo de vida, o que lhe permite alimentar o espírito com devaneios e dar origem ao curiosíssimo episódio em que o novo médico se vê envolvido; o belíssimo quadro onde entram João da Esquina e José das Dornas, em que este, perante um esforço inaudito, lê, por imposição do tendeiro, os versos feitos por Daniel a Francisca, e responde, completamente alheio às intenções tendenciosas daquele, aos seus comentários – tudo perpassando em naturalíssimo diálogo é uma das páginas mais felizes do nosso Autor.

As donas de casa, como a mulher de Tomé da Póvoa, as tias do Mosteiro e a criada Maria de Jesus, etc., enchem completamente o ambiente de família com os seus insistentes conselhos, com os seus cuidados e avisos, com os seus aborrecidos ralhetes aos criados.

Mas, de entre estas, há uma que ressalta substancialmente do conjunto pela sua vivacidade e dinamismo; a descrição da casa da Ana do Vedor, ama de Maurício e de Jorge, feita na altura da visita daquele, é um primor de pintura carregada de elementos realistas tanto na apresentação do ambiente de trabalho na cozinha de trânsito rural, como no diálogo entre as duas figuras, sempre interrompido pelos avisos de Ana às preparadoras da fornada. Pormenores precisos e vivos fixados com êxito surpreendente por quem conhecia de perto estas labutas do campo. Mas Júlio Dinis tem muitas páginas como estas, em que se revela um artista consumado e onde mostra o que sabe e o que quer.

Mas a galeria de tipos masculinos não é menos rica; diferenciada pelo sexo, apresenta, naturalmente, características próprias. A uma sociedade aristocrata, depauperada e decadente, ligada a pergaminhos de morgadio a caminho da extinção, opõe-se o nascimento de uma burguesia laboriosa e concretizadora, apoiando a sua actividade no trabalho intenso e calculado; é possível descobrir o tesouro da fábula escondido na terra abandonada; e é esta a lição que o fazendeiro Tomé da Póvoa quer dar aos fidalgos da Casa Mourisca, através do seu filho Jorge, que se enquadra perfeitamente na revolução agrícola. E esta tese do enriquecimento por meio do cultivo da propriedade / 14 / já vem das «Pupilas», demonstrada pelo labor constante e alegre da família de José das Dornas, bem como a da decadência dos morgadios surge simbolizada no Morgado das Perdizes da «Morgadinha dos Canaviais» e na ruína completa dos Primos do Cruzeiro.

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Foto n.º 6 – Ver legenda explicativa.

As figuras masculinas principais aparecem-nos emparelhadas por oposição de carácter a que normalmente correspondem outras tantas femininas; este aspecto curioso já o notou o Dr. Fidelino de Figueiredo na sua «História da Literatura Romântica»; é o que acontece de facto com: Henrique de Souselas – Cristina; Augusto – Madalena; Daniel – Margarida; Pedro – CIara; Jorge – Berta; Maurício – Gabriela; Carlos – Cecília; etc. Grupos que se unem por amor, completando-se cada casal perfeitamente. Os outros tipos deslocam-se à volta destes, animam a acção e dão colorido e vida ao enredo; obrigam a caminhar a sucessão dos factos para a sua finalidade primacial, que, em Júlio Dinis, é o casamento.

Ora, para nós, esta solução sistemática apresenta-se como um dos defeitos do Autor, pois não é, na maior parte dos casos, com o casamento que acabam as dificuldades e os reveses da vida autêntica; pelo contrário começam aí; sentimos esta obcecação do Autor na ânsia de se apoderar de uma felicidade, que, de antemão, sabia ser-lhe impossível atingir; quereria, portanto transmitir aos outros aquilo de que ele próprio não poderia gozar, pois é tradição familiar que a sua correspondência com Aninhas, mormente as cartas enviadas da Ilha da Madeira, não constituíam um mero passatempo de comunicação familiar; haveria mais alguma coisa, pois, dentro dessa tradição; ele gostava dela, simplesmente tinha consciência do seu estado patológico e da sua condenação. Mas este desfecho da sua obra, pela frequência com que é apresentado, constitui a parte mais convencional na elaboração dos seus planos literários. Citamos, pois, algumas dessas figuras mais ricas que caminham ao lado da acção principal: João Semana é uma criação portentosa do génio dinisiano, cujo estudo só pode ficar completo com o do vulto do Reitor, cuja vida se desenrola paralelamente à sua na atitude brincalhona, na generosidade sem medida, na tolerância que é timbre das almas boas, na abertura para o mundo dos infelizes que a todo o momento esperam as suas decisões de entrega e de abnegação. O tio Vicente, o Ervanário, representando um obstáculo ao progresso desenvolvido pelo Engenheiro, pai de Ângela e de Madalena, coração limpo e capaz de atitudes nobres, incapaz de uma vilania, mas que vive sentimentalmente agarrado ao passado; a conversa íntima entre ele e Lena, a propósito da construção da estrada e do desaparecimento imposto das suas árvores e da sua casa, é um mimo de suavidade psicológica entre dois temperamentos, que, para além do amor, se entendiam e conheciam tão bem. E deixámos para o fim uma outra figura que nos seduz porque a sentimos palpável, autêntica, entre a massa aldeã; Júlio Dinis conhecia-a concretamente tão bem como nós; com certeza a viu algumas vezes avolumar-se nessas tão saborosas representações populares que são os autos dos Reis Magos, maravilhosas e ingénuas peças sem autor que pululam nas aldeias do norte do país; Júlio Dinis soube enquadrar no romance «A Morgadinha dos Canaviais» um desses / 15 / autos populares com muita mestria, facto que já assinalámos em estudo nosso (2); daí a criação espantosa de João Cancela, o Herodes, que, senhor absoluto do seu papel, não transige perante os anacronismos históricos, geográficos, cronológicos e consuetudinários; o Autor soube como ninguém ir ao povo beber aí os seus costumes e as suas tradições, amá-lo nas suas manifestações espontâneas e acarinhá-lo com as suas reproduções.

Não podíamos, todavia, deixar passar em falta os tipos religiosos que nos dão a ideia absoluta da interpretação do Evangelho à luz do Autor que procurava o Cristianismo puro e o opunha, partindo do ultra-romantismo, em franca discrepância perante as congregações religiosas e as suas regras intransigentes. O padre idealizado por Júlio Dinis está nas «pupilas» – é o Reitor; mas esta concepção divina e humana do padre que vive exclusivamente para os outros, que sofre profundamente com as suas misérias, que tudo dá, conselhos e bens, para melhorar situações e resolver problemas, é a mesma de Herculano no «Pároco da aldeia», da introdução aos «Contos e lendas» de Rebelo da Silva e virá a ser a mesma de Eça de Queirós na «Ilustre Casa de Ramires». Em contrapartida, e como os escritores racionalistas, Júlio Dinis vergasta acerbamente o frade egresso na pessoa de Frei Januário nos «Fidalgos», e na do missionário na «Morgadinha» que vem a ser violentamente zurzido pelo próprio João Cancela quando ele levou a mulher a cortar o belo cabelo de Ermelinda.

Estas atitudes, tão severamente criticadas então e posteriormente, não deixavam de revelar uma posição certa ou quando muito equilibrada; hoje, mediante as profundas reformas da Igreja, todos temos que lhe dar razão.

Perante algumas situações evocadas da obra deste autor de transição, bem como das personagens mais importantes, verificamos que conhecia bem os princípios realistas literários; se o realismo consiste na reprodução fiel da natureza em todos os seus aspectos – pormenores das gentes e do meio envolvente em que se agitam – Júlio Dinis soube ,dar-nos com originalidade quadros dignos do pincel de Courbert; mas as personagens, para além das características precisas com que são vincadas, estão aureoladas por um idealismo romântico que as torna verdadeiras; assim, conseguiu dar-nos homens e mulheres reais que encontramos a cada passo na nossa vida, e não as chamadas figuras-tipo; deste modo, se tentássemos transportá-las para a tela, teríamos de cair na célebre questão entre os apologistas da cor e os do desenho, de que são representantes e intervenientes os pintores franceses Ingres e Delacroix.

V

BREVES ASPECTOS DA CRÍTlCA DINISIANA

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Habituámo-nos, desde a meninice, a considerar Júlio Dinis um companheiro na nossa casa da aldeia; certas personagens dos seus romances, como a tia Doroteia do Mosteiro e as suas constantes admoestações aos criados, João Semana, Frei Januário, Tomé da Póvoa, o Herodes e o Reitor, andavam na boca do pai como se fossem figuras da família há pouco desaparecidas, sempre invocadas em ambiente de alegria e com um sorriso nos lábios. Por outro lado, por meio de um breve inquérito que fizemos em algumas aldeias do norte da Bairrada, chegámos à conclusão de que as obras mais lidas pelo povo dessa região e presentes num número considerável de casas de lavradores, eram, a par do «Amor de Perdição» de Camilo e da «Rosa do Adro» de Manuel Maria Rodrigues, «As pupilas do  / 16 / senhor Reitor»; isto quer dizer que Gomes Coelho não foi um escritor vulgar, pois da obra se deduz que comungava ideias, sentimentos e factos entre a massa popular, que admirava a sua obra em leituras colectivas de feição patriarcal e familiar.

Foto n.º 7 – O Dr. João José da Silveira, que foi o João Semana das «Pupilas».

Posteriormente, vem a crítica; e esta, tentando por vezes desvendar mistérios impenetráveis sobre alguns aspectos da biografia do Autor, que, aliás, não nos merece grandes complicações e segredos, e sobre os modelos das suas figuras tiradas da vida real, tem vindo a ensarilhar posições e a desvirtuar a simplicidade de que se rodeava o homem e com que envolvia a sua produção literária; às vezes, porque somos complicados, acabamos por enredar as coisas alheias e até as nossas.

O grande biógrafo e crítico de Joaquim Guilherme Gomes Coelho foi o Doutor Egas Moniz, autor da obra notável e de consulta inevitável para quem quiser debruçar-se sobre o assunto. «Júlio Dinis e a sua obra» é estudo fundamental que ainda não foi superado e duvidamos muito que o seja; o seu autor, aliás, amante da investigação e da verdade, é intelectual de alto coturno e de renome universal; médico, cientista e sábio, natural de Avanca, professor universitário, teve à mão tudo quanto lhe era preciso para escrever obra de verdade: documentos manuscritos já publicados, documentos escritos inéditos (todo o espólio de trabalhos não publicados, incluindo rascunhos e peças de teatro, apareceu nas «Obras Completas» da Livraria Civilização), relações estreitas com a família do escritor e com outras pessoas a ela ligadas, sendo, além disso, conhecedor profundo de pormenores tradicionais decorrentes da própria família de Júlio Dinis; estava, pois, à altura de fazer obra de vulto e não claudicou.

Não nos admiramos de que, posteriormente, surgissem outros a especularem sobre afirmações feitas; é até louvável esta atitude e prova que o Autor continua a manter interesse. Neste caso, e para nós, a tradição familiar tem valor relevante; se aceitamos as ideias dos outros, é porque nos merecem toda a consideração, não querendo isto dizer que concordemos com elas em absoluto. Efectivamente, qual é o interesse de uma solução definitiva quanto ao modelo de João Semana? Que mais nos traz de autenticamente positivo e válido, que seja o Dr. José da Silveira (fotos n.º 5 e 7) de Ovar, para quem nos inclinamos, de acordo com a maior parte dos críticos, ou o Cirurgião do Coteiro, Joaquim Silvestre, como quer M. J. Oliveira Monteiro?

Foto n.º 8 – Fotografia do avô de Arnaldo Duarte da Silva, Dr. António Zagallo Gomes Coelho, primo direito de Júlio Dinis e filho de D. Rosa Zagallo Gomes Coelho, de Ovar [reprodução].

Que acrescenta, do ponto de vista artístico, que a paisagem enquadrante campesina seja a da região de Ovar ou das proximidades do Porto? Não há dúvida de que Júlio Dinis conheceu muito bem esses ambientes e pessoas; estamos, portanto no campo das certezas; mas que cada paisagem seja esta ou aquela ou que cada personagem apresentada se identifique com esta ou com outra pessoa, isso é que já nos diz pouco, porque estamos a querer roubar ao Autor a sua capacidade de criação e de abstracção. Parece-nos que cada paisagem tem elementos daqui e de além, bem como qualquer personagem pode apresentar uma espécie de simbiose em que Gomes Coelho reuniu um conjunto de características físicas e morais que teriam pertencido a várias pessoas suas conhecidas. Teve a rara habilidade de observar a realidade com olhos de investigador e de partir daí para as suas criações a que atribuía qualidades e defeitos que eram o produto de uma selecção cuidada, purificada pelo cadinho burilador da sua própria alma; a qualificação das suas personagens é coerente com a feição temperamental do Autor, sempre optimista, para quem as violências instintivas, que vêm da falta de formação e de educação, não apresentam interesse de maior. A alma do Autor, sedenta de vida, não pode gerar outra coisa que não seja amor; e este amor não pode enraizar-se senão no Evangelho; por isso, o convencionalismo dinisiano é pessoal e coincidente com as próprias criações. Aqui é que está a arte de Júlio Dinis, e disto se salienta o desvendar das causas por que a sua Obra entrou / 17 / intimamente no seio da Família Portuguesa onde ainda continua a ser tão apreciada.

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Foto n.º 9 – Lê-se perfeitamente a assinatura de Júlio Dinis e, mais abaixo, a do actual possuidor da obra.

Para qualquer estudo que venha a fazer-se sobre o nosso Autor, consideramos indispensável a consulta dos trabalhos que foram elaborados e proferidos no «Centenário do nascimento do romancista Júlio Dinis», cuja comemoração foi promovida pelos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Porto, de colaboração com a Faculdade de Medicina dessa cidade nortenha. De importância capital foi então a Exposição Bio-biblio-iconográfica, onde estiveram patentes ao público documentos como o registo de nascimento e o de óbito do Autor que podem desfazer certos enganos espalhados por alguns livros de carácter literário. Do mesmo modo, embora discordemos de alguns pontos de teses expostas, as palestras reunidas no «Boletim Cultural (3) não pedem ser desconhecidas pelos actuais estudiosos da literatura Pátria. Aí estão incluídos nomes célebres não só da Medicina, mas também da Filosofia, da Poesia, da Etnografia, da Pintura e da Literatura. O conjunto dos trabalhos e dos seus autores merece ser lembrado, o que fazemos de acordo com a ordem de publicação no citado «Boletim»:


Joaquim Costa (Dr.) – «Júlio Dinis – Valor moral da sua Obra»;

António Correia d’ Oliveira – «Júlio Dinis – Versos lidos junto do seu túmulo»;

Antero de Figueiredo (Dr.) – «Últimos dias de Júlio Dinis»;

Fernando Magano (Prof. Dr.) – «A lição do Senhor João Semana»;

Luís de Pina (Prof. Dr.) – «A Medicina na obra de Júlio Dinis»;

Hernâni Monteiro (Prof. Dr.) – «Júlio Dinis e a tradição literária da Escola Médica do Porto»;

Almeida Garrett (Prof. Doutor) – «Júlio Dinis, Médico e Professor»;

Eugénio Aresta (Dr.) – «Uma lição de Psicologia a propósito da obra de Júlio Dinis»;

Luís Chaves – «Júlio Dinis no campo da Etnografia»   (Notas);

José António de Almeida (Dr.) – «Ainda as Pupilas do Senhor Reitor»;

A. de M. B. – «Ensaio duma biografia iconográfica júlio-dinisiana».

Entrarmos em linha de conta com outros críticos, se exceptuarmos António José Saraiva, na sua «História da Cultura em Portugal», é cairmos em lugares-comuns que deixam de ter interesse; mas há uma edição ilustrada de «As Pupilas do Senhor Reitor», prefaciada por Albino Forjaz Sampaio, em que este escritor declara que Júlio Dinis não foi um médico no sentido corrente do termo, mas sim um grande médico de almas; é isto que todos aqueles que lêem a sua obra podem de facto confirmar.

VI

ENCONTRO COM JÚLIO DINIS EM NAMPULA

O nosso interesse e amor pela obra de Júlio Dinis já estão documentados em ligeiros estudos nossos, um publicado num jornal (4) e outro numa revista (5) da metrópole; jamais tínhamos pensado, ao virmos para Nampula, que surgisse nesta cidade algum motivo que nos levasse a debruçar sobre este escritor do norte de Portugal. O que é certo é que o facto surgiu e há muito acalentávamos a ideia de a ele nos podermos dedicar outra vez. É que, nesta cidade de Moçambique, / 18 / vivem pessoas ligadas pelo sangue à família Gomes Coelho; foi da conversação e do convívio com Arnaldo Zagallo Gomes Coelho Duarte Silva que nos nasceu a ideia de, mais uma vez, nos deleitarmos com a obra deste primoroso e malogrado escritor, visto que está na posse de algumas obras que pertenceram à sua biblioteca, e uma delas até está assinada pelo próprio punho de Júlio Dinis: trata-se da «Chronica do Sereníssimo Príncipe D. João», escrita por Damião de Goes, uma edição feita «na real oficina da Universidade», Coimbra, Anno de MDCCLXXXX (fotos n.º 9 e 10).

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Foto n.º 10 – Uma das páginas iniciais da obra a que no texto se faz referência.

O outro livro pertenceu ao Convento do Pereiro em Santarém, segundo uma nota manuscrita no topo da primeira página, tem por título «Ceremonial moderno da Província da Arrábida, segundo o rito Romano», composto pelo Padre Fr. João de S. José do Prado e oferecido a Sua Magestade Fidelíssima de Elrey D. José I; saiu da officina de Francisco da Silva, Lisboa, MDCCLlI (foto n.º 11).

Nessa troca de impressões entre o Sr. Duarte Silva e nós, ressaltou a força da tradição familiar a propósito de alguns pontos de vista do nosso escritor: o facto das cartas trocadas entre o tio e a sobrinha Aninhas não ser uma simples troca de correspondência ou mera simpatia, havendo por detrás disso alguma coisa de carácter sentimental; a família personalizava Aninhas como algumas das suas heroínas. É de salientar que, posteriormente à morte do escritor, Aninhas promoveu uma edição das suas obras que levaram impresso o nome de cada pessoa de família a quem foram oferecidos os vários volumes: Alberto; Rosa (mãe do Sr. Duarte Silva que ainda possui os referidos volumes, e cujo avô, Dr. António Zagallo Gomes Coelho, veio a ficar com a biblioteca do Autor, se formou ao mesmo tempo que ele e era seu primo direito); Laura; Beatriz; Eduardo; Matilde. Por outro lado, o caso da conversa entre o filho (Júlio Dinis) e o pai (Dr. José Joaquim Gomes Coelho) que, vendo-o sempre a escrever, lhe dissera que, se ao menos escrevesse coisa de jeito como esse Júlio Dinis, autor das crónicas da aldeia, «As Pupilas», que saíram no «Jornal do Porto» em folhetins, em 1866, ainda valeria a pena todo esse esforço. Mal sabia ele que esse elogio era dirigido ao seu próprio filho.

Estes acontecimentos familiares, perpetuando-se entre as pessoas do mesmo sangue, passam a ter valor documental; nós sabemos que em todas as famílias há factos que se continuam de geração em geração, que existiram na realidade, mas que não podem ser confirmados pela tradição escrita; e estes estão nesse caso.

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Foto n.º 11 – Reprodução de uma das primeiras páginas do «Ceremonial» com a nota ao cimo a que nos referimos no contexto.

A nossa felicidade, contudo, não se limitou a este encontro, ocasionalmente aparecido e ligado à nossa vida profissional; tivemos a sorte também de encontrar um outro Amigo, verdadeiramente apaixonado pela cidade do Porto e por tudo quanto se possa ligar a ela; livreiro de profissão, amante da boa leitura, é conhecedor de Júlio Dinis de longa data, possuindo em sua mão citações e fotografias que pôs à nossa disposição para as utilizarmos à vontade; o Sr. João VilIares da Silva foi um destes homens raros que, com dificuldade, encontramos na vida; são as fotografias que vão neste trabalho, indicando as casas e a fonte de Ovar, o Dr. José da Silveira, bem como o n.º 29 do «Boletim da Casa do Concelho de Ovar», de Junho de 1957, onde vêm dois artigos que defendem a reivindicação desta vila e as suas estreitas relações com a vida e a obra do escritor em causa. Além disso, proporcionou-nos também umas anotações para esclarecimento dessas fotografias que lhe foram enviadas da Beira pelo Sr. Manuel Rodrigues de Pinho, em Abril de 1964, e que reproduziremos em nota.

Tudo isto patenteia o mundo lusíada tão espalhado no globo mas sempre interessado nos problemas de raiz profundamente nacionais; é o forte amplexo rácico que nos faz vibrar a alma nas recordações das nossas coisas, das nossas gentes, e das nossas terras. Descobrir Júlio Dinis em Nampula, a tantos anos da sua / 19 / morte e a tão longa distância no espaço, foi para nós motivo de reflexão deliciosa e algo de surpreendente e singular.

A 12 de Setembro de 1971, celebrar-se-á o centenário da morte do grande escritor, do médico das almas, como lhe chamou Albino Forjaz Sampaio; estas nossas considerações foram pensadas e escritas com um ano de antecedência dessa celebração; que elas constituam uma pequena contribuição, para que o autor da suavidade e da vida pacífica na Literatura Portuguesa, continue a ser conhecido entre as novas gerações como de facto merece, através de todos os recantos de Portugal espalhados pelo mundo.

Nampula, 13 de Junho de 1970.

 

TRANSCRIÇÃO DAS ANOTAÇÕES ÀS FOTOGRAFIAS

DE MANUEL RODRIGUES DE PINHO

 

JÚLIO DINIS EM OVAR

FOTOGRAFIAS

N.º 3 – Casa em Ovar – Largo dos Campos – onde Júlio Dinis viveu durante alguns meses, nela começando a escrever as «Pupilas», nos meses de Julho e Agosto de 1863. Da parte de dentro da janela que se vê à direita (sem vidros) teve Júlio Dinis ocasião de ouvir sua prima «puxar pela língua» a uma beata que todos os dias ali passava da Capela dos Campos que fica no extremo do Largo para onde faz frente a casa.

Esta beata aparece-nos nas «Pupilas» e na «Morgadinha».

Sobre esta casa escreveu Antero de Figueiredo em «Os Serões»: «Oh! Casa amiga e insinuante que tiveste a caridade da ilusão para com um meigo doente, e estimulaste um espírito abatido a criar livros que a tantas almas levou o deleite subtil duma arte amena!»

N.º 4 – Antiga recebedoria de Ovar, para onde Júlio Dinis ia passar as noites, conversando com as pessoas que mais tarde havia de imortalizar sob os nomes de Margarida, Clara, Reitor e Daniel (que outro não seria senão ele próprio).

A esta casa se refere o escrito numa carta publicada nos «Inéditos e Esparsos», dizendo: «...ou a conversar no escriptório do recebedor de décimas, grande original que vim encontrar aqui, um verdadeiro typo de romance. Chama-se o Sr. Thomé Simões».

À janela da casa vêem-se a filha da que foi a «Margarida das Pupilas» e uma neta (esta vestida de preto).

N.º 5 – A casa onde vivia o Dr. João Semana, das «Pupilas», e que era o médico João José da Silveira, que Júlio Dinis retratou fielmente, no dizer dos que com ele conviveram.

Esta fotografia foi tirada em 1944, e à janela ainda se vê uma das filhas do Dr. Silveira.

Esta casa, que ficava no Largo do Calvário, foi demolida há uns três ou quatro anos, para no seu lugar se construir um edifício novo (6).

N.º 6 – A Fonte do Casal, reconstruída. Actualmente chama-se Fonte Júlio Dinis, porque o escritor, algumas vezes sentado na ponte que lhe fica junta, tomava apontamentos, escrevia ou prestava atenção às lavadeiras.

Os azulejos da Fonte representam cenas das «Pupilas do Senhor Reitor.

Esta fonte (então em estado primitivo) é aquela junto da qual se desenrola o capítulo XXXII das «Pupilas».

N.º 7 – O Dr. João José da Silveira, o verdadeiro João Semana. 

_____________________________________

(1) – «As Pupilas do Senhor Reitor», Lello & Irmão. Porto. 1968, pp. 175-176.

(2) – «As Janeiras», «As Pastoras» e «Os Reis» – in «Aveiro e o seu distrito, n.º 2 e 3, 1967, pp. 59-65 e 29-44. Cf. «Aspectos de folclore em Júlio Dinis», in «Jornal da Bairrada, n.º 274.

(3) – «Boletim Cultural da Câmara da cidade do Porto», Vol. II, pp. 393-562, Porto, 1939.

(4) – «Aspectos do folclore em Júlio Dinis», in «Jornal da Bairrada», n.º 274.

(5) – «As Janeiras, as Pastoras e os Reis», in «Aveiro e o seu distrito», publicação semestral da Junta Distrital de Aveiro, n.º 2 e 3, 1967, págs. 59-65 e 29-44.

(6) – Devemos ter em conta o ano em que o Sr. Manuel Rodrigues enviou estas notas e não o ano em que estamos actualmente.

 

páginas 7 a 16

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