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N.º 9

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1970 

O Castelo da Feira na História e na Tradição

(CONTOS E LENDAS)

Pelo Prof. Carlos Gomes dos Santos e Silva

 Paços dos Condes da Feira. Clicar para ampliar.
Paços dos Condes da Feira.

PRÓLOGO

Há seis décadas, na freguesia onde nasci, poucas eram as pessoas que não conheciam lendas relacionadas com os mouros do Castelo. Verifico agora o contrário: das novas gerações, raras são as que conhecem alguma coisa sobre essas lendas. Mesmo na Vila, onde, pela proximidade do Castelo, era natural que a memória delas se conservasse mais viva, dá-se o mesmo fenómeno: é insignificante o número de pessoas que delas têm algum conhecimento.

Da mente do povo já muitas lendas desapareceram e outras estão em vias de desaparecer, o que é pena, porque algumas são bastante interessantes e dignas de serem conhecidas.

Para que de todo não se perca a sua memória se faz a presente publicação, trabalho muito incompleto, mas que terá o merecimento de servir de estímulo e de dar uma pequena ajuda a outros escritores que, com conhecimento mais amplo e perfeito do lendário do nosso Castelo, venham a tratar deste assunto. Assim poderá um dia aparecer um trabalho completo, que muito enriquecerá o património cultural do nosso concelho.

 

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O CASTELO DA FEIRA

Breve resenha histórica

Fortaleza militar, cuja primeira construção se perde na nebulosidade dos tempos, ergue-se altiva e imponente no cimo de um outeiro de onde se abarca uma paisagem deslumbrante.

Quem a fundou?

A tradição oral e mesmo escrita diz que foram os mouros, mas é facto que não pode merecer contestação que, quando estes invasores chegaram ao local onde se / 42 / encontra o castelo, já lá existia um povoado. A comprová-lo, há três inscrições romanas ali encontradas, uma em 1912, outra em 1917 e a última em 1937.

Diz a primeira:

«Ao benevolo deus Tueraeus consagrou este monumento Arcio, filho de Epeico, bracare de nação».

E a segunda:

«Lucio Latrio Bleso cumpriu de boamente o voto que fizera a (o deus) Bandevelugus Toiraecus.»

A terceira está bastante mutilada, pelo que não é possível fazer a sua leitura.

Estes achados sugerem-nos, em primeiro lugar, a existência de um templo. Ora, para haver um templo, era preciso que o povoado tivesse certa importância. Em segundo lugar, a circunstância da localização deste povoado no cabeço de um outeiro, aliada à importância que forçosamente temos de atribuir à povoação, leva-nos a crer ter havido no local um castro ou castelo, erguido para defensão dos seus moradores. É, portanto, verosímil atribuir a fundação do castelo aos romanos e não aos mouros como refere a tradição. 

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Permaneceu a fortaleza na obscuridade durante muitos séculos.

A primeira referência verdadeiramente histórica foi registada pela Chronica Gothorum que diz: Era MLXXXIII.Xc calend. aprilis rex donnus Vermudo habuit victoriam de mauris, pugnavit cum eis, et cepit ibi regem eorum Cemia in Villa Cesari in territorio castelli S. Marie.

Esclarece-se que esta data está errada, pois Bermudo III faleceu em 1037. (Enciclopédia Luso Brasileira).

Daqui em diante, a existência do castelo acha-se bem documentada, como vamos ver.

Osberno, 1147, fala-nos dele: Est castrum quod dicitur Sanctae Marie interfluvium Doira.

D. Afonso Henriques furtou-o à mãe e com a ajuda da sua guarnição a combateu e venceu em S. Mamede.

D. Sancho I no seu testamento refere-se-Ihe: ...et Castello sancte marie, uxor mea, Regina Domna D., et filie mee ad tutionem corporum. et rerum suarum intrare voluerint recipiantur a Militibus...

D. Dinis doou-o à sua esposa rainha Santa Isabel. Em 1323, na sua revolta contra D. Dinis, seu pai, por causa do bastardo Afonso Sanches, D. Afonso, o futuro D. Afonso IV, dele se apoderou.

D. Pedro I fez dele menagem a Gonçalo Garcia de Figueiredo.

D. Fernando fez mercê das terras de Santa Maria ao conde de Barcelos, irmão da rainha D. Leonor Teles. Por morte de D. Fernando, este D. Afonso Tello apoderou-se do castelo, mas foi vencido por D. Gonçalo Coitinho que, num rasgo de heroísmo o conquistou para o serviço do Mestre de Avis. Mais tarde, já senhor da coroa de Portugal, D. João I fez mercê dele (não das terras que ele encabeçava) a João Rodrigues de Sá, mercê confirmada depois a seu filho Fernão de Sá por el-rei D. Duarte. Como D. João Afonso Tello se havia declarado por Castella, el-rei D. João I doou todas as terras que lhe pertenciam (as terras de Santa Maria) a Álvaro Pereira e na posse dos Pereiras elas se conservaram até à extinção da Casa da Feira e sua incorporação na Casa do Infantado. Temos assim, na altura da doação, o domínio do castelo separado do domínio das terras de Santa Maria. Ora a posse do castelo tinha mais de honorífica do que de proveitosa. Por isso a família dos Sás se foi desinteressando dele, deixando-o chegar a um estado de verdadeiro abandono. Valendo-se desta circunstância, Fernão Pereira, terceiro Senhor das terras de Santa Maria, representou a D. Afonso V no sentido de este monarca lhe fazer mercê do castelo, pois «à sua própria custa o queria correger, refazer e reparar de muros, paredes, casas e todas as outras coisas que fossem necessárias para sua fortaleza e defensão». Concedida a mercê que pedira, desobrigou-se do compromisso tomado, fazendo-lhe todas as obras necessárias.

Conservou-se o castelo na posse dos Pereiras até ao falecimento do oitavo conde D. Fernando, último do seu ramo por ter falecido sem sucessão. Por esta razão D. Pedro II integrou-o na Casa do Infantado. Revertendo posteriormente à coroa veio a ser incorporado com suas terras anexas, nos bens da Casa do Infantado, os quais, subsequentemente ao triunfo da monarquia liberal, foram vendidos em hasta pública (1837). Daqui em diante entrou em verdadeiro período de abandono. Mais tarde (1881) por efeito do relatório apresentado por Inácio de Vilhena Barbosa publicado no D.º do G.º n.º 62 daquele ano, foi classificado de monumento nacional.

Durante o período a que esteve votado ao abandono pelas autoridades, recebeu algumas benfeitorias de particulares que se interessaram pela sua conservação, evitando-se assim que se viesse a tornar num montão de ruínas.

Em 1909 foi criada uma «Comissão de Vigilância pela Guarda e Conservação do Castelo da Feira» que, como o título indica, se atribuiu a sua vigilância e conservação, o que tem feito até ao presente.

A Direcção-Geral dos Monumentos Nacionais em trabalhos prolongados de 1935 a 1938, restitui-o ao seu maravilhoso esplendor quatrocentista.

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A forma do Castelo não foi sempre aquela que actualmente nos apresenta. Passou por diversas reconstruções e em várias épocas que lhe modificaram a feição. / 43 /

«A grandiosa fábrica de linhas sóbrias e majestosas, não é já senão em parte mínima, aquele velhíssimo Castelo denominado de Santa Maria».

Algumas das reformas e reconstruções por que passou, facilmente se podem reconhecer ainda:

● nos vestígios romanos que ficaram na entrada da torre;

● nas paredes da torre de menagem, numa linha irregular de antigas ruínas diferenciadas pela alvenaria miúda em contraste com a cantaria grossa e aparelhada;

● nas antigas muralhas da torre, reforçadas com pedra grossa pela parte de dentro;

● nos restos de uma construção anterior ao século X ou XI, numa velha ameia ao Norte;

● e, finalmente, na grande reconstrução de Fernão Pereira.

A actual forma arquitectónica do Castelo deve remontar ao tempo de D. Afonso V.

 

PAÇO OU ALCAÇAR DOS CONDES

Quem visita o Castelo fica admirado de não encontrar quaisquer dependências que pudessem ter servido de moradia aos seus ilustres senhores – os Condes da Feira – e então faz-se esta pergunta: onde viveram?

Na vasta esplanada ou praça de armas do castelo tiveram eles o seu alcaçar. Hoje está tudo limpo, sem quaisquer vestígios que nos possam dar a conhecer a sua existência.

Abandonado pelos homens, o tempo o tomou à sua conta e o fez derruir. Fazia pena ver aqueles montões de pedra, cobertos de silvas a mostrar ao visitante o desleixo, o desinteresse das pessoas ou entidades responsáveis pela sua conservação.

Que contraste entre as suas pedras tombadas e a grandiosidade da torre de menagem. Mas, mesmo caídas, aquelas pedras tinham ali o seu lugar próprio. A arcaria, as varandas e portas ornamentais de granito, eram dignas de ser conservadas mesmo em ruínas.

Velhinhas de séculos, apesar de mortas, aquelas pedras davam vida ao ambiente porque eram páginas da história a falar ao visitante. Uma ideia em má hora germinada fez demolir em 1929 os restos do Paço dos Condes e transportou-os para a Vila onde os reergueu.

Foi um erro. Ainda se toleraria que, por falta de verba para a sua reconstrução, o alcaçar fosse removido para desobstrução da espionada, mas nunca para ser levantado noutro sítio. O dinheiro gasto no transporte de pedra e nas obras que foram feitas devia chegar para a sua reconstrução no próprio local, onde se poderia ter criado um belo museu.

Demais, aquelas pedras, fora do seu ambiente, nada poderiam dizer ao forasteiro que as contemplasse. Enfim, o sacrilégio foi tão grande, que até a própria Natureza, indignada com a passividade dos homens perante aquele atentado de lesa-história, se revoltou e, tão violentamente, que acabou por tudo destruir. (Ciclone de 15 de Fevereiro de 1921).

Que saibamos, por culpa dos homens, nada resta hoje do que foi o Alcaçar dos Condes da Feira.

 

O CASTELO NA LENDA – A SUA CONSTRUÇÃO

Quando eu era criança, gostava de ouvir às pessoas de idade as histórias que, a propósito do castelo, elas contavam dos mouros e das mouras encantadas. Por mais inverosímeis que fossem, os seus narradores imprimiam-lhes sempre um ar de verdade, verdade que talvez eles mesmos acreditassem. É baseado naquelas narrativas que fundamento o presente trabalho.

Sabe-se hoje que a primitiva fortaleza sobre que assenta o actual castelo não foi obra de mouros, mas todas as narrativas o dão como obra sua. Ouçamos a linguagem do povo a propósito da construção do castelo:

«Os mouros eram homens extraordinários portadores de uma grande civilização, valentes, decididos e trabalhadores, mas as mouras não lhes ficavam atrás nem no amor ao trabalho, nem na decisão, nem na sua valentia. Quando os homens iam para a guerra, elas substituíam-nos em todos os trabalhos. Como estas terras pela sua configuração não ofereciam grandes possibilidades de defesa e havia sempre o perigo de uma guerra, pois os cristãos estavam perto, resolveram construir uma grande fortaleza onde, em caso de ataque, se pudessem refugiar e defender. Os que aqui habitavam eram poucos e a obra a construir grande demais para eles. Um dia reuniram-se em conselho todos os mouros das redondezas para avaliarem das suas possibilidades sobre a construção. Verificaram então que os homens disponíveis eram insuficientes para a levarem a cabo e desistirem. Ao saberem desta resolução logo as mulheres acudiram, dizendo em tom firme: avante com a obra; nós ajudamos. E assim fizeram. Escolhido o local, traçada a planta no chão, deu-se começo à construção e era digno de ver-se o esforço e entusiasmo com que iniciaram os trabalhos. Falava-se de inimigos, era preciso andar depressa. Os homens encarregaram-se do levantamento das paredes e demais serviços e as mulheres do transporte dos materiais. Causava espanto e admiração como elas carregavam à cabeça e traziam enormes pedregulhos, enquanto, para não atrasarem os serviços domésticos, iam fiando o linho e a lã com que haviam de tecer as suas roupas. Da mesma forma transportaram também as madeiras. Com esta ajuda a obra crescia a olhos vistos e em pouco tempo ergueu-se a notável / 44 / fortaleza, tão solidamente construída que nem os homens nem o tempo jamais conseguiram vencer e destruir e ainda hoje a vemos ali a desafiar os séculos.

 

VER A SINA

Das várias lendas referentes aos mouros e ao castelo que a tradição popular trouxe até aos nossos dias, apenas temos conhecimento de uma que nos foi transmitida por escrito. É seu autor o P.e José de S. Pedro Quintella, Cónego secular de S. João Evangelista no Mosteiro da Feyra e Vigario da Parochia de S. Nicolau da mesma Vila.

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(Respostas dadas a um questionário pelo P.e José de S. Pedro Quintella, Conego Secular de S. João Evangelista no Mosteiro da Feyra).

Extracto do Grande Dicionário Geográfico de Portugal-manuscrito (Vol. XV, fls. 195 e segs.) que se guarda na Torre do Tombo – 1758.

«Em resposta a pergunta 22.ª e com referência a antiguidades: (A segunda é no dia 24 de Junho, no qual dia todos os homens que servem, e têm servido a República, montados a cavalo com a bandeira da Camara adeante e os Vereadores com as sua insignias, vão um ano à freguesia de S. João de Ver e nesta Igreja se canta uma missa e outro à freguesia de S. João da Madeira, do mesmo modo. Chama-se nesta terra a esta função «Ver a Sina». Não sabemos a sua origem e a notícia que temos referiremos no compendio das coisas menos verosímeis»).

Notícia apêndice das Coisas menos Verosímeis.

– A tomada do Castello aos mouros, só anda nas tradições do vulgo, o qual assevera que o primeiro Conde da Feyra, intentando conseguir a terra, a posse do Castello, e do título por indústria, prendera o cão que era fiel guarda de todo elle, a qual falta foi muito sentida de seus senhores, e que tendo-o uns poucos de dias sem comer, ajustou o dia do assalto para a manhã do dia vinte e quatro de junho, dia festivo por ser do Baptista e que levando o cão atado e faminto, enquanto a sentinela da Porta chamada da Traição, por isto mesmo se detivesse em o festejo do achado cão e sua fiel companhia; podiam entrar repentinamente e assenhorearem-se do Castello, como fizeram e por esta causa se diz que ficara a obrigação de irem todos os anos os homens que têem servido e servem a República, a S. João da Madeira, ou a S. João de Ver da sorte que dissemos acima; e por esta razão lhe chamaram a «Sina».

Ao lermos a notícia de que o primeiro Conde da Feyra intentara «conseguir a terra e a posse do Castello» o nosso pensamento vai imediatamente para o primeiro conde da Feira, da estirpe dos Pereiras (1452). Se assim fosse, esta lenda seria absurda, pois, nesta data havia mais de dois séculos que os mouros tinham sido expulsos de Portugal. Mas não é a este conde que a lenda se refere como vamos ver.

Diz o Doutor Aguiar Cardoso na sua obra «O Brasão de Armas do Concelho da Feira»:

«D. Munio Viegas, também conhecido por Muninho Viegas, o Gascão, o célebre cavaleiro protagonista da tomada do Porto aos mouros, o principal heroi desses retumbantes sucessos que o escudo d'armas da Feira, como o antigo do Porto e doutros concelhos consagra, foi conde das terras de Santa Maria».

«Comes dominus Munnius Benegas, prolire Egeas Erotis. dominante in terra Sancta Maria» (most. de S. João de Ver. Escrip. de 10 de Junho de 1012) cit. pelo dr. Gonçalves Coelho na Memória Arqueológica «Notre Dâme de Vendôme et les armoires de Ia Ville de Porto», ed. de 1907-fls. 5. D. Garcia Moniz filho do anterior» Este morreu em hua batalha que deu aos mouros em terra de Santa Maria» Vide Catálogo dos Bispos do Porto de Dr. Rodrigo da Cunha, ed. primitivamente em 1623 e reeditado em 1742 – Parte I fls. 10 e 282.

D. Men Lucidio, notável senhor da Feira a quem se atribui, juntamente com os outros fidalgos, a reedificação da Feira por 990 com a denominação de Vila de Santa Maria – Pinho Leal ob. cit. vol. 3.v fls. 115. Atesta que foi Conde de Santa Maria o seguinte documento transcrito pelo Dr. G. Coelho (ob. cit. fls. 13).

In dios regnante serenissimus Alfonsus imperator obtinente comite Menendis prolex Lucitu Sancta Maria... Monast d'Anta – Festam do ano de 1037».

O Conde a que se refere a «Sina» deve ser aquele D. Munio Viegas ou seu filho D. Garcia Moniz, mas, por certo aquele.

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Durante largos anos os vereadores da Câmara da Feira foram a S. João da Madeira e a S. João de Ver assistir à missa que, em acto de Sina, ali se cantava. O cumprimento desta obrigação acha-se registado nas actas das sessões da Câmara Municipal da Feira, em alguns livros da escrita do Tesoureiro e em registos de mandados de pagamentos e da conta corrente com a tesouraria. Segundo o que nestes livros ficou registado, ainda nos anos de 1840, 1842, 1844, 1848, 1850, 1852, 1858, 1862, 1864, 1870, a Câmara incorporada com as pessoas da governança foi a S. João de Ver tomar parte na Missa da Sina. / 45 /

 

A SUA TOMADA PELOS CRISTÃOS

Ben Iussef era o governador do Castelo. Entre ele e Cale, terra em poder dos cristãos, havia uma espécie de terra de ninguém (ermanato) que separava as duas comunidades.

A fama de que em Cale um rico homem tinha uma filha dotada de grande beleza e ainda maior bondade, que todos os dias distribuía aos necessitados que a procurassem junto a uma pequena ermida consagrada a Santa Maria, tinha chegado ao Castelo. Ben lussef levado pela curiosidade, quis certificar-se do que poderia haver de verdade nas informações que recebia dos seus espias. Vestido de pedinte, aproximou-se de Lia (assim se chamava a filha do rico homem) e esmolar um bocado de pão. A beleza da donzela logo o fascinou e ele passou a ser um dos seus pobres mais assíduos, não obstante uma imposição que ela fazia aos seus protegidos: logo após a refeição, todos tinham de entrar na ermida para dar graças a Deus. Ben lussef não sabia orar mas logo tomou o compromisso de aprender a rezar com a donzela. Depois de ter aprendido era ele que aos olhos de Lia rezava com mais fervor. Durante muito tempo recebeu das mãos da sua benfeitora substanciosa refeição e na ermida fez as suas orações. Com esta prolongada convivência nasceu no moiro uma grande paixão que já não podia reprimir por mais tempo. Então, um maldoso pensamento lhe tomou conta do cérebro: Lia havia de ser sua.

Mas como, se ele lia no Alcorão e ela nos Evangelhos de Cristo?

Falar-lhe de sua paixão? Seria deitar tudo a perder, podia até ser o fim das tréguas em que há muito viviam mouros e cristãos. Mas ele não era homem para recuar diante de uma dificuldade ou desistir de qualquer empreendimento que houvesse projectado. Num momento a sua imaginação fértil em estratagemas, tinha-lhe mostrado como seria possível conduzir Lia ao Castelo sem correr grandes riscos, nem perturbar as suas relações com os cristãos. Entre Cale e o lugar que hoje chamamos Areinho, completamente despovoado naquele tempo, havia um denso bosque que lhe facilitaria os seus planos de rapto.

Depois de bem estudado o local e demarcado um trilho através da floresta que lhe dava saída para o ermanato, mandou por um seu súbdito, disfarçado de cristão, e que bem conhecia a sua língua, construir nos estaleiros de Cale um barco que pudesse transportar três cavalos com os seus cavaleiros. Este barco, depois de construído, foi levado para o referido local do Areinho e ali ficou a aguardar as ordens de lussef. Entretanto o moiro mandou aparelhar seis cavaleiros a quem deu as seguintes instruções: ao fim da tarde, Lia será surpreendida na ermida e, num golpe rápido, amordaçada e de olhos vendados, posta sobre um dos cavalos e logo encaminhada na direcção do barco.

Antes, porém, a meio da floresta, sair-Ihe-ão ao encontro os outros três cavaleiros que, para o efeito, ficarão emboscados e tomarão conta dela, internando-se imediatamente na espessura do arvoredo.

Entretanto os primeiros, agora vagarosamente para que possam ser vistos e seguidos pela multidão que, é de esperar, acorrerá, se aproximarão do barco, nele se embarcando em direcção à outra margem, para despistar, levando com eles um vulto que, visto à distância, dê a ideia de ser Lia.

Enquanto a multidão ficará a vociferar contra os do barco, Lia pelos caminhos previamente estudados, será conduzida ao castelo.

Acalmado o tumulto, os do barco, depois de o terem abandonado à corrente que o levará para o mar, regressarão à fortaleza.

Assim foi feito e tudo correu conforme o imaginado.

Quando tiraram a mordaça e a venda a Lia, já ela estava no castelo na presença de lussef – aquele pobre a quem ela às sextas-feiras dava de comer. Ao ver-se prisioneira no castelo à mercê daquele pedinte, agora mudado em poderoso mouro, mal teve tempo de implorar a protecção da Virgem Santa Maria da Sua ermida. Uma forte convulsão a sacudiu e caiu inanimada. Grande foi a aflição de lussef que logo chamou os seus físicos a reanimá-Ia. Quando voltou a si, interpelou violentamente o mouro:

– Vilão, como te atreveste a cometer tal infâmia, sabendo que eu era cristã e que por isso nem com promessas, nem com ameaças, nem com sevícias consentiria que te aproximasses de mim?

De mim nunca nada alcançarás. E, para que morram em ti tão depressa as tuas esperanças como em mim morreu a liberdade, com o fim da minha vida, tudo se acabará para ti neste momento.

Dizendo isto, num repelão, lançou-se contra Iussef e, arrancando-lhe do cinto a adaga, com ela se feriu profundamente no peito, caindo inanimada a jorrar sangue. Tudo isto foi tão rápido que ninguém pode impedir este tresloucado gesto de Lia.

Durante muito tempo inconsciente, esteve entre a vida e a morte: mas os cuidados, desvelos e atenções que lussef lhe prodigalizou e, sobretudo o respeito com que por ele foi tratada, salvaram-lhe a vida e restituíram-lhe a saúde. Lia assim tratada, já não olhava o mouro com ar agastado, já não o repelia. Confiante nas promessas que ele lhe fizera, pedia-lhe que estivesse junto de si para a ajudar a rezar. Logo que pôde, mandou um mensageiro a seu pai, contando-lhe o que se havia passado, mas que se achava bem e que dentro em pouco estaria com ele. De facto, poucos dias depois Ben lussef / 46 / fez conduzir lia a casa de seu pai, onde disfarçadamente passou a visitá-Ia.

Lia, durante a sua permanência no castelo, tinha-se mostrado tão firme na sua crença, tão confiante na protecção da Virgem da sua ermida, e rezava com tal fervor que Ben lussef, perante aquela fé viva, sentiu-se tão abalado que acabou por abjurar o Alcorão e abraçou o cristianismo. Feito cristão por amor de Lia debaixo do maior segredo, pediu a sua amada em casamento. Realizado este também secretamente, Lia voltou ao castelo.

A sua beleza, a sua dignidade, a sua bondade nata, conquistaram a guarnição e ela soube aproveitar-se desta circunstância para, embora muito veladamente, ir introduzindo ali a semente do Evangelho. A paz entre cristãos e mouros era completa e Lia sentia-se feliz. O tempo ia decorrendo sem que nada empanasse aquela felicidade, mas para que mais uma vez se constatasse a veracidade do acerto que diz «não há bem que sempre dure» um ambicioso irmão do governador, de nome Ben Alígula, invejoso daquela felicidade, e, sobretudo, cobiçoso do mando, tendo suspeitado que Lia continuava a ser cristã e procurava introduzir ali aquela doutrina com conhecimento de lussef, correu a Córdova, de cujo Califado o castelo dependia, onde fez a denúncia e obteve a sentença de morte, ficando ele governador. Regressado ao castelo, ordenou a prisão de lussef e de Lia, mas deu-se um caso extraordinário: ninguém cumpriu as suas ordens. Então Ben Alígula, desesperado e temeroso de que a guarnição o assassinasse para que seu irmão continuasse governador do castelo, apunhalou-o cobardemente. Houve tumultos e um princípio de revolta, mas Lia conseguiu acalmar os espíritos e levar os soldados a obedecer, dizendo-lhes que o poder vem aos homens por vontade de Deus, pelo que se deviam submeter às ordens do Kalifa de Córdova e, portanto, obedecer ao novo governador. Ben Alígula, vendo-se obedecido, deu cumprimento à sentença que condenava também Lia à morte. Porém, com receio de que a sua execução no castelo pudesse provocar novas desordens e até uma revolta, entregou-a secretamente a um pelotão executor a quem deu as seguintes instruções:

– Levai-a até Corujeiras (Corujeiras é um dos montes vizinhos do castelo, situado a norte, em terras de S. João de Ver) e naquele cabeço, cujo daqui vejo, abri-lhe as veias e recolhei o seu sangue neste vaso e trazei-o para eu dar aos meus perros. Depois despi-a, queimai-a e lançai as suas cinzas ao vento. Que dessa serpente venenosa que aqui entrou não fiquem vestígios. Tudo isto, de olhos vendados, ouviu Lia.

Encomendando a sua alma a Deus e pedindo protecção à Virgem Santa Maria, sem um protesto, sem um queixume, deixou-se conduzir ao lugar do suplício.

Depois de uma boa caminhada, num sítio ermo que não podia ser visto do castelo, os soldados fizeram paragem e um deles dirigiu-se a Lia:

– Irmã, não vos assusteis, não é aqui o lugar do suplício. Eu vou tirar-vos a venda, mas é por bem. (Lia tinha ensinado a muitos soldados que todos eram irmãos em Cristo e era assim que na intimidade se tratavam).

– Ah! És tu Jineff? Como o destino é cruel. Serás então tu um dos meus carrascos? Tu em quem eu depositava toda a minha confiança? Meu Deus, terei de sofrer esta afronta antes de morrer? Deus meu, fazei com que eu possa perdoar aos meus carrascos, principalmente a este.

E aquela infeliz desatou num choro convulsivo que a todos consternou.

– Senhora, minha boa irmã, calmai-vos. A Virgem entregou-vos nas minhas mãos para vos salvar de morte tão ignominiosa. Aqui tendes estas vestes de homem, este bordão e esta sacola. Assim disfarçada de pedinte podereis alcançar a casa de vosso pai.

– Perdoa-me, Jineff, por ter duvidado de ti, mas não posso aceitar o teu oferecimento. Não devo salvar a minha vida à custa da vossa. Não tendes vós de apresentar o meu sangue a Alígula?

– Tranquilizai-vos, irmã. Nós daremos o nosso sangue por vós. Só vos pedimos que nos ajudeis porque sabeis tratar melhor das feridas do que nós.

Lia, depois de muito protestar, porque não queria que eles arriscassem a sua vida por amor dela, tendo-se convencido de que podia salvar-se sem que os soldados corressem perigo, acabou por se submeter à sua vontade. Com um estilete que Jineff havia levado, abriu-lhes as veias que após a recolha do sangue, ia laqueando com segurança. Feito isto, Lia, depois de uma triste e emocionante despedida, pôs-se a caminho de Cale e os soldados dirigiram-se ao cabeço onde derrubaram algumas árvores e fizeram uma grande fogueira que se avistava do Castelo. À noite, Jineff apresentou-se a Alígula:

– Missão cumprida aqui testemunhada com as suas vestes e o seu sangue.

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Lia em casa de seu pai tinha interiores assomos de revolta e, insensivelmente, deixava-se arrebatar por um mesquinho espírito de vingança mas, caindo em si, logo sentia grande angústia por se conhecer dominada pelo ódio, pelo desejo de vindicta.

– Vingança! Palavra terrível, sentimento indigno de uma alma cristã.

Vingança! Arreda, tentação má. A minha alma não será manchada com tão odiento pecado.

Vingar-me? Pagar o mal com o mal? Não, nunca. Mas deixar-me-ei ficar indiferente perante tão horrendo crime? Também não. / 47 /

Com estes pensamentos desencontrados, dirigiu-se à ermida e, prostrada diante da imagem da Senhora Santa Maria exclamou:

– Senhora, iluminai o meu espírito, ensinai-me o que devo fazer nesta conjuntura tão dolorosa.

Depois de uma longa meditação, exclamou, cheia de alegria:

– Obrigada, Senhora, pela luz que trouxeste ao meu espírito.

Aquela luz, aquele cicio divino, num relance, tinha-lhe ensinado como se poderia vingar sem ódio, sem rancor, ou mais exactamente, como se poderia vingar sem vingança.

Aproximou-se de um espelho e contemplou-se por instantes. Era ainda bela, de uma beleza que se poderia classificar de fascinante.

– Senhora – exclamou – dai-me coragem para eu transformar esta beleza em fealdade.

Em cima de uma mesa colocou um bisturi, uma agulha, linhas pensos e bálsamo. Com o bisturi rasgou a face, golpeou as pálpebras e abriu os cantos da boca. Depois coseu as carnes e colocou pensos com bálsamo sobre as feridas. Quando, passados tempos, tirou os pensos e se viu ao espelho, não se achou feia, achou-se horrível, impossível de ser reconhecida fosse por quem fosse. Porém, em vez de ficar triste, aquela fealdade entusiasmou-a. Já podia agora pôr em prática o seu plano de vingança sem ódio, sem rancor, sem vingança.

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Da antiga estrada romana de Olissipo a Brácara Augusta, que passava próxima da povoação que hoje chamamos Albergaria da freguesia de S. João de Ver, partia um atalho que ia dar a umas nascentes que, correndo para Oeste iam abastecer uma pequena povoação existente onde hoje é a Vila, sede do concelho. Uma das fontes, pela pureza da sua água, tinha fama de miraculosa e a ela recorriam não só as pessoas das proximidades, como outras vindas de muito longe. Ali permanecia uma pobre mulher a esmolar que ensinava o caminho da fonte miraculosa. Pois Lia iria substituir a pedinte e uma vez ali fácil lhe seria pôr em prática o projecto que havia imaginado. E assim fez. Lia era agora a velha da água. Jineff vinha vê-Ia muitas vezes e passavam horas em confidência.

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No castelo existiam vias secretas e do seu conhecimento havia participado Lia por intermédio de Ben lussef. Para poder levar a cabo o imaginado projecto, informou Jineff minuciosamente de todas elas, bem como dos perigos que correria qualquer intruso se um dia viesse a penetrar no seu interior.

Há memória de três vias: a Grande Via que, saindo do castelo, se dirigia para o rio Caster, utilizada para levar os cavalos a beber, podendo também servir para dar escápula à guarnição em caso de aperto. A outra dirigia-se para o Norte e passava por baixo da Praça Velha, indo terminar numa grande caverna que servia de cofre, onde os mouros guardavam o produto dos seus saques (A praça velha é o largo que fica em frente à Câmara Municipal). Havia ainda uma terceira de uso e conhecimento exclusivo do governador que comunicava com a sua alcova.

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Quando ficou familiarizado com todos os esconderijos e senhor de todos os seus segredos, Jineff ia começar a agir conforme as instruções dadas por Lia. Principiou por espalhar certos boatos que trouxeram o desassossego ao castelo. Durante a noite passavam-se também coisas extraordinárias: ouviam-se ruídos, cuja origem se desconhecia, e vozes estranhas, acompanhadas de gritos indistintos no terreiro e o uivar lúgubre dos cães. Estes sucessos traziam aterrorizada a guarnição. Na alcova de Alígula factos não menos estranhos se passavam: os móveis dançavam e embatiam uns nos outros; vozes medonhas, entrecortadas por ais misteriosos, faziam-se ouvir através das paredes. Ele andava assustado, mas com receio de que se rissem do seu medo, ocultava todos estes acontecimentos; mas a repetição contínua destas ocorrências levou-o a consultar os seus astrólogos, que, apesar da sua boa vontade, nada lhe souberam dizer de positivo. Entretanto, tinha chegado ao castelo a fama extraordinária da Velha da água que lia nas estrelas o passado e o futuro com uma segurança e exactidão nunca até então sabido dos mais famosos adivinhos. Jineff contava maravilhas da Velha e insistia com Alígula para que a consultasse, ao que ele sempre se negava, querendo assim mostrar que nada o atemorizava. Mas sucedeu que os acontecimentos extraordinários que se davam na sua alcova iam aumentando de violência e certa noite teve de lutar com um espírito que lhe pareceu de carne e osso e lhe deixou sinais bem vincados no rosto. Não podendo esconder por mais tempo a sua inquietação e, para que não dizê-lo, o seu medo, foi procurar a Velha.

– Até mim chegou a fama da tua virtude e do teu saber. Recorro a ti para que me reveles o passado e predigas o futuro.

Ben Alígula, os meus anos e os meus estudos deram-me muito saber e a minha experiência e o conhecimento / 48 / que tenho das coisas e dos homem abriram-me as portas do ignoto, mas isto não é o suficiente para que eu de momento possa conhecer o teu passado e desvendar o teu futuro. Tenho de estudar os astros, tenho de conhecer as suas reacções, mas antes preciso que me digas quais são as tuas inquietações para nesse sentido interrogar as estrelas. Dize-me claramente: que pretendes de mim?

– Quero saber o que é que me traz em sobressalto. Necessito que me digas se os cristãos preparam secretamente a invasão dos meus domínios e com que poder e para quando. Porém, antes de saber o porvir, desejo saber o passado, pois entendo que é mais fácil saber o que se passou do que o que está para se passar. Com o acerto com que me revelares o pretérito, julgarei do que poderás saber do futuro. De todos os factos extraordinários que se passam no castelo quero que me dês a razão.

– Voltai daqui a oito dias e de tudo sereis informado.

– Voltarei, mas já te previno de que, se não acertares com o que me há sucedido no passado, aqui mesmo serás enforcada para que a mais ninguém enganes com os teus embustes.

– Vai-te que não terás esse cuidado.

Neste tempo de espera, Lia teve vários encontros com Jineff. Ouçamos agora a conversa da velha com o mouro.

– Ben Alígula, no teu horóscopo, há manchas e sombras a denunciar que o teu passado não está limpo. Muitos foram os teus crimes e as tuas mãos estão manchadas de sangue inocente. Sem qualquer motivo válido, mas por simples ambição de mando, assassinaste o teu irmão. Com tal crime a pesar-te na consciência, como não hás-de ouvir as vozes do teu remorso? O espírito do inocente adeja à tua volta e jamais te verás livre dele enquanto habitares o castelo.

Os teus perros uivam? É o sangue de Lia que tu lhes deste a beber e lhes queima as veias. Por isso eles, como tu, não podem ter sossego. E, se não mudares o curso dos acontecimentos que estão para se dar, eles beberão o teu próprio sangue. Esses acontecimentos começaram já a manifestar-se. Ontem pairou uma sombra, um espírito na tua alcova. Esse espírito deixou a sua marca na tua face. Eu distingo-a. Mas já uns dias antes...

– Cala-te. Do passado não desejo saber mais nada...

– Então passemos ao porvir. O teu horóscopo no caminho do futuro também não te é favorável. O sangue dos inocentes pede vingança e a hora do ajuste de contas aproxima-se. Os cristãos preparam activamente a invasão dos teus domínios e todo o teu poder será impotente para os deter. Sofrerás tremenda derrota e verás os teus homens passados a fio de espada e muitos deles comidos pelos lobos e ursos que virão no seu exército. Serás feito prisioneiro e o pai de Lia far-te-á enforcar na ameia onde estiveste a ver a fogueira que lhe queimou a filha.

– Como te atreves a dizer-me isso? Prisioneiro eu? Pois alguém poderá transpor as portas da maior fortaleza dependente do Kalifado de Córdova?

Quem será pendurado nas ameias do castelo és tu, velha idiota, que julgas amedrontar-me com as tuas disparatadas profecias.

– Detém-te lá, Alígula. Podes dispor da minha vida como dispuseste da de teu irmão e de Lia. Quiseste ouvir-me e eu dispus-me a falar-te, mas só para dizer-te a verdade. Muitos trabalhos passei em noites de vigília para ler nos astros o teu futuro e o que averiguei não deixarei de to comunicar. Depois ficarei ao teu dispor; poderás então levar-me contigo e, se te aprover, pendurares-me na ameia do teu castelo. Estou velha, a vida para mim já não tem encantos, mas só pesares e tristezas. Não me oporei aos teus desígnios. Ouve, pois o resto. A comunicação mais importante que tenho a fazer-te é esta: As portas da tua fortaleza não serão forçadas pelos teus inimigos, elas ser-Ihe-ão abertas de par em par pelos teus homens. Dentro do castelo há traidores que por bem pouco se comprometeram a vender-te aos teus inimigos. E agora, para te esclarecer melhor sobre o futuro, tenho de voltar ao passado. Lia vivia feliz com teu irmão, mas ele era um estorvo às tuas ambições. Para ascenderes ao Kalifado forçoso era que ele desaparecesse e, com ele, Lia. Com as intrigas e falsidades que levaste a Córdova, foi-te dado o poder no castelo. Mas como podias tomar conta do mando se toda a guarnição te era hostil? Em vão procuraste peitar alguns homens para prenderes lussef, mas, como o não conseguiste e a tua ambição não tinha limites, antes que uma embaixada fosse mandada a Córdova, onde esclarecidos os factos, o prisioneiro serias tu, manchaste as tuas mãos no sangue do teu irmão. O remorso que logo após tão nefando crime se apoderou de ti e te encheu de pavor tirou-te a coragem para embeberes o punhal no coração de Lia. Então entregaste-a a um pelotão que a conduziu a Corujeiras e, depois de lhe haver tirado o sangue para os teus perros, a queimou. Um dos assassinos de Lia, roído pelo remorso, apresentou-se há tempos a seu pai e tudo lhe referiu. Podes imaginar a cólera daquele homem que jurou não mais ter descanso enquanto não reduzisse a fortaleza a um montão de ruínas e os seus moradores a cinzas. Neste momento emissários seus percorrem toda a cristandade a levantar tropas contra o tirano assassino de sua filha. Este exército movido pelo desejo de vingança, levará tudo a ferro e fogo.

Ao seu ímpeto destruidor, nada resistirá. No dia do ajuste de contas os teus te trairão e serás entregue aos / 49 / teus inimigos. A tua sentença já está lavrada: serás pendurado na ameia em que estiveste a ver a fogueira que queimou Lia. Mas tu, na fuga, poderás ainda salvar-te e salvar os teus. O coração dos cristãos não é dado a vingança. O pai de Lia contentar-se-á em queimar a fortaleza e não passará adiante. Acolhe-te a Coimbra e lá, se te contentares em ser subalterno, poderás acabar em paz os teus dias, se é que pode ter paz um coração assassino. E agora, para que saibas que, quanto te tenho dito é verdadeiro, vou dar-te um testemunho e assim terás por certo o que agora te parece duvidoso. Amanhã, quando acordares, encontrarás junto de ti o sinal da verdade – a imagem daquele que deu a vida pelos homens. Quando te recolheres à alcova examina minuciosamente tudo quanto lá existe para teres a certeza de que ela não está lá nem lá poderá entrar se fechares com segurança todas as portas e postigos. O aparecimento da cruz durante a noite é o sinal da verdade, o testemunho do que te afirmei.

– Vai-te preparando, velha feiticeira, para deixares esta vida. Eu tomarei tais cautelas que na minha alcova nada poderá entrar sem o meu consentimento. Fica sabendo que não é possível aparecer ali qualquer sinal e o não aparecimento desse testemunho de que me falas importa a tua sentença de morte. Serás queimada por bruxa malfazeja.

– Mas eu volto a afirmar-te que Ele, o Cristo de Misericórdia, de manhã estará na tua alcova. E, diante da sua presença ainda duvidarás da Velha?

– Ora tu a querer levar-me a dar crédito ao impossível. És doida. E eu que cheguei a acreditar no teu saber.

Como foi possível eu não ter visto, pelas tuas excentricidades, que eras uma lunática? Mas uma lunática perigosa para os ignorantes, pois assim como parece que estás convencida de que falas verdade, queres, por força, levar as pessoas a acreditarem-te e isso pode causar grandes males. Não disseste ainda há pouco que, se eu quisesse salvar a vida, tinha de empreender a fuga para Coimbra? Se eu te acreditasse e fugisse, não poderia comprometer a segurança do Kalifado de Córdova?

Não, velha insana, não poderei consentir que nos meus domínios continues a atemorizar as pessoas com as tuas disparatadas profecias. De manhã mandar-te-ei buscar e à tarde serás queimada na Praça de armas do castelo. Deixo-te em paz durante a noite para que peças perdão dos teus desvarios a Allah.

– E se o sinal aparecer, Ben Alígula? E se os teus olhos fixarem o Redentor dos cristãos, ainda me mandas queimar? À fé da minha alma, mais uma vez te juro: O Crucificado de manhã será contigo para que saibas que Deus está com os cristãos e que Allah te abandonou por causa dos teus crimes.

Retirou-se Ben Alígula aturdido pelo tom de sinceridade e de verdade que a Velha imprimia às suas palavras. Não queria dar crédito ao que ouvia, mas uma dúvida o atormentava: não tinha ela falado verdade em tudo quanto lhe havia dito sobre o passado? Mas consolava-se procurando convencer-se de que na sua alcova, desde que trancasse bem as portas e postigos, nada ali podia penetrar.

Chegado ao castelo, encaminhou-se logo para o quarto, onde passou uma minuciosa busca. Ali tudo foi mexido e remexido, não fosse alguém conluiado com a Velha (não tinha ela dito que dentro do castelo havia traidores?) ter lá introduzido o Cristo. Tudo examinado, os móveis tirados e novamente postos nos seus lugares, portas e trancas experimentadas, nada foi encontrado que desse causa à mais pequena suspeita.

– À fé da minha alma, juro-te que o crucificado de manhã será contigo.

Esta afirmação da velha feita em tom tão convincente transtornava-o. Se ela não tivesse lido isto nos astros, atrever-se-ia a garanti-lo, sabendo que esta afirmação em falso lhe custaria a vida?

E se o crucificado aparecesse? Ainda poderia duvidar do que tinha ouvido?

Ele tinha medo à cruz. Quando se lembrava da profecia da Velha, sentia-se horrorizado e fechava os olhos para não ver nada.

Mas não, as portas da sua alcova não podiam ser abertas por ninguém. Eram tão sólidas que resistiriam a todas as investidas, e, desde que não fossem abertas, como poderia o Cristo estar com ele de manhã?

Chegada a hora de se recolher, nova e minuciosa inspecção foi feita. Não ficou canto nem móvel que não fosse visto. Certo da segurança das portas e aldrabas, exclamou: Não te salvas do fogo, velha feiticeira. Os teus dias estão contados.

Encheu a lucerna de azeite para que pudesse arder toda a noite e deitou-se.

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– Jineff, untaste bem os gonzos da porta falsa?

– Sim, minha irmã.

– Tens a cana preparada?

– Tenho, irmã.

– Como está arranjado o buraco?

– Tapado com cera da cor da mesma pedra. Não é visível.

– Bem, actua com toda a prudência. Do bom resultado desta empresa depende a minha vida e o teu futuro. / 50 /

– Não tenhais cuidado, irmã. Estou certo de que me hei-de sair bem.

Santa Maria velará por nós.

Altas horas da noite, levando numa mão uma comprida cana furada em toda a sua extensão e na outra o crucificado, Jineff penetrou numa extensa galeria que ia dar à alcova de Ben Alígula e cuja existência ele ignorava. Às apalpadelas subiu o último degrau, tirou um bocado de cera que tapava um pequeno orifício e espreitou. Alígula parecia dormir. A lucerna estava ao alcance da cana. Esperou mais algum tempo até ter a certeza de que ele efectivamente dormia. Depois meteu a cana pelo buraco e soprou, fazendo desaparecer a luz. Arredou então uma pesada pedra que girava nuns gonzos e penetrou na alcova onde introduziu o crucificado, colocando-o sobre um banco a olhar de frente para o mouro. Sem qualquer ruído, puxou a pedra e pô-Ia novamente no seu lugar, retirando-se em seguida. Quando Ben Alígula acordou e se viu às escuras, ficou cheio de medo. Querendo saber a razão da falta de luz, levantou-se e procurou a lucerna para se certificar se se teria consumido todo o azeite, mas ao encontrá-Ia os dedos mergulharam no óleo e ele conheceu que o motivo daquela escuridão era outro. Não pode mais dormir e a sua imaginação mostrou-lhe coisas fantásticas. Na verdade, reconheceu que algo de extraordinário tinha acontecido. Ao raiar da manhã, ainda no meio de uma confusa escuridão, pareceu-lhe divisar uma figura estranha que o fitava... Mas não, não seria possível. No entanto, à medida que a claridade ia dando forma aos objectos, a sua confusão aumentava e o seu espanto perturbou-o de tal modo que se julgou enlouquecido. Para fugir àquela visão, agarrou num cobertor e atirou-o para cima do crucificado, furtando-se assim à visão que o esmagava.

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Entretanto, Lia tinha mandado emissários a juntar todos os rebanhos da cristandade com instruções para que se reunissem nas proximidades de Cale e ordenou que fossem compradas todas as velas que existissem no mercado, velas estas que seriam, na ocasião própria, amarradas aos chifres dos caprinos e ovinos. A estes rebanhos, conduzidos por alguns soldados, estava confiada a conquista do castelo. Eis o plano de ataque: ao atingir-se o monte de Corujeiras, acender-se-iam as velas e os rebanhos, espalhados por uma vasta área a dar impressão de um numerosíssimo exército, pôr-se-iam em movimento em direcção ao castelo. Os animais da frente iam cobertos com peles de lobos e ursos.

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No castelo, os mouros convertidos por Lia, conhecedores do que se passava, tinham ali estabelecido o pânico. Há dias que eram espalhadas notícias aterradoras. «Um exército com poderosas armas desconhecidas acompanhado por lobos e ursos amestrados não tardaria a atacar o castelo.»

Ben Alígula, perante tão tétricas notícias, abalado pelas profecias da Velha, a maior parte das quais já tinha visto realizadas, tomou as providências necessárias para, a confirmarem-se as notícias que recebia, ordenar a fuga para Coimbra. Mandou os seus espias até às proximidades de Cale a colher informações pormenorizadas de tudo quanto se passava. Esses espias, ao verem acampados na frente do exército, lobos e ursos, ficaram estarrecidos.

«É um exército estranho que reúne muitos lobos e ursos, conduzidos por numerosos soldados. Fazem-se ali os últimos preparativos para avançar sobre o castelo e cercá-lo. Vêm preparados para um longo cerco, pois trazem um rebanho que lhes dará alimento para mais de um ano. Se conseguirem forçar alguma das nossas portas e introduzirem aqui os carnívoros que trazem, todos seremos poucos para lhes matar a fome. Contra tal exército de nada valerá a valentia dos nossos soldados».

Ben Alígula, ao ouvir isto, sentiu-se derrotado. À sua memória, ocorreram-lhe as palavras da Velha: «As portas da tua fortaleza não serão forçadas pelos teus inimigos, ser-Ihes-ão abertas de par em par pelos teus soldados. Dentro do castelo há traidores que por bem pouco se comprometeram a vender-te.»

Então, por descargo de consciência, reuniu um conselho de guerra em que teve opinião predominante Jineff, sendo resolvido não aceitar a batalha e ordenar a retirada imediata para Coimbra.

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Ao anoitecer de um cálido dia de Agosto, com todas as velas acesas, pôs-se o exército em marcha, alongando-se num grande semicírculo. Ferros batidos, tambores, uivos, um grande alarido tornava aquele espectáculo medonho, sinistro... Antes do romper da manhã, sem qualquer oposição dos defensores do castelo, foi fechado o cerco à fortaleza e de manhã, ao romper do sol, dada ordem para forçar as suas portas, mas a esta hora já os mouros iam longe. Lia aguardava a chegada de Jineff para o investir nas funções de alcaide do castelo, mas aqui um grande desgosto a esperava: / 51 / ele não apareceu. As muitas devassas feitas nunca o deram ao serviço de Ben Alígula.

Com a tomada do castelo estava consumada a vingança de Lia e pela forma que o seu espírito verdadeiramente cristão admitia: vingança sem sangue, sem vítimas. Vingança sem rancor, sem ódio, vingança sem vingança.

Depois de em vão muito tempo ter esperado a vinda de Jineff, entregou a guarda do Castelo a uma pequena guarnição e retirou-se para casa de seu pai e na ermida agradeceu à Virgem a ajuda, o auxílio visível que ela lhe tinha dado para alcançar tão grande vitória sobre a moirama. Esta vitória foi atribuída a Santa Maria. Será por isto que a estas terras foi dado o nome de Terras de Santa Maria?

De Lia também alguma coisa nos ficou através dos séculos a perpetuar o seu nome. A água que abastece a povoação da Vila da Feira e tem a sua nascente no local onde ela passou algum tempo da sua vida a preparar a expulsão dos mouros tomou e conserva ainda hoje o seu nome: Água da Velha.

 

OS TESOUROS DO CASTELO À GUARDA DO DIABO

Na taberna da senhora Gertrudes, discutiam-se os acontecimentos.

Enchiam-se e esvaziavam-se sucessivos pichéis de vinho e havia grande animação.

– Quem havia de dizer que a mulher do governador não tinha sido queimada viva e era a Velha que organizou o ataque ao Castelo! Brava mulher! Se os mouros chegam a saber que foram logrados por ela, temo-los aí outra vez, e, para mais, diz-se que eles saíram tão apressadamente que nem tiveram tempo de levar as suas riquezas. Vai ser sorte para os soldados que guardam o Castelo.

– Pois sim, hão-de ser fartos. Ficou tudo encantado. Até as minas que lá havia, desapareceram sob o encantamento. Ainda se não descobriu coisa nenhuma.

– Mas que lá havia minas e grandes riquezas escondidas, havia. Assim disse o mouro.

– Que mouro?

– O mouro que desertou do exército de Ben Alígula. Conhecedor de todos os esconderijos, veio oferecer-se para ensinar onde estavam os tesouros, mas o alcaide, tomando-o por espião, com receio de que ele voltasse a Ben Alígula e lhe contasse como tinham sido logrados, mandou-o enforcar. Já com a corda ao pescoço, ainda pode dizer ao carrasco: vai à mina do rio que lá acharás o segredo dos tesouros do Castelo, mas, por mais que os soldados tenham procurado, ainda não encontraram mina nenhuma. Os mouros, antes de fugir, deixaram tudo tapado e tão bem disfarçado que não se vê sinal de nada.

– Mas a mina do rio existe, pois ainda pouco antes de eles terem fugido, os cavalos foram vistos a beber nele. Onde está localizada a sua boca é que nunca se soube, porque ninguém se atrevia a passar o rio com medo das sentinelas e também porque naquele sítio ele tinha sido alargado e muito aprofundado para arranjo do fosso que defendia o castelo por este lado.

– Não foi só para defesa do castelo que ele foi alargado, foi para esconder as minas, mas agora que os mouros se foram e não há sentinelas, hei-de ver como isso era. Tenho fé que encontrarei a mina e que as riquezas serão minhas.

O homem que assim falava era um mestre alfaiate que se arrogava prosápias de destemido e valente. Encontrar a mina e apoderar-se dos tesouros passou a ser nele a sua única preocupação.

Segundo os seus cálculos, a mina devia existir nas proximidades, onde os cavalos eram vistos a beber. Esse local ficava ao fundo da encosta do monte do Castelo. Como já não havia vigias mouras, podia ir junto do rio e pesquisar à sua vontade. E assim fez. Rio abaixo, rio acima, tudo foi minuciosamente examinado, mas apenas notou que entre uns carrascos havia um ponto escuro que não podia identificar. Seria a boca da mina? Bem queria ele ir examinar aquele ponto escuro, mas o rio não podia ser passado a vau e o seu reumatismo impedia-o de o passar a nado.

Alvoraçado com a descoberta, recolheu-se a casa a pensar na maneira de atingir o ponto que tanto o intrigava. A encosta do monte era escarpada e íngreme e nas proximidades do rio quase a prumo. Só com o auxílio de cordas poderia atingir o ponto escuro que avistara. Como não tinha cordas, com vimes fez umas amarras que levou consigo. Madrugada ainda alta dirigiu-se para o monte e, com o auxílio das amarras atingiu o desejado local onde viu que, efectivamente encoberta pelas moitas existia a boca de uma espaçosa mina onde imediatamente penetrou. Depois de verificar que ela tomava a direcção do castelo, reconheceu que lhe era impossível percorrê-Ia, porque ela era escuríssima. Voltou para casa encantado com a sua descoberta, mas desassossegado e nervoso. Estava confirmado o que o mouro havia dito: a mina existia, as riquezas também deviam existir. O pior era se estavam encantadas, mas, fosse como fosse, faria tudo quanto humanamente estivesse ao seu alcance para se apoderar delas. Em caso de necessidade, recorreria até à senhora Gertrudes, conhecedora de muitos segredos de encantamentos.

Na madrugada seguinte, munido de uma grande lucerna cheia de azeite, muito antes do amanhecer já ele estava dentro da mina. Caminhando vagarosamente, a esquadrinhar todos os cantos, detendo-se aqui, / 52 / voltando atrás ali ao ver qualquer coisa que luzia, não prestou atenção a certos ruídos que, de vez em quando, se ouviam. Já tinha percorrido uma grande extensão, quando, numa dobra da mina, viu, na escuridão, duas luzes fulgurantes que tomou por dois grandes diamantes...

– As pedras – exclamou fora de si, num arrebatamento. Mas, de repente, estremeceu. Aquelas cintilantes luzes avançavam para ele, precedidas por uma aragem fresca que, num momento, lhe apagou a luz. Ouvia agora um tropel que se aproximava rapidamente. Sem ter tempo de esboçar qualquer gesto de defesa, sentiu um forte encontrão de um corpo que se lhe enfiou por entre as pernas. Num instinto de defesa, agarrou-se fortemente àquele corpo e assim foi levado pela mina fora. Ao chegar ao rio, o que quer que fosse, estacou de repente e ele foi cuspido, indo estatelar-se na água. Àquela hora estava ali um pescador que ia levantar umas nassas deixadas durante a noite. A fraca claridade da manhã não lhe permitiu distinguir as coisas e aquilo causou-lhe tremendo susto. Sem querer saber das nassas, deitou a fugir, mas não pôde ir muito longe, porque o seu coração doente não lho permitiu. Encostando-se a uma árvore para se refazer do susto e da correria, notou que um vulto se aproximava e escondeu-se. Dali a momentos, passava o alfaiate. Isto causou-lhe grande estranheza: Que andaria ele a fazer por ali àquela hora? E porque se teria atirado à água?

Refeito do susto e intrigado com a cena a que tinha assistido, voltou atrás para recolher o peixe e indagar do que se teria passado, mas, não obstante as muitas pesquisas que fez, nada descobriu que lhe pudesse dar a chave daquele enigma. Não podendo calar a estranha ocorrência, dentro em pouco a notícia era conhecida de toda a gente. O alfaiate, que era assíduo frequentador da taberna, tinha deixado de aparecer.

– Que será feito dele?

– Com o banho ficou doente do reumatismo, dizia um.

– Perdeu a fala com o susto, afirmava outro.

– Está tolhido, asseverava um terceiro.

– Está possesso, era a opinião do pescador. Eu vi-o e a sua cara não é a sua cara.

Interveio então a senhora Gertrudes.

– Todos vós vos recordais que, há dias, ele dizia aqui: «Eu hei-de encontrar a mina e as riquezas serão minhas.»

Desde esse dia, obcecado por aquela ideia, nunca mais trabalhou.

A sua preocupação era encontrar a mina por onde os cavalos vinham ao rio. Como agora não havia vigias, pôde percorrer à vontade o monte e encontrá-Ia. Sem tomar quaisquer precauções nem pensar nos perigos que podia correr, munido de uma fraca luz, penetrou nela e percorreu-a numa grande extensão. A certa altura viu na sua frente umas cintilações que julgou serem ouro ou pedras. Quando julgava já ter aquelas riquezas na mão, surdiu-Ihe o diabo, ali posto de guarda aos tesouros, que agarrou nele e o foi lançar ao rio. Ele salvou-se a nado mas ficou possesso. O diabo fala pela sua boca e diz para escarmento de quem o quer ouvir: «todo aquele que entrar nos meus domínios, é meu».

Perante este espelho, ainda haverá alguém que se atreva a enfrentar o diabo por causa das suas riquezas? Interrogou a senhora Gertrudes. Mas ninguém respondeu.

 

  É ENCONTRADA A MINA ONDE ESTÃO OS TESOUROS DO CASTELO

Este episódio acalmou durante muitos anos as ambições dos que sonhavam com as riquezas dos mouros. A presença do diabo na mina naqueles tempos de fé viva tinha enchido de terror as populações vizinhas do castelo e ninguém se atrevia a passar nas suas proximidades. Com o andar dos tempos este terror foi-se diluindo na mente do povo que por isso deixou de acreditar na presença do diabo, mas a lenda das pedrarias e ouro enterrado subsistiu, criando em algumas crianças que a ouviam um espírito de aventura que, mais dia, menos dia, havia de levar alguém a dispor-se a penetrar no desconhecido em busca do imaginário.

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Dia de Primavera com sol radioso. Um fluido novo penetra nas pessoas e nas coisas, enchendo-as de nova vida. Enfeitada com as flores das urzes e das giestas, embalada pela música dos passarinhos, perfumada com o odor das flores, a manhã está linda.

Leandro, apoiado num grosso cajado e com uma grande faca à cinta, vai a descer o outeiro das Guimbras em direcção ao rio. Já próximo dele, detém-se junto a uma cova coberta de silvas. Está pensativo. Na sua mente trava-se uma luta que lhe provoca uma indecisão. O seu olhar está fixo na cova. Agora levanta os olhos para o céu e benze-se. Com a faca começa a abrir caminho através das silvas e penetra numa galeria que o leva ao desconhecido. Ei-Io já dentro de uma ampla mina, tão ampla que por ela podiam passar à vontade dois cavalos. À luz de uma vela vai-a percorrendo vagarosamente, examinando tudo com a máxima atenção. A mina sobe agora em direcção ao castelo e atravessa um trecho que tinha cortado um grande banco de granito. Passado esse banco há um terreno argiloso, muito / 53 / duro, onde se distinguem ainda pegadas de cavalos e de homens. Fica assim com a certeza de que era por esta mina que os cavalos vinham do castelo para o rio. Mais uns passos e na sua frente está um montão de ossos humanos. Em volta dos ossos do pescoço de um esqueleto há um fio metálico de onde pende um pequeno crucifixo. Este achado trouxe-lhe à memória o desaparecimento misterioso de Jineff. Ali terminava a mina obstruída com grandes pedras. Não podendo prosseguir, voltou atrás, detendo-se a examinar mais minuciosamente o banco de pedra que a mina havia atravessado. Após um breve exame, chamou a sua atenção uma grande laje que lhe pareceu estar fora da sua primitiva posição. Esta pedra, no seu entender, tinha sido colocada ali, não pela Natureza, mas pela mão do homem. Num exame mais atento, teve a impressão de que ela escondia qualquer coisa, talvez, quem sabe, a boca de outra mina. Profundamente emocionado, regressou a casa, mas firmemente resolvido a voltar.

Passados dias, munido de uma alavanca e de outros instrumentos, estava novamente diante da laje. Com o auxílio da alavanca, tentou deslocá-Ia, mas todos os seus esforços foram baldados: a pedra era grande para ser lidada por um só homem. Deixando aquela de parte, experimentou outras, algumas das quais foram cedendo ao seu esforço, confirmando-lhe assim a sua suposição: todas as pedras estavam postas ali pela mão do homem e não pela Natureza. Perante este facto, mais se avolumou no seu espírito a ideia de que a laje ocultava grande mistério. Perante a impossibilidade de, sozinho, o poder desvendar, não teve outro remédio senão desistir do seu intento naquele dia.

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Sempre Leandro com receio de um fracasso que faria rir toda a vizinhança, guardou o mais absoluto segredo de quanto tinha planeado, mas agora via-se na necessidade de, ou desistir, ou de confiar o seu plano a outra pessoa que estivesse disposta a colaborar com ele.

Abandonar o seu projecto diante de uma dificuldade que lhe parecia fácil de resolver com o auxílio de um amigo seria imprudência. Não. Agora que tinha a certeza de ter encontrado o esconderijo que a lenda assinalava como sendo o cofre-forte do castelo, havia de, custasse o que custasse, levar a sua empresa até ao fim. Entre os seus amigos algum haveria que lhe merecesse confiança. E assim, a sós consigo, fez um consciencioso exame a cada um deles, acabando por se decidir por um parente seu, jovem, forte, valente e corajoso, conhecido pela alcunha de Alazão. Fazendo-se encontrado com ele, disse-lhe:

– Sempre ouvi dizer que os mouros saíram tão precipitadamente do castelo que não puderam levar os tesouros que aqui guardavam. Esses tesouros não os tinham no castelo, mas numa mina que vinha cá para as bandas da Vila. Essa mina, que em tempos idos muita gente procurou sem lhe encontrar rasto e que, por tal motivo, se julgou que não passava de uma lenda, sem qualquer viso de verdade, existe e eu julgo saber onde ela está. Para chegar até ela é preciso remover uma grande laje e eu só com o meu esforço não o posso fazer. À minha descoberta e ao meu projecto quero associar alguém que se comprometa a ajudar-me lealmente e a guardar o máximo segredo até conclusão do nosso trabalho. Do que puder haver repartirei irmãmente. Queres ajudar-me?

– Sim, mas eu duvido que tenhas encontrado aquilo que, até hoje, ninguém achou.

– Quase posso jurar que encontrei, mas só com o teu auxílio te poderei mostrar a verdade do que estás a tomar por duvidoso.

– E onde encontraste essa mina?

– Na Grande Via, na mina dos cavalos.

– Bem mo dizia a minha avó. Contou-me ela muitas vezes: houve, em tempos passados, aqui na Vila uma mulher chamada Gertrudes que era senhora de uma taberna muito frequentada por mouros do Castelo. Quando eles fugiram, um seu conhecido desertou do exército do Kalifa e veio oferecer-se ao novo alcaide para lhe ensinar todos os esconderijos e o sítio onde estavam guardadas as riquezas, riquezas que eles preferiram deixar enterradas a levá-Ias consigo e serem alcançados pelos cristãos e as perderam como despojos de guerra. Além disso, eles tinham partido, mas com o propósito de, apenas reorganizado e reforçado o seu exército, voltarem ao Castelo. Esse mouro mantinha boas relações com a senhora Gertrudes e antes de se apresentar ao alcaide contou-lhe que da mina que vinha do Castelo para o rio partia outra que ia dar ao cofre-forte, mas que estava tão bem disfarçada e guardada que ninguém a encontraria e muito menos a transporia. Se, porém, um dia fosse, por acaso, encontrada, quem nela penetrasse nunca alcançaria o tesouro, porque ele estava guardado por soldados e animais terríveis. Só quem conhecesse os misteriosos segredos, que davam vida àqueles animais e aos soldados, poderia alcançar o local onde se encontrava o cofre. Era isto que ele vinha ensinar ao alcaide. Ora esse mouro, tomado por espião, foi preso e morto, levando consigo o seu segredo. Será possível que decorridos tantos anos, haja, enfim, sido descoberta essa misteriosa mina? Pois se assim é, fico ao teu dispor para te ajudar no que puder.

Postos de acordo, não tardaram em meter mãos à obra. Armados com diversos instrumentos, ei-Ios a caminho do ignoto em busca do imaginário. / 54 /

Pelo caminho, Alazão ia contando: minha avó dizia-me que os mouros tinham um poder que mais nenhuns povos da terra possuíam. Com umas simples palavras mágicas, transformavam o ouro em carvão, um animal num corpo inerte ou uma pessoa num imundo animal; e com outras palavras tudo adquiria num momento a primitiva forma. Sempre ouvi dizer que a mina estava encantada e que por isso, sem o conhecimento das palavras mágicas, era impossível descobrir-se fosse o que fosse. Minha avó tinha a chave de algumas palavras que serviam para desfazer certos encantamentos. Deixa ver se me lembro. E começou a soletrar várias frases até que, depois de muito matutar, exclamou: aranha, aranhão, sapo, sapão, bicho, bichão, diabo, diabão, abri-me este alçapão. Isto foi para eles como um raio de luz que apareceu no meio da escuridão.

Confiantes e bem dispostos, chegaram ao local onde se encontrava a suposta mina metida no banco de pedra. À fraca luz da lucerna, todas as pedras foram meticulosamente examinadas e batidas com um martelo para lhes escutarem o som. Com o auxílio de uma alavanca tentaram deslocar a grande laje que, no seu parecer, era a porta que fechava a presumível mina. A cada pancada, o som repercutia-se de um modo estranho e ia morrer lá muito longe. Na verdade, tudo indicava haver ali qualquer coisa de muito misterioso. Como entre as pedras não existiam fendas por onde pudessem introduzir qualquer instrumento, com o auxílio de um cinzel abriram um pequeno furo onde meteram a alavanca. A cada esforço que faziam, a pedra estremecia, conhecendo-se que estava separada das outras. Então, Alazão, cheio de esperança e contentamento, recitou: aranha, aranhão, sapo, sapão, bicho, bichão, diabo diabão, abri-me este alçapão. Acto contínuo deram um forte empuchão à pedra que, perante o seu pasmo e alegria, tombou, deixando à vista a boca de uma mina. Com grande surpresa verificaram que a pedra tinha girado nuns gonzos tão bem centrados que bastava um pequeno esforço para a fazer voltar à primitiva posição. Depois de a terem experimentado várias vezes, Alazão entrou resolutamente na mina, mas apenas pôs os pés em terra, inexplicavelmente, a pedra como que comandada por qualquer espírito, pôs-se em movimento no sentido da vertical. Se Leandro não houvesse tão rapidamente entalado a alavanca entre a laje e as pedras que com ela faziam ombreira, talvez Alazão tivesse ficado prisioneiro na mina, onde acabaria os seus dias. Depois de terem calçado a pedra por forma a que ela jamais pudesse sair da posição em que a deixaram, Leandro entrou também e os dois com as maiores cautelas, foram avançando lentamente sem notarem qualquer coisa de extraordinário. Andadas umas centenas de passos, avistaram dois soldados, perfilados, de espada na mão, um de cada lado da mina.

– Estão encantados, exclamou Alazão. De outra forma não era possível que após tantos anos, os seus corpos se conservassem direitos, incorruptos.

– Está-me a parecer que eles nunca foram corpos humanos. Não vês que têm a cara corno que coberta de verdete? Por certo que são de bronze.

– Vejo que é verdade o que se dizia. Aqui deve haver molas ou quaisquer armadilhas que lhes dêem vida. Vamos ver. Dá-lhe uma pancada com a alavanca.

Com o ferro na mão, Alazão deu mais um passo, mas de repente, surgiram, uma de cada lado, duas enormes bichas com um grande ferrão uma das quais o atingiu num braço. Num momento tudo ganhou vida: os soldados levantaram as espadas, sem se saber como nem de onde apareceu um horrendo animal a correr sobre eles, as bichas, de bocas abertas, mostravam enormes dentes curvos e salientes. Assustados, recuaram uns passos e tudo desapareceu. Só os soldados ali ficaram de sentinela. Alazão começou a sentir fortes dores e reconheceu que as forças lhe iam faltando. Com o braço já paralisado e fortes tonturas, regressou a casa amparado por Leandro e no dia seguinte baixava à terra fria. Leandro nunca mais teve saúde. Cheio de remorsos por se achar culpado da morte do seu parente, foi definhando, definhando, e ao fim de um mês, partiu também para o Além a fazer companhia a seu primo.

Comentava o povo:

– Bem se dizia que os mouros tinham deixado as suas riquezas à guarda do diabo.

– Tão bons moços eram, como teria sido possível meter-se-Ihes na cabeça disputar com o demónio?

– Servirá ao menos esta desgraça para escarmento de outros aventureiros?

 

ÚLTIMA TENTATIVA

A morte dos dois mancebos deixou consternada a vizinhança e aconteceu então que, logo após a sepultura de Leandro, certos casos ocorridos traziam apavorada toda a população das proximidades.

De noite, para os lados das Guimbras, apareciam vultos vestidos de branco que batiam palmas e davam sonoras gargalhadas como que a celebrar a morte dos dois jovens. Logo alguém mais esperto afirmou que as mouras, postas de guarda aos tesouros, tinham, com a presença daqueles mortais, sido desencantadas e agora, libertas do seu encantamento, durante a noite, cometiam as mais audazes tropelias, pondo em sobressalto o povo da Vila. O caso avolumou-se ainda mais quando se soube que um pobre homem que passou nas Guimbras, depois das trindades, tinha sido arrebatado por elas e levado por ignotas terras, onde foi deixado metido em espesso matagal até ao outro dia de manhã. Os desacatos / 55 / cometidos contra gente pacífica por estas desencantadas mouras a quem também chamavam bruxas eram tais, que foi convocada uma reunião dos vizinhos para, em face dos perigos a que todos estavam sujeitos, se deliberar o que deviam fazer. As opiniões emitidas eram as mais desencontradas. Ouçamos a opinião dos novos:

– Que se tape já a boca da mina com muitos carros de terra para que os espíritos que lá estiverem não possam sair e os que andarem cá por fora jamais se possam lá acoitar.

Opinião dos velhos:

– Os espíritos não podem ser aprisionados. Ai de nós se tentarmos enterrá-los vivos. Por vingança eles farão cair sobre nós as maiores desgraças. O melhor é deixá-los em paz.

Opinião das mulheres:

– Só as almas do Purgatório nos podem valer. Rezemos por elas o terço todas as noites, pedindo-lhes que esconjurem para longe esses espíritos malignos que vagueiam pelo mundo para perdição das almas. Se soubermos rezar e pedir com verdadeira fé e devoção, elas farão com que eles sejam precipitados no inferno e nós ficaremos em paz.

Foi esta opinião julgada a mais sensata e assim foi feito. Em todas as casas às trindades se reuniam as famílias para rezar o terço com a maior devoção. A fé com que o faziam dava-lhes a certeza da eficácia desta reza e, por isso, a pouco e pouco, tudo foi caindo no esquecimento e as bruxas acabaram por deixar em paz os vizinhos do Castelo. Estes acontecimentos, porém, jamais se apagaram da memória do povo, que assim os têm conservado através dos tempos.

*    *

*

Vinda não se sabe de onde, certo dia acampou na Vila uma caravana de ciganos. Acompanhava-a um jovem, de boas maneiras, bem-falante, bem posto, mas de cor tão escura que por isso lhe chamavam o preto. Soube-se depois que esse cigano havia muito tempo acompanhava aquela caravana. É que ele requestava uma ciganita, Ala-Ali, de pele pouco mais clara do que a sua, mas muito elegante, de porte distinto, com um rosto sonhador, umas vezes alegre, outras sorumbático, a denunciar a nostalgia que lhe ia na alma: nostalgia de uma Pátria que nunca conhecera, que nunca tivera, mas que antevia linda, acolhedora, repousante para o seu espírito devaneador.

Embora não correspondesse sinceramente à dedicação do preto, ele não desistia de a acompanhar por toda a parte como fiel e submisso cão. Quando a ciganita avistou o Castelo, logo quis saber a sua história.

Sempre atenta à narrativa que lhe faziam, não deixava escapar-lhe nenhum pormenor. O conhecimento das lendas e os episódios a que tinham dado causa impressionaram-na vivamente e sugeriram-lhe uma ideia diabólica: pôr à prova a dedicação do preto. Se ele, na verdade, a amasse e lhe fosse submisso como um cão, não deixaria de fazer aquilo que lhe ordenasse. Se fosse mal sucedido, isso que tinha? Seria até a maneira de se ver livre dele. E se ele voltasse carregado de ouro? Então, sim. Casariam e iriam correr mundo. Visitar, lá para as bandas do Oriente, o berço da sua raça, era nela obsessão.

Oh! Como seria feliz se chegasse a conhecer as terras dos seus antepassados e nelas viver, mesmo num humilde tugúrio! A vida nómada, que ela julgava anátema lançado sobre a sua raça, revoltava-a. Por mais que a quisessem convencer de que a vida só era verdadeiramente livre praticando o nomadismo, ela não se conformava com tal ideia.

– Vês, além, o castelo? – Disse ela ao preto. Foi habitação de mouros em longínquos tempos. Certo dia, atacados pelos cristãos, fugiram tão desordenadamente que não tiveram tempo de levar consigo o seu ouro. Sabe-se que o deixaram ali enterrado numa mina. Há muito que suspiro por conhecer a Pátria dos meus antepassados, mas a falta de recursos inibe-me de me pôr a caminho. Esta vida nómada enfada-me, não a suporto. Só no Oriente, onde o sol nasce, poderei encontrar refrigério e ser feliz e a minha felicidade pode ser a tua felicidade, se me quiseres ajudar.

– Sempre te hei afirmado que tens em mim o mais fiel servidor, sempre pronto a ajudar-te no que for do teu agrado. Que me poderás pedir que eu não possa fazer-te? Lutarei com os homens, lutarei com os animais mais bravios, lutarei até com o destino, se tal for preciso. Força, trabalho, dedicação, a própria vida, tudo te darei para fazer-te feliz. Dize-me o teu querer que eu serei pronto em te servir.

– Contaram-me que dois jovens, levados pela ambição das riquezas, certo dia entraram na mina onde está escondido o ouro e, quando já se preparavam para se apoderar dele, desencantaram, sem saber como, as mouras que ali tinham sido postas à sua guarda. Cheias de alegria por terem voltado à vida, logo propuseram aos dois jovens a entrega do ouro se eles quisessem ficar a viver com elas. Como a proposta não foi aceite, arrebataram-nos e puseram-nos fora da mina. Durante muito tempo as desencantadas mouras vaguearam por estas redondezas sem encontrar quem lhes falasse ao coração. Então, saudosas como eu, da sua Pátria longínqua, para lá voltaram, e o ouro ficou sem guarda. Eu preciso desse ouro. Nós precisamos desse ouro para fazermos a nossa felicidade. Estás disposto a ir buscá-lo  / 56 / às profundezas da terra para o fazer brilhar à luz do Sol?

– Se a tua felicidade, se a minha felicidade, se a nossa felicidade está dependente desse ouro, eu irei por ele. Por ti arriscarei a vida como cão fiel e submisso.

Dentro em breve, toda a vizinhança sabia que o preto iria à mina buscar o ouro. Houve quem se risse, mas também houve quem tremesse diante desta perspectiva. A morte dos dois jovens foi relembrada e as desgraças que se sucederam novamente faladas. Alguns vizinhos reuniram-se para combinarem a maneira de impedir que o preto descesse à mina a acordar de novo os espíritos. Nessa reunião foi resolvido requerer às autoridades a expulsão dos ciganos antes que ele pusesse em prática a sua resolução; mas estas, querendo dar mostras de espíritos superiores que não acreditavam em fadas, nem em bruxas, nem no diabo e também curiosas de saber o que haveria na mina e ainda com o secreto pensamento de se apoderarem do ouro se ele fosse encontrado, indeferiram o pedido. Foram as próprias autoridades que marcaram o dia e a hora para esta nova aventura.

Ala-Ali, duvidosa da coragem do preto e receosa de que ele não atingisse o fim da mina onde estava o ouro, para que não fosse por ele ludibriada, ordenou-lhe que levasse uma grande campainha que iria tocando com força para ser ouvida através da terra.

O dia escolhido, se para uns foi de angústia, pois anteviam novas calamidades, para outros foi de festa. Enquanto muita gente acorreu com as autoridades às Guimbras para ver o preto a sumir-se nas entranhas da terra, grande multidão se postou ao longo do presumível percurso com o ouvido colado ao chão a escutar o toque da campainha. À medida que ele ia passando lá nas profundezas da terra, era dado sinal aos mais próximos, dizendo: ele aqui vai. Assim se ficou a saber que a mina seguia directamente das Guimbras para a Praça Velha, no largo da antiga cadeia.

Quando a campainha anunciou a chegada do preto a esta Praça, o povo que ali estava deu largas ao seu entusiasmo com palmas e vivas; mas este barulho abafou o som, não se sabendo se o preto passou além ou se ficou por ali. Como reinasse completo silêncio durante muito tempo, a multidão, ansiosa por notícias, dirigiu-se para as Guimbras para ouvir da boca do preto a narrativa da sua aventura. Lentamente as horas foram passando, o dia aproximava-se do fim e o povo comentava:

– Ficou encantado e jamais regressará.

– Encontrou o ouro e não voltará enquanto aqui estivermos, com o medo de que lho tiremos.

– Não arreio pé daqui enquanto ele não vier.

– E eu também.

E logo se formou um grupo da rapazes que ali ficou postado toda a noite. Durante uns dias não afrouxou a vigilância, mas do preto nunca mais houve notícias.

– Mais uma desgraça – comentava a ti Brandona, mas fiquem certos de que o pior está para vir.

Com efeito, dali a dias, um dos rapazes que tinham ficado de guarda à mina recolhia à cama e logo a seguir outras pessoas caíam doentes. Uma daquelas epidemias cíclicas da Idade Média tinha feito a sua aparição e ia ceifando imensas vidas. Mais uma vez o povo tomou isto como um grande castigo e, ao ver as pessoas que iam sucumbindo aos estragos da terrível doença, blasfemava contra todos os que, deixando-se seduzir pela miragem do ouro, se atreviam a provocar a cólera dos espíritos contra os mortais.

A ti Brandoa deitou fala:

– Já basta de malefícios. Havemos de consentir que ainda outros ambiciosos venham desafiar as iras do diabo a quem ficaram entregues as riquezas dos mouros? Acabemos com isto.

Homens e mulheres, rapazes e raparigas, todos às Guimbras. Arrasemos a mina com muitos carros de terra e pedras, para que mais nenhum ser vivo possa entrar nos domínios do diabo, onde ele é guarda, nem ele possa mais sair de lá para nos vir causar mais desgraças. Todos às Guimbras.

E foram. Grande extensão da galeria foi entulhada e tudo arrasado e nivelado, de tal forma que, passados tempos, do que tinha sido a grande mina do Castelo por onde os mouros desciam com os cavalos ao rio para lhes dar de beber apenas restava a tradição, tradição que chegou até nossos dias.

 

HISTÓRIA DE UMAS ALMINHAS

Certo governador do Castelo, cujo nome os séculos levaram consigo, querendo castigar uma falta cometida por uma sua filha, levou-a a Corujeiras e ali, junto a uma fonte, sob encantamento, a deixou ficar à guarda de Belzebu, com o dote que lhe viria a caber em partilha para que com ele pudesse recompensar o seu salvador se um dia chegasse a ser libertada.

Houve tempo em que teve grande voga o livro de S. Cipriano. Era tal a sua fama que, das poucas pessoas que sabiam ler, podiam contar-se pelos dedos as que o não tinham adquirido. O senhor X era possuidor de um desses livros e apaixonou-se de tal forma pela sua leitura, que deixou o seu ofício para se devotar à investigação dos tesouros enterrados por encantamentos. Conhecedor do caso da moura encantada ao pé da fonte em Corujeiras, certo da existência do seu tesouro, baseado nos dizeres do livro, encetou um pormenorizado / 57 / estudo do local onde ele poderia jazer. Levou tempo, mas acabou por o identificar. O desfazimento do encanto da moura não era coisa fácil. É que o tesouro e a moura estavam, segundo a lenda, à guarda do diabo. Portanto, com o diabo se teria de haver. Discutir cara a cara com ele não se afigurava coisa muito simples. E como seria ele? Matutava o senhor X. A sua imaginação pintava-o muito feio: focinho comprido a servir-lhe de cara, dois chavelhos, cauda bifurcada, olhos em fogo e boca medonha, com dentes salientes. Perante tão horrenda abantesma, não ficaria tolhido? Não. Disso não tinha medo. Quando chegasse a hora de o enfrentar, nos bolsos, bem escondidas, levaria umas medalhas, terço, água benta e a cruz do Senhor Padre. Isto lhe dava verdadeira confiança.

Andou muito tempo a magicar na sua aventura. Ir só? Não seria demasiada confiança? Mas levar testemunhas era, por certo, abdicar de uma grande parte do tesouro porque, sem boa paga, ninguém quereria enfrentar o espírito das trevas. Demais era preciso guardar segredo, não fosse alguém antecipar-se-Ihe e estragar-lhe o negócio. O melhor era convencer a esposa a acompanhá-lo.

– Mulher, tens de vir comigo.

– Eu? Credo, abrenúncio.

– Pois é como te digo; tens de vir. Não há-de ficar lá aquela riqueza enterrada, depois de tanto trabalho que eu tive para lhe achar o sítio. Tu levas água benta e eu a cruz do Senhor Padre e as medalhas bentas. O diabo não terá poder sobre nós.

– Eu enfrentar o diabo? Abrenúncio. Que esteja sossegadinho nas profundezas do inferno que eu com ele não quero nada.

Por mais voltas que desse, o senhor X não conseguiu convencer a mulher. Apresentou-se-Ihe então um problema difícil: achar homem que o acompanhasse. Foram muitos os convidados mas, ao saberem que era com o diabo que se tinham de haver, ninguém se oferecia. O senhor X andava desolado. Deixar o tesouro para sempre sepultado nas profundezas da terra, sem vantagem para ninguém, quando já tinha descoberto a maneira de o arrancar às garras do demónio? Não, não desistiria.

Os primeiros convites foram todos feitos sob segredo, mas, como não deram resultado, resolveu meter sócios na empresa: repartiria o tesouro em partes iguais. Sempre seria melhor pouco do que nada. Por este modo arranjou três homens decididos, dispostos a correrem todos os riscos.

A noite de S. João era esperada com ansiedade. Durante este período de espera, foi ele dando ânimo aos seus colaboradores.

– Nada de medo. O demónio há-de fazer tudo para nos assustar e não largar mão do tesouro, mas ele não terá poder para nos fazer mal. Havemos de levar água benta e a cruz do Senhor Padre. Assim, couraçados contra o espírito das trevas, nada temos a recear. Coragem e o tesouro será nosso.

*    *

*

Noite de S. João. Muito antes da meia-noite, já o grupo estava instalado junto da fonte, dentro de um signo saimão, com uma tábua a servir de mesa, um lampião e o livro de S. Cipriano aberto. Ao bater da meia-noite iniciou o senhor X, com voz forte, pausadamente, para que se não enganasse, a leitura do exorcismo. Enquanto esta ia prosseguindo, uma onda de calor parecia sufocá-los. Então um dos homens espargiu água benta e a onda de calor passou. A vinda do diabo que todos esperavam e tinham como certa não se realizou. Repetida a leitura do exorcismo, deu-se o mesmo fenómeno: o calor abrasava, mas o mensageiro das trevas continuava invisível, mas todos ficaram convencidos de que ele rondava por ali. Aquela onda de calor denunciava a sua presença. Então porque não aparecia?

Teria sido mal pronunciado o exorcismo?

Retiraram-se com a mesa às costas, mas o senhor X não se deu por vencido; pelo contrário, veio de lá mais convencido de que ali estava coisa. Estudaria melhor o livro e no próximo ano lá estaria novamente. No entanto não pôde calar o seu desapontamento e foi queixar-se ao Senhor Padre.

– Ó homem, então tu levas água benta e a cruz, metes-te dentro de um signo saimão e querias que o diabo aparecesse?

– Pois é verdade, tem Vossa Reverência razão. O diabo estar lá estava. Aquele calor só podia ser dele, mas não podia aparecer, não. Tornarei lá, mas de mãos vazias. Há-de ser o que Deus quiser. Dê lá por onde der: ele há-de botar para cá o tesouro.

– Mas olha que, se tiveres medo, ficas tolhido.

– Não hei-de ter. Ele não terá poder para nos fazer mal.

– Mas pode meter-te um grande susto que te tolha. Ó homem, não te metas em aventuras, tu já tens com que viver, não precisas do ouro para nada. Olha que a ambição das riquezas tem levado muita gente para o inferno.

Retirou-se o senhor X a magicar nas palavras do Senhor Padre. Na verdade, para viver honradamente, possuía o suficiente. Mas ele tinha uma ambiçãozinha: possuir uma linda carruagem puxada por dois possantes cavalos...

– Quem vai ali?

– É o senhor X... / 58 /

Como se vê, o senhor X tinha largos voos de imaginação e de ambição, mas o diabo seria mesmo o diabo? – conhecedor desta sua fraqueza, na ocasião própria, como se verá no decorrer desta história, cascou-Ihe em cheio e, num momento, o senhor X perdeu todas as suas veleidades. Mas continuemos. Passados dias, reuniu em casa os seus colaboradores, a quem referiu o que o Senhor Padre lhe dissera. Na verdade, todos concordaram que com a água benta, a cruz e, para mais, metidos dentro de um signo-saimão, o diabo não podia aparecer.

– Nós já sabemos que o diabo vem e que o tesouro existe. Havemos de deixar aquela fortuna ali enterrada para sempre sem proveito para ninguém? Eu estou resolvido a tornar lá. Posso contar convosco?

Todos se entreolharam, indecisos. Na verdade era pena, era mesmo insensato ter ali à mão uma chusma de pedras e ouro e não fazer um esforço para recuperar aquela riqueza perdida. Mas enfrentarem o diabo sem terem com que se defenderem, não seria imprudência? Mas a quem é que o ouro não tenta?

O senhor X afirmava-lhes que o espírito das trevas, desde que não tivessem medo, não lhes podia fazer mal. Tendo por certa esta garantia, que haviam de recear? Sim, iriam todos e a certeza no bom êxito da empresa era tal que cada um levou consigo um saco para transportar o que lhe coubesse em partilha. Entretanto o senhor X ia estudando o livro para ter a certeza de que se não enganaria na leitura.

A noite de S. João apresentou-se carrancuda, a ameaçar tempestade. Junto à nascente uma pequena mesa, um lampião e o livro de S. Cipriano.

Meia-noite no relógio do Castelo. Pausadamente, com voz sonora, o senhor X inicia a leitura do exorcismo, aparentando grande serenidade. Sente-se uma aragem quente. Ao longe, para os lados da Velha, ouve-se um ruído que, de minuto a minuto, aumenta de intensidade. Um vento, cada vez mais forte, impele as nuvens e faz remoinhar as árvores. Luzes ao longe iluminam o céu. Um estrondo medonho faz tremer a terra. O senhor X, convencido de que aquilo é obra do diabo para os afugentar, continua lendo, calmamente, pausadamente. De súbito, surdiu-Ihe um monstro que parecia expelir fogo: cara medonha, mãos descomunais, unhas recurvas e afiadas e nos pés umas pesadas peias de ferro que lhe dificultavam o andar. O senhor X continuava a leitura sem se perturbar. Então o diabo estendeu para ele a mão esquerda que ia crescendo, crescendo e estava quase a atingi-lo e gritou-lhe numa voz cavernosa:

– Ó tu que és cheio de ambição e vives para as riquezas do mundo, és meu.

O senhor X furtou-lhe o corpo e, não vendo os companheiros a seu lado, ó pernas para que vos quero, deixou de correr para voar. O diabo, por causa das peias, não o pode alcançar, mas a sombra de uma mão forcejava por o agarrar. Então o senhor X lembrou-se de pedir a protecção das benditas almas: «alminhas do Purgatório, acompanhai-me que, se eu chegar são e salvo, hei-de mandar construir umas alminhas ao pé da minha casa, onde todos os dias, além das minhas orações, tereis uma luzinha de azeite a iluminar-vos. E cumpriu a promessa. As alminhas foram levantadas e ali permaneceram durante muitos anos.

*    *

*

Houve quem afirmasse que não tinha aparecido diabo nenhum, que fora uma partida do Senhor Padre, ali emboscado, a que uma casual trovoada havia dado foros de sobrenaturalidade.

O Senhor Padre nem dizia que sim, nem que não, mas o senhor X e os seus colaboradores afirmaram sempre que o diabo tinha vindo à sua presença. Fosse como fosse, o certo é que o Senhor X apanhou tal susto que queimou o livro e nunca mais pensou em desencantamentos de tesouros.

 

EPÍLOGO

O tempo não pára. Os ventos a que agora chamam os ventos da História entram em toda a parte, penetram em todos os cantos e em toda a parte e em todos os cantos vão deixando os seus malefícios.

Aquelas alminhas embutidas num grande bloco de pedra ali permaneceram até há pouco com a sua luzinha de azeite à noite. Eram simples, não tinham arte, não tinham beleza, tinham a alma do povo com as suas orações, tinham a sua tradição, tinham a sua história. O senhor prior, porém, influenciado pelos tais ventos da história, entendeu que os tempos eram outros e que as alminhas também precisavam de acompanhar o progresso e então vá de ordenar a sua substituição por outras à moda, modernas, artísticas (é duvidoso) bonitas (é discutível). Podem estas alminhas ser tudo o que o senhor prior imaginou, mas à sua volta há um vazio: não têm a poesia do tempo, não têm a alma do povo, não têm a sua luz de azeite ofertada pelos seus devotos, não têm tradição, não têm história.

Não, senhor Prior, se nós tivéssemos jurisdição sobre aquelas alminhas velhinhas, ninguém, nem mesmo os tais ventos da história lhes tocariam e elas ainda hoje lá poderiam ser vistas a perpetuar e a testemunhar o cumprimento de uma promessa feita em horas de aflição. / 59 /

 

ESCAPÃES NAS LENDAS DO CASTELO

Diz-nos D. Fernando de Tavares e Távora no seu livro «O Castelo da Feira»: «O poço foi objecto de lendas várias. Nele teria havido um caminho subterrâneo para dar escápula à guarnição em caso de aperto.»

Durante séculos ali permaneceu o caminho, envolto em misteriosas lendas que, à medida que o tempo ia passando, cada vez se avolumavam mais. Ninguém se atrevia a penetrar nas suas entranhas com medo dos duendes que ali tinham o seu poiso; mas um dia apareceu ali um preto que pediu para ser apresentado ao alcaide, pois estava disposto a ir desvendar o misterioso segredo que envolvia o caminho subterrâneo. Ficou admirado o alcaide com a ousadia do homem e, receando pela sua vida, não lhe queria conceder autorização para penetrar no caminho. Porém o homem insistiu tanto com ele que o alcaide acabou por lhe dar a autorização pedida, mas antes disse-lhe:

– Sabei que os antigos dizem que quantos homens entraram no caminho, todos lá ficaram: nenhum escapou.

– Alcaide, trago comigo um maravilhoso talismã que afugenta todos os espíritos.

– Então vai.

Todos estavam curiosos por verem o tal maravilhoso talismã e por isso acompanharam-no até a boca do subterrâneo. Ali o preto, desfazendo um embrulho que trazia, apresentou-lhes uma grande campainha que começou a tocar com toda a força. E, enquanto os presentes desataram a rir-se, ele penetrou resolutamente no caminho. Tropeçando aqui, escorregando ali, caindo além, o ouvido sempre atento ao menor ruído, foi caminhando, caminhando, caminhando. De vez em quando parava a escutar para ouvir melhor o eco sinistro da campainha que, naquele medonho silêncio, causava calafrios ao mais afoito. Na verdade, qualquer ser vivo que ali se encontrasse ou fugiria a sete pés, ou morreria de medo.

Tomado algum alento, foi continuando até que, já lá muito longe, avistou uma ténue claridade. Com o coração alvoroçado correu para a luz e dali a momentos estava no fundo de um poço por onde rapidamente subiu. Cá fora, livre de perigo e de um grande pesadelo, respirou fundo. Acalmados os nervos, avistado o Castelo lá longe, a sua alegria foi indizível e então exteriorizou a sua satisfação, dando saltos e cambalhotas e gritando sem réplica às palavras do alcaide: escapei, escapei, escapei.

Alguns homens que trabalhavam perto, ouvindo aqueles gritos, acorreram ao encontro do homem que lhes proporcionava tão insólito espectáculo a indagar o que se passava. Então ele contou-lhes a sua odisseia e pediu-lhes que em memória do seu feito, dali em diante, chamassem àquele lugar, escapei. E, na linguagem popular de escapei se fez Escapães.

 

UM ENCANTAMENTO

Atribuem-se aos mouros poderes extraordinários, sobrenaturais. Daí as lendas de que eles, utilizando esses poderes quando lhes aprazia, faziam as coisas mais fantásticas: os encantamentos. Ai das filhas que, sem assentimento dos pais, se deixassem prender nas malhas da rede que Cupido lhes lançava. Para acalmar uma paixão julgada insensata, umas palavras misteriosos e, nesse mesmo instante, a jovem donzela era transformada num feio animal e naquele estado permanecia até que lhe fosse quebrado o encanto. Vá lá que os pais não eram de todo maus porque, sempre que faziam um encantamento, tinham o cuidado de deixar à filha, no local onde ficava encantada, largo dote de que ela se apropriaria se um dia fosse restituída à vida.

No lugar onde eu nasci, todos os antigos falavam, com certa mágoa de espírito, de uma rica jovem moura que a intolerância do pai, um antigo governador do castelo, havia encantado junto da fonte da Água da Velha. Toda a gente sabia que, nas noites de S. João, quem fosse afoito e se acercasse da fonte, ouvia uma linguagem estranha, uns gemidos tão dolorosos que penetravam o coração. De noite nunca ninguém descortinou o estranho ser que soltava tão dolorosos queixumes; mas de dia havia quem afirmasse ter visto uma grande bicha, que ostentava uma enorme cabeleira à volta da cabeça, coisa nunca observada em qualquer outro réptil. Daí o relacionar-se aquela estranha bicha com a moura encantada.

Em A. de S. R., o caso era muito falado e discutido, especialmente nas espadeladas e, não raras vezes, alguns rapazes mais corajosos diziam uns para os outros: vamos ouvir a moura? E iam mesmo. Quando a noite estivesse serena, os queixumes ouviam-se à distância, mas se alguém se atrevesse a aproximar-se do local de onde partiam os queixumes, logo os cabelos se lhes punham em pé ao ouvirem um silvo medonho, soltado, ao que se dizia, pela tal bicha.

*    *

*

Certo dia, um rapaz sujeito ao serviço militar, soube que ao regedor havia chegado uma ordem para que apresentasse na administração alguns mancebos para serem incorporados no exército. Como o regedor o não via com bons olhos por ele, às escondidas, lhe namorar uma filha, logo futurou que era chegada a hora de ele o afastar para longe, mandando-o prestar o serviço militar. / 60 / Mal por mal, antes as galés. Mas, triste sina, nas galés sempre a cavalo na morte, no exército à mercê de uma espadeirada. Dilema difícil de resolver. Foi queixar-se à namorada. A filha do regedor era toda desembaraçada, toda expedita e sem papas na língua. Logo foi ter com o pai.

– O pai não vai mandar o António para a tropa. Olhe que lho digo eu, não o mande senão as coisas pintam-se feias.

– Que me dizes, grande malcriada? Não vou mandá-lo? É que vou mesmo.

– Não manda, já lho disse. O pai tem de me dizer aqui agora que não o manda porque, se não mo disser, ele amanhã vai para as galés e eu vou com ele. Então o pai não sabe que ele tem tudo preparado para quebrar o encanto da moura e, para o fazer, só espera pela noite de S. João? O pai quer que eu perca o grande montão de ouro e pedras que ela guarda consigo?

– Ele quebrar o encanto? Aquele fedelho, aquele medricas atreve-se a isso?

– Atreve, sim senhor. Dê-lhe o pai tempo e verá.

– Bem, se é isso, desta vez não irá, mas vai para outra.

Nunca o pobre mancebo se tinha lembrado de tal coisa. Foi um estratagema da rapariga para o salvar da tropa; mas há coisas que nunca se fazem, porque nunca ninguém se lembrou de as fazer. É a história do ovo de Colombo. Quebrar o encanto da moura, dizia-se, era adquirir instantaneamente uma grande fortuna em ouro e pedrarias. Toda a gente acreditava nisto e o regedor não podia fazer excepção. Por isso tinha condescendido com a filha e o rapaz não foi naquela leva; mas o perigo da sua incorporação não estava vencido. Então ele que até ali não tinha pensado na moura, começou a matutar naquilo. Por seu lado a filha do regedor, instigava-o:

– Que medricas és tu que tens medo de uma bicha? Diz-se que tantas pessoas têm ficado riquíssimas com os tesouros das mouras, porque não tentas também?

Com estes incentivos, ele acabou por tomar o caso a sério. Nas horas da sesta passou a rondar a fonte, mas nunca ali encontrou qualquer coisa de extraordinário. Esperaria pela noite de S. João, entretanto iria consultar a Brandoa, mulher muito entendida em benzeduras e exorcismos para saber das possibilidades que se lhe poderiam oferecer. A bruxa acolheu-o com visível interesse e prontificou-se a ensinar-lhe as rezas necessárias com uma só condição: metade do tesouro para ela. (Não se pode dizer que a mulher fosse interesseira).

Aproximava-se o S. João. Naquela noite, a moira não deixaria de aparecer e ele, desse por onde desse, havia de estar junto da fonte para lhe quebrar o encanto. A ti Brandoa, com o pretexto de que ele podia enganar-se na reza, resolveu acompanhá-lo. As horas, contadas minuto a minuto, custavam a passar. Aquela solidão e o silêncio da noite tiravam o ânimo ao mais afoito. Lá ao longe, na torre do castelo, soa a meia-noite. Momento emocionante! De súbito, ouviu-se um ruído seguido de um silvo medonho, que, por inesperado, tirou a coragem ao António, deixando-o ali especado, sem vida. Vendo isto, a bruxa benzeu-se três vezes e começou a rezar o Credo em cruz. Logo lhes voltou a calma e então uma voz suave, melodiosa se fez ouvir.

– É ela, diz o António, e principiou a recitar o exorcismo.

Das águas da fonte emergiu a bicha, ostentando a sua bela cabeleira. Acabada a recitação do exorcismo, o António descarregou-lhe violenta pancada e nesse mesmo instante surdiu-Ihe uma formosa moura que lhe disse: mataste-me, perdeste um tesouro. E tudo desapareceu.

 

A MOURA DO CASTELO

Corria o ano de mil e tal.

As fronteiras do Kalifado de Córdova chegavam por então às margens do caudaloso Douro, asfixiando nos seus acanhados limites o nascente reino cristão de Oviedo.

Entre as duas facções peninsulares erguia-se cada vez mais irredutível o ódio que continuamente as lançava uma contra a outra.

Do alto das serras portucalenses, alpendoradas para o sul, os olhos perscrutadores dos guerreiros godos viam eriçar-se de castros e fortificações os cabeços das terras mouriscas, onde os descendentes de Agar formavam a defesa das terras que a vitória de Guadalete lhes entregara. Mas não sofria o ânimo cristão, sem impaciências, a vista provocadora desse quase constante estado de guerra.

O mais próximo das raias que demarcava o Douro era o altaneiro castelo de Lancobriga, cujas torres ameadas parecia perfurarem impavidamente o espaço com seus agudos coruchéus, como num desafio insolente ao próprio Deus de Israel.

Governava então o famoso castelo o emir Ali-Ben-Sallah, que no formidável recinto vivia entre o fausto maravilhoso do seu palácio da torre.

Entre os muros ameados sempre eriçados de lanças e adagas, na atitude guerreira de quem, a cada momento, espera o golpe do adversário, entre a rigidez da disciplina que Ali-Ben-Sallah mantinha dentro do castelo, só um lampejo de serena doçura descia até à aridez daquele imperturbável estado de permanente prevenção e desconfiança que dominava toda a guarnição. Era, quando a alguma das janelas da torre assomava, / 61 / envolta na sua estringa branca, o rosto formosíssimo da filha de Ben-Sallah.

Zelina, a jovem agarena, era todo o encanto de seu pai que há pouco a dera como noiva ao mais esforçado dos seus capitães.

A tez morena, o rosto oval, os olhos rasgados, profundamente negros, deixando adivinhar todo o fogo da paixão como só uma mulher sabe dar-se ao eleito da sua alma; as formosíssimas tranças, negras como os seus olhos, aparecendo aqui e ali, sob as pregas da estringe que lhe envolvia o busto, Zelina era a fada boa do misterioso castelo mourisco, onde só a soldadesca da defesa podia entrar livremente. Muley-Akud, o noivo de Zelina, era bem o tipo valoroso do árabe guerreiro. Zelina tinha 18 anos; Muley, 24.

O sol, erguendo-se do ocidente, doirava todas as manhãs o par gracioso dos dois amantes, sobre quem Mafoma parece que tinha vertido a cornucópia de toda a felicidade e do amor. Estava apenas por dias o enlace dos esbeltos namorados.

Corria o ano de mil e tal...

Do alto dos cabeços fronteiros ao Douro, os guerreiros cristãos, alpendorando os olhos, perscrutavam atentamente as terras da mourama e, como a águia que prepara o rápido voo com que há-de cair sobre a vítima desprevenida, aguardavam só o momento oportuno para cair em peso sobre as povoações do Kalifado, talando, arrasando tudo, numa dessas correrias selvagens que foram uma das principais características das guerras de então.

Zelina, entre a adoração do pai e o amor do noivo, aguardava ansiosa o dia feliz em que havia de estremecer enfim na volúpia de entregar-se ao homem que amava.

E os dois amantes, almas enlaçadas, olhos fitos nos olhos, corações batendo com igual alvoroço, esqueciam-se às vezes por entre as ameias do castelo, silenciosas, na contemplação do céu límpido que ia afagar-lhes a existência, dizendo muito mais as suas almas gémeas na mudez do seu olhar tímido, mas profundamente fito um no outro, do que tudo quanto traduzido em palavras pudesse aflorar-Ihes aos lábios.

Alta madrugada.

Por entre o escuro copado dos sinceiros, agachados como répteis que se arrastam, vultos escoam-se ao longo do Cáster, trepando vagarosamente, silenciosamente, a encosta do castelo de Lancobriga.

Ordens rápidas, em voz baixa, vão-se transmitindo à fila enorme dos vultos que avançam como sombras, como fantasmas, pela íngreme ladeira que leva à fortaleza.

O negro da noite, apesar do céu todo estrelado, não permite reconhecer do que se trata; mas as cautelas com que avançam, procurando coser-se com o solo, parando ao menor ruído, escutando, ocultando-se com todos os obstáculos, deixa suspeitar que se trata de alguma hoste militar em reconhecimento ofensivo, apesar de não se lhe distinguirem armas.

Sem serem pressentidas pelas velas do castelo, os vultos chegaram por fim aos muros da altaneira fortaleza, contra os quais encostaram algumas escadas de mão. Era Abril em flor. Tépida a madrugada. Embaça o ar o aroma das campinas inebriando as sentinelas do castelo na languidez das mornas alvoradas, que convidam à lassidão dos membros e sentidos e ao abandono de cuidados.

Reclinada no varandim da torre, Zelina, no recolhimento íntimo do seu ser, olhava o horizonte, embevecida nesse cenário de sonho, onde na luz azul escura da noite se ia pouco a pouco tingindo do róseo clarão ainda longínquo do sol.

Envolto no seu albernós branco e rubro um vulto se aproximou do varandim e a donzela ouviu pronunciar o seu nome brandamente.

– Zelina.

Assomou a formosa cabeça e reconheceu o noivo.

– Muley. Não te esperava. Sempre é verdade o que se rumoreja?

– Entrei de ronda pela madrugada. Os cristãos agitam-se. Todas as cautelas são poucas.

– Por Allah. Tremo de susto. Porque nos farão mal os cristãos se não lho fazemos a eles?

– Nada receies, meu amor. São suspeitas apenas. Nem eles com toda a sua força seriam capazes de entrar neste castelo formidável.

– Temo por ti, Muley. A minha alma dividiu-se e não poderia viver sem a metade que te entreguei.

– Minha Zelina, afasta para longe esses receios de criança. Nem Allah permitiria que a ventura que nos prometeu fosse agora perturbada tão injustamente. E Allah é justo e bom. Nada temas, minha noiva. Desanuvia essa fronte entristecida por um presságio pueril e envolve-me no manto carinhoso do teu olhar, onde só bebo a vida. Zelina, eu não quero ver o teu rosto sem o teu sorriso de amor, que é toda a razão da minha existência, que é todo o fogo da minha alma, que é toda a alegria do meu viver. Zelina! Por Allah, fita os teus olhos nos meus e pensa apenas na realização tão próxima dos nossos sonhos de amor.

– Tens razão – volveu a apreensiva donzela, como que acordada de passageiro delíquio. Tens razão, mortificam-me os dizeres do povo. Mas Allah não há-de permitir um crime tão injusto e nós havemos de poder enfim amar-nos, beijar-nos, sonhar... sonhar eternamente...

Como grito estridente de ave nocturna, curtou naquele instante o espaço, ecoando sinistramente pelo vale, o grito das velas árabes: / 62 /

– Cristãos! Cristãos!

Zelina, soltando um grito de agonia, levou as mãos ao peito que parecia querer estalar-lhe e Muley, fitando num segundo de espanto a noiva que o olhava como louca, arranca a adaga e precipita-se para o interior do Castelo, bradando: pede a Allah por mim, Zelina, se eu morrer.

Sobre o terrado travava-se já duro o combate entre os defensores que acudiam e os assaltantes que continuamente subiam pelas escadas encostadas aos muros.

Por entre o tinido metálico das armas e o som cavo das achas e massas sobre as armaduras dos combatentes, ouvia-se também já o gemido dos primeiros que tombaram, ensanguentando o chão da peleja. Mal se distinguindo ainda, no escuro da noite, a luta feroz, entre increpações de uns e exortações de outros, era mais trágica ainda e assumia proporções maiores para os que dos diversos lugares acudiam, guiados apenas pelo estridor do combate. Acordado em sobressalto, o pai de Zelina organiza rapidamente a defesa da torre, despede-se da filha, que entrega aos cuidados das suas aias, e acode com novo troço de soldados a reforçar a defesa. Muley Akud, à frente com os seus homens e com os olhos da alma postos na noiva estremecida, acometia furiosamente os invasores, que teriam cedido ao seu ataque inesperado, se as escadas encostadas às muralhas não lançassem constantemente novos combatentes na peleja. Zelina, enlouquecida de pavor, encerrada nas salas alcatifadas da torre apalaçada, prostrada entre as suas aias, orava em lágrimas a Allah, estremecendo de receios pelo fragor do combate que a pouco e pouco parecia aproximar-se do centro do castelo.

Os primeiros revérberos da alvorada começavam a espreitar as cumeadas do horizonte e os cristãos a nortear a direcção do ataque que, evidentemente, pretendiam levar até à grande torre onde Ben Sallah tinha o seu palácio e onde Zelina tremia de terror.

Compreendendo o aperto da situação, Ben Sallah chamou o valoroso capitão Mulley e ordenou-lhe que, enquanto ele fazia frente aos cristãos, procurasse ele salvar Zelina, fugindo com ela pelo caminho subterrâneo que levava à Porta da Traição.

– Salva a minha filha, Muley, e sê feliz com ela, exclamou. E o velho guerreiro, de um salto, atirou-se para o mais aceso do combate.

Muley, alvoraçado, corre aos aposentos de Zelina, encontrando-a entre as suas servas, orando banhada em lágrimas.

– Partamos. O castelo perde-se.

– E se me cativam, Mulley? Ah! Não deixes que me cativem! – Implorou soluçando a noiva do árabe.

– Não te cativarão, senhora. Partamos, não há tempo a perder.

– E meu pai?

– Resiste à raça de covardes que só no escuro da noite sabe atacar. Quando estivermos longe, partirá também.

– Fujamos então, disse a pobre, sentindo que as pernas se negavam a caminhar.

A Praça de Armas estava quase toda ocupada pelos cristãos que iniciavam já o ataque à grande torre, palácio do emir Ali-Ben-Sallah e Zelina ouviu ainda, ao abandonar a porta do nascente, quase arrastada por Muley, os primeiros embates contra os portões da torre.

Os cristãos atacavam já o castelo por todos os lados.

O sol rompia triunfante dos píncaros do oriente, inundando de luz os terrados do castelo, cobertos de mortos e feridos.

Das seteiras da torre e do eirado choviam nuvens de frechas sobre os atacantes que, pouco a pouco, invadiam todo o castelo. Por isso era tarde para a fuga. Ao sair do limiar, irrompe no parapeito da muralha Mem Guterres, o chefe da hoste cristã, seguido de três ou quatro dos seus. Num momento, os dois guerreiros medem-se e, num salto de tigre, o mouro cai sobre o grupo e com dois golpes de hadra despenha os dois mais próximos do alto das muralhas com os crânios fendidos. Mem Guterres volta ao parapeito e Muley, vendo o perigo, corre a proteger a noiva quase desfalecida encostada à parede da torre.

– A Moura! A Moura! – grita Mem Guterres para os dois que o seguiam.

– Salteador da noite! Na moura não pões tu a mão enquanto eu for vivo, rouquejou Mulley com os olhos faiscantes cravados no guerreiro cristão.

Há momentos que parecem séculos. Os quatro homens mediam-se. Era um contra três para se baterem no estreito espaço entre a torre e a cisterna. Fugir era impossível. Zelina, quase desmaiada, amparada pelo mouro, dificultava-lhe a defesa. A porta da torre fechara-se. Desenhava-se o cerco ao desventurado par, ainda há pouco tão feliz, no intuito claro de cativar a formosíssima donzela, a meiga noiva de Muley, que só tinha o braço esforçado do valente capitão para a defender.

– Vão cativar-me, Muley.

– Não te cativarão viva.

Quem não sabe qual era o destino atroz das cativadas nessas guerras sem quartel?

Levemente, sem despregar os olhos dos três adversários, soltou-se da donzela e, de um salto caiu sobre o mais próximo dos seus adversários, cravando-lhe a adaga até aos copos no peito do desgraçado que rolou sem um suspiro no solo.

Rápido como um raio, Muley estava de novo ao lado de Zelina, a maça numa das mãos, a cimitarra na outra, pronto a aparar o ataque. / 63 /

– Lobos do monte – Ruge o árabe, avançando sobre os dois restantes que recuam diante do ataque feroz de Muley, cairemos aqui todos, mas não cativareis a moura.

As armas retinem nas armaduras pesadamente: como tigres, os três acometem-se, ora a golpes de acha, ora a espadeirada que fere lume ao encontrar a resistência das cotas de malha.

Do outro lado do muro divisório a luta continua no assalto à torre do castelo. Escorrem já sangue os três batalhadores e a defesa de Muley começa a enfraquecer.

– Cão dos infernos! – Brama Mem Guterres, assentando o montante sobre o cimo de Muley, que cambaleia sob a violenta pancada. Pávida de medo, louca de dor, Zelina, despertada do seu torpor pela luta que, para a defender, sustenta só o noivo da sua alma, erguera-se a custo e, sempre protegida pelo guerreiro, seguia com passo cambaleante essa luta de feras que ela já sentia que não poderia terminar pela vitória do seu bem amado.

Refez-se o agareno e numa fúria de golpes faz tombar o companheiro de Guterres.

– Agora nós, brada o mouro.

– Perro de Mafoma! – Rouqueia Mem Guterres. Ainda hoje hás-de levar a alma de presente ao diabo.

Entretanto, reposto do golpe, o companheiro do chefe cristão ergue-se de novo e o mouro, extenuado e sem forças para prolongar a luta com os dois inimigos, aponta à noiva a cisterna. Os dois compreendem o gesto e procuram evitar que Zelina se aproxime do boqueirão do poço.

Num esforço supremo, o árabe investe com Mem Guterres, que foge para o outro lado do poço, então aperta o seu companheiro contra o parapeito do saliente e precipita-o, como aos primeiros havia feito, no escarpado do castelo. Entretanto, Mem Guterres corre sobre Zelina que, soltando um grito estridente, corre para a boca da cisterna, ao mesmo tempo que o árabe a olha, e precipita-se no espaço diante dos olhos mudos de espanto do desventurado noivo. Mem Guterres, o semblante transtornado, o olhar esgazeado de louco, fita o sarraceno que, automaticamente, vagarosamente, tira o elmo, despe a cota, atira a lancha aos pés de Guterres e, arrancando a curta cimitarra que lhe prendia o lado, crava-a no peito até ao punho, rolando inanimado no chão.

Zelina ali ficou encantada no castelo de Lancobriga, onde, durante muito tempo vinha em noites de luar, chorar o noivo da sua alma, no parapeito da cisterna. Depois a cisterna entulhou-se e a desventurada moura do castelo desapareceu.

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(a) Publicada no “Correio da Feira” n.º 1119 de 28-12-1918 e com a devida vénia aqui transcrita.

 

páginas 41 a 63

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