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N.º 8

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1969 

Antologia Aveirense

Homem Christo

«...MÃOS FINAS, ARISTOCRÁTICAS, CRUZADAS, O INSEPARÁVEL GORRO PRETO A PROTEGER-LHE A CALVÍCIE, PERNA TRAÇADA, O CORPO INCLINADO PARA AS COSTAS DA CADEIRA, OLHAR AGUDO E PERSCRUTADOR –, ERA BEM ELE QUANDO EM BREVES PAUSAS DO SEU LABOR REPOUSAVA UNS MINUTOS MEDITANDO» – Carolina Homem Christo.

 

NOTAS BIOGRÁFICAS

HOMEM CRISTO (Francisco Manuel). Notável jornalista e panfletário, político, oficial do Exército, professor universitário, nasceu em Aveiro em 8 de Março de 1860, e faleceu na sua terra natal, a 25 de Fevereiro de 1943. Iniciou a sua famosa carreira na imprensa, aos dezassete anos, em «O Trinta» e, ainda jovem alferes, fundou o semanário “Povo de Aveiro”, de que foi, praticamente, durante mais de meio século, o único redactor. O jornal de que foi director, em vez de seguir a feição de um órgão de propaganda regional, tomou o carácter de um contundente panfleto, e como tal atingiu extraordinária difusão e popularidade.

Retrato de Homem Cristo, da autoria de Lauro Corado, existente na Sala dos Notáveis do Museu de Aveiro. Clicar para ampliar.

Retrato de Homem Cristo, da autoria de Lauro Corado, existente na
Sala dos Notáveis do Museu de Aveiro

Desassombrado nas suas opiniões, Homem Cristo fazia da sua pena um látego com que intransigentemente zurzia quem quer que fosse e sem temer as animosidades e as consequências. Criou, assim, a par de fervorosos admiradores e de fiéis amizades, muitas inimizades e profundos ressentimentos, que contra ele se voltaram tenazmente.

Fez parte do Directório do Partido Republicano, ainda na vigência da Monarquia, conjuntamente com Teófilo Braga, Manuel de Arriaga, Jacinto Nunes, Azevedo e Silva e outros marcantes vultos da propaganda republicana.

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Estabeleceu doutrina, não só no seu jornal, mas noutros órgãos da Imprensa, como os “Debates”, e em “O Século”, fundado e então dirigido por Sebastião de Magalhães Lima.

Quando se engendrou a revolta do Porto, de 31 de Janeiro de 1891, Homem Cristo manifestou-se contrário ao movimento, alegando que, sem a preparação necessária, esta estaria condenada ao malogro e a derramar sangue inutilmente. Preso e julgado, como se provasse a sua inocência, veio a ser absolvido. Sempre arrebatado e rude, ora atacava os monárquicos, ora combatia os republicanos, com o ímpeto indomável de um franco-atirador.

Apóstolo convicto e entusiasta da democracia e da instrução popular, realizou obra muito valiosa contra o analfabetismo, especialmente, em quartéis, enquanto oficial.

 

Um trecho autógrafo de Homem Cristo

Quando da implantação da República, viu-se forçado ao homísio, havendo suspendido a publicação do seu semanário, editou, em Paris, o “Povo de Aveiro no Exílio”.

Ficaram memoráveis muitas das suas polémicas. Aos seus ataques respondeu Guerra Junqueiro com o seu desforço «A Execução de uma Quadrilha». Ao desafio de Afonso Costa, o temível panfletário aveirense respondeu, negando-se a duelos, mas afirmando-se pronto a desafrontar-se onde quer que o encontrasse. Como resultado dessa pendência veio a deixar o Exército em 1909.

Deflagrada a primeira Grande Guerra, intervencionista convicto e acérrimo, regressou ao País, e voltou a publicar em Aveiro o seu jornal, então, sob o título de “O de Aveiro”.

Foi nomeado, em homenagem aos seus méritos e cultura, pouco após o termo da conflagração, professor catedrático da recém-criada Faculdade de Letras da Universidade do Porto, lugar que desempenhou, com alguns anos de interrupção da docência, por motivo de incompatibilização com outros professores, até atingir o limite de idade.

/ 37 / Em Aveiro, além de outras actividades e serviços de menor repercussão, foi presidente da Associação Comercial e Industrial e da Junta Autónoma da Ria e Barra de Aveiro, onde teve acção notabilíssima a favor do ressurgimento portuário e económico da região.

 

Publicou: «Os acontecimentos de 31 de Janeiro e a minha prisão», «Pró-Pátria»; «Banditismo político»; «Cartas de longe»: I – A instrução secundária em Portugal e em França – II – Em defesa da instrução do povo; «Monárquicos e Republicanos»; «O bolchevismo na Rússia»; e Notas da minha vida e do meu tempo, 7 vol. Foi colaborador da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, e de numerosas outras publicações, como o «Guia de Portugal», de Raul Proença, o «Diário de Notícias», a «Ideia Nacional», dirigida por seu filho primogénito, etc.

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HOMEM CRISTO NO PARLAMENTO

A extraordinária notoriedade alcançada por Homem Cristo resultou primacialmente da sua denodada actividade jornalística, exercida em mais de sessenta anos ininterruptos. Iniciou-a aos dezassete, no jornal “O Trinta”, – fundado por Cecílio de Sousa –, moço prosélito dos ideais republicanos, voltado ainda mais à pura doutrina que à feição polemicante, que seria o seu pendor temperamental mais conhecido, e o tornaria tão famoso como temido.

Já então usava a linguagem incisiva e ardorosa, e certa veemente intransigência. Ainda não sofrera, todavia, os desapontamentos, nem a incompreensão e resistência pela inflexibilidade das suas atitudes, simultaneamente meditadas e impulsivas, ou o bloqueio de silêncio e hostilidade que em sua volta os antagonistas procuraram estabelecer e apertar. Ainda não haviam surgido os diferendos com os correligionários, nem as lutas acendradas até ao rubro com as facções adversas.

O azedume do panfletário sem contemplações, que aliás nunca lhe obnubilaria a jovialidade de trato; o vigor exasperado de desforço na luta desigual a que se encontrou submetido, de um contra uns tantos, mais ou menos numerosos e dotados; a indignação máscula e bravia do homem inflexivelmente rijo, que não condescendia com transigências comprometedoras, com a molície acomodatícia do deixar correr, e com as tergiversações, ladeantes dos rumos definidos; o desencadear da irada veia de fundibulário de certeira pontaria, com evidentes excessos e em que o exacerbado espírito de justiça crítica atingiria, pela incontinência e desmesura, a injustiça, que execrava e combatia; o desbordar de fervor comunicatório, que lhe estava intrínseco e latente e constituía a sua característica dominante e de maior evidência – surgiriam depois, em crescendo. Intensificar-se-iam com o tempo, o estudo aturado dos livros e dos homens, e o treino ininterrupto. Singularizá-lo-iam na / 38 / truculência da arremetida, no estilo perfeitamente ajustado, transparente como uma evidência, inteligível a toda a gama de leitores, despido de atavios supérfluos, vernáculo sem demasias de purismo, e contundente como uma clava, cáustico como vitríolo, recheado de apodos e sarcasmos, e fluente, espontâneo, desafectado.

Teve tribuna efectiva em órgãos da imprensa, muito jovem ainda nos “Debates”, em “O Século”, onde Sebastião de Magalhães Lima lhe confiou o comentário internacional e redigiria, por vezes, o artigo de fundo.

Visceralmente jornalista, panfletário de inexcedida energia e intrepidez, com excepcional penetração e capacidade dialéctica, homem com uns quantos princípios irremovivelmente firmes, a esses inalienavelmente apegado, democrata até ao âmago e, como consequência, republicano, propugnador dos seus ideais, na exegese serena ou por vias, com mais lata audiência, da própria pugna e da diatribe, a feição plumitiva, a que deu o talento e a infatigabilidade de pelejador sem tréguas, o individualizou e notabilizou.

Toda a demais acção, privada ou pública, da sua vida ardente e agitada, embora levada a efeito com escrupulosa exacção e, em regra, com destaque no cotejo com a generalidade, e fecunda e útil, apaga-se em relação à do jornalista, tantas vezes solitário, a bradar a plenos pulmões o que ninguém mais tinha a coragem de proclamar.

A carreira militar, de que a política o afastou e na qual deixou rasto e fez sementeira pródiga de promoção humana nos soldados iletrados; as iniciativas que tomou a favor de Aveiro, como figura proeminente de uma vaga liga defensora dos interesses da cidade, que ficaria restrita ao seu esforço e influência individuais e, mais tarde, culminaria com uma obra de extrema eficiência, na campanha de apostolização – essa também jornalística – e nas tarefas sumamente esclarecidas, convincentes e pertinazes a que se entregou como presidente da ainda então incipiente Junta Autónoma da Ria e Barra, para o ressurgimento portuário aveirense; a cátedra da recém-formada Faculdade de Letras da Universidade do Porto; a sua vincada passagem pelas organizações políticas militantes constituíram, embora atestassem méritos relevantes, como que episódicas fases da sua biografia, acessórios complementos de um «curriculum» em que a tudo sobreleva o jornalista nato e incomum, o foliculário como nenhum outro na nossa época singularizado.

O jornalismo, na sua feição política, específica e eminentemente o caracterizou. Franco-atirador, com um jornal fundado aos vinte e dois anos, que, pouco após a fundação com alguns qualificados redactores e colaboradores, passou a redigir praticamente sozinho, fez do seu semanário famoso sua pessoalíssima e exclusiva tribuna, sem peias, desobrigado de toda a sorte de contas ou satisfações a dar, sem ligações que compelissem a transigências, proclamando as suas convicções e as verdades de que estava persuadido, clamando em nome dos que calavam as reclamações, desferindo raios e frechas, e trovejando com estertorosa iracúndia os protestos.

Um aspecto da sua vida pública, porventura o mais esporádico, tem sido omitido nas referências biográficas a Homem Cristo. Não lhe acrescenta a glória, mas não compromete o nome prestigioso de que deixou recordação imperecível. Queremos referir-nos à sua passagem, em duas legislaturas pelo Parlamento.

O famoso e temeroso fundibulário do «Povo de Aveiro», que escrevia com uma fluência excepcional, ao correr da pena e redigindo colunas compactas para o seu semanário quase sem uma emenda, espontâneo, rápido, servido por uma multímoda e fidelíssima memória e uma bagagem cultural invulgar, não evidenciaria talvez correspondentes dotes parlamentares. Nunca se mostraria o orador do tipo em que normalmente o concebemos, cultivando a forma, desferindo a fantasia, rebuscando os efeitos retóricos, mas na pugna parlamentar embora fugaz, logo se impôs pela desassombrada virilidade e as suas peculiares qualidades.

Conversador invulgarmente atraente, com uma grande variedade de inflexões ajustáveis ao tema e à circunstância, que do nasalado ao cristalino passavam no preciso momento, ora com registos graves e cavos, ora a tocar na elocução o esganiçado e o falsete, arrastando as palavras para lhes imprimir um reforço de expressão ou em ritmos céleres, dando o claro e o escuro, e o colorido e o acre sabor, repetindo e repisando, recheando de pitorescos traços o desafectado colóquio, o jornalista rude e acerbo transmudava-se, prendia e enlevava. E ainda que, em frequentes ensejos, o interlocutor acabasse por se cingir a escutá-lo, já porque tinha a arte nata e consumada de discorrer, já porque tinha maior domínio dos assuntos e poder de transmitir, ou por falta de oportunidade e exercício dessas propícias faculdades, viveu, por conveniência própria e porque as circunstâncias, por ele em grande parte criadas, o isolaram na sua cidadela, sem contacto directo com assembleias.

Quem, aliás, o ouviu alguma vez discretear numa pequena roda de admiradores ou afeiçoados, ou nas reuniões, calmas ou tempestuosas, a que presidira na sua terra natal, ou a falar em público, lendo ou sobretudo improvisando, sentiu-lhe na forma tão desarrebicada como sugestiva e no tom incisivo e vivaz, o poder de persuasão e atracção. Não era orador espectacular, de grandes reptos e tropos arrebatadores, mas impressionava qualquer auditório pela força desbordante que punha ao discurso, pela sobriedade e propriedade acessibilíssimas, a clareza de ideias e factos expressos, filtrados pelo seu lúcido espírito e condimentadas pela palavra / 39 / ou o dito de mais realçante significado, ainda que com laivos de plebeísmo ou caindo no despejo de linguagem.

*

*  *

Um dia, finda há cerca de um ano a primeira Grande Guerra, na qual foi intervencionista entusiástico, com uma obra de propaganda e esclarecimento que lhe trouxe um enorme prestígio e criou uma corrente de opinião para lhe confiar a chefia de um novo partido político, Homem Cristo, com essa redobrada aura, sem para o facto meter prego nem estopa, sem dar nesse sentido um só passo, já que inteiramente desconhecia a escolha da sua candidatura, surdiu, de surpresa, deputado pelo longínquo círculo eleitoral de Timor.

A eleição verificada a 3 de Agosto de 1919, para o fogoso e grande jornalista constituiu uma tal surpresa que, ao princípio, nem a queria acreditar, uma vez que ninguém sequer o havia consultado sobre a propositura – «um caso raro, creio que único na nossa história constitucional, o ser eleito deputado um cidadão, sem o desejar, sem o esperar, sem ser consultado, por mero arbítrio dos eleitores». (1)

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A inesperada eleição, se ao próprio escolhido causou surpresa, adquiriu foros de inquietante acontecimento nos meios políticos. Não era dócil a Câmara, nem acomodatícia e a oposição não se coibia de criticar e interpelar o governo. Mas uma vez desgarrada de todos os grupos, inteiramente descomprometida, impiedosamente castigadora, causaria compreensíveis inquietações. Assim, a acta da eleição extraviou-se, ou foi propositadamente descaminhada e sonegada. Ao facto se referiria, na sua estreia parlamentar, que efectuaria apenas vinte meses após a eleição, pois só veio a ser proclamado deputado em 27 de Janeiro de 1921, e só veio a tomar assento na Câmara na segunda quinzena de Março seguinte.

Diploma de Deputado de Homem Cristo.

A maledicência rosnava várias causas para o desinteresse que o panfletário, tão malquisto de certas parcialidades políticas, mostrava em ocupar a sua cadeira de deputado e fazer valer os seus direitos, uma vez que o presidente da assembleia de apuramento lhe enviara um duplicado da acta. «Uns diziam: – Tem medo que lhe batam. Outros: – Tem medo de ir lá e ficar entupido. Outros: – Não sabe falar. Os factos desmentiram tudo isso». (2) Estivera quarenta e um anos sem falar em público, precisamente desde 1880, num discurso de que a imprensa da época exaltou as qualidades oratórias. Mas não estranhava que, pela falta de hábito, se pensasse recear que, indo à Câmara dos Deputados, pudesse «ficar engasgado, fazendo uma triste figura».

O seu primeiro discurso parlamentar data de 4 de Abril desse ano, de uma breve quinzena depois de assumir o seu lugar, o bastante para tomar o pulso à Assembleia, conhecer o ambiente, poder avaliar as reacções que o seu modo e temperamento provocariam quando arremetesse.

A sua intervenção tem aspectos de desforço pessoal, mas constitui uma candente crítica ao que classificou de triste regime de solidariedade, com actos de indisciplina e corruptibilidade com correligionários: «Pedi a palavra para ler à Câmara – são as suas primeiras palavras – um papel largamente distribuído em Lisboa, há dois ou três dias, e que foi escrito na polícia. Não digo pela polícia. Digo na polícia, por um dos seus mais ínfimos funcionários, que, todavia, se atreve a dirigir-se nos termos que a Câmara vai ouvir ao sr. Presidente do Ministério

Lê um manifesto do Grupo Carbonário «Os Treze», que o criva de doestos e enxovalhos – bandalho, traste, desavergonhado, pulha de Aveiro, bandido, todo um chorrilho de insultos do mais soez primarismo. Repudia a pasquinada e acrescenta:

«Se declaro que não escrevi que o «Grupo dos Trese» não recebeu dinheiro do sr. Liberato Pinto não é para dar satisfações por mínimas que sejam /.../ mas para pôr em relevo essa miséria moral. Que envergonha o País, que diminui a República, que atenta contra a dignidade nacional.»

Liberato Pinto, contra quem vinha travando rija e inclemente campanha no seu semanário, embora em tom mais comedido, é visado, a propósito de um inquérito que o Governo mandara proceder aos actos do Comandante da Guarda Nacional Republicana, quando mandou passar guia àquele seu subordinado para se apresentar no Ministério da Guerra.

O discurso é quase como um dos seus violentos artigos, ditado. Não iguala, por ventura, o jornalista, mas não o desmerece. Paulo Freire, no dia seguinte, e ele só se atreveu a quebrar a muralha de silêncio que mais uma vez se quis formar em volta do vigoroso jornalista aveirense, – fazia o seu habitual comentário à sessão da véspera: (3)

«O sr. Homem Cristo estreou-se ontem na Câmara. Foi um sucesso. Voz forte, gesto largo, imponência de parlamentar aguerrido. Durante minutos a voz do sr. H. C. tonitroou na sala /.../ e a Câmara submissa, acagaçada, metida debaixo das carteiras, ouviu. E o sr. H. C. gesticulava e vozeava alto: – «Enquanto o regime não se libertar destas misérias, não terá autoridade para proceder contra bandidos desta força», refere uma passagem em que o orador alude a ameaças de morte:

/ 40 / o texto integral parece arrancado ao «Povo de Aveiro»: ...«O autor do papelucho /.../ declarou alto e bom som, sem pejo nem receio, que me havia de assassinar. Pois venham os assassinos. A mim não me metem medo. Não vim a esta Câmara para ficar calado diante de atentados desta ordem nem para recuar perante, bandidos desta natureza. E não é por fanfarronice, nem por valentice, que clamo aqui e em toda a parte que não tenho medo. Não pretendo as honras de valentão, antes as rejeito. Mas tenho, e isso me basta, a consciência do meu dever. Que venham os assassinos. Mas que se apressem, porque se não vierem quanto antes eu lhes estrangularei a voz da calúnia e da infâmia, eu lhes cortarei a língua perversa.»

A catilinária ultrapassava o diapasão habitual. Era insólita, mas nova. A hostilidade premeditada, a primeira impressão de tácita censura pela veemência incomum foi cedendo à curiosidade. Homem Cristo, pouco a pouco, foi dominando o auditório meio atónito com a energia desmedida. Inteiramente senhor de si, conquistada a atenção pelo vigor e pelo poder de argumentação, o estreante, com um longo passado de semeador de tempestades, impunha-se à conjurada inimizade da maioria adversa. Já com pleno à vontade relata o cronista da sessão: «Lá ao longe, lobriga um contínuo: Olá, traga-me um copo de água, que tenho muito que dizer!» E a Câmara, toda a Câmara, já então ri descontraída.

No final, descarregada a ira, o tom mais sereno e ameno, é de ironia acobertada de modéstia. Assim remata essa primeira oração parlamentar:

«Tenho sessenta e um anos de idade. E só agora entro nesta Câmara, embora sem o pedir, sem trabalhar por isso, sem o esperar e sem sequer o desejar. A prova – e mostra o duplicado da acta de eleição – está aqui, é a famosa acta da eleição de Timor, o célebre documento que se procurava. Eis o diploma que me teria desde há muito dado entrada na Câmara se, porventura, nela tivesse querido entrar. Não é o que foi roubado. Os eleitores, parece que conhecendo já os desgraçados costumes deste país, tiveram o cuidado de me enviar um diploma igual àquele que se extraviou. É este. Bastaria havê-lo apresentado para ter sido desde logo proclamado deputado. Mas como não tinha empenho nenhum em entrar nesta Câmara, e não o digo por desconsideração por ela ou por qualquer dos seus membros, mas pela consciência de que não vinha cá fazer nada, deixei-o ficar tranquilo na gaveta onde o tinha fechado.

Enfim, cá estou. Mas cada vez reconheço mais a minha inutilidade.

Lembra-me, a propósito, um caso que já tornei público uma vez, no meu periódico, e que José Luciano de Castro, aborrecido com as insofridas ambições do seu correligionário José de Alpoim, contava, certo dia, a alguns íntimos, numa das salas do seu palácio da Rua dos Navegantes.

José Luciano, moço ainda, quis ser deputado. Não tão moço que não tivesse já vinte e seis ou vinte e sete anos, e não fosse já conhecido pelos seus escritos sobre Direito, sobretudo Direito Administrativo e Economia Política, a que toda a vida mais ou menos se dedicou.

José Estêvão, seu patrício, pois que ambos eram de Aveiro, dispunha nessa época de larga influência política, como forte coluna, que era, da Regeneração. Mas José Luciano tinha receio de se dirigir directamente a José Estêvão. Empregou como intermediário seu cunhado José Henriques, grande amigo do tribuno e com relevantes serviços à causa constitucional. José Henriques escreveu a José Estêvão no sentido que José Luciano desejava. Mas não obteve resposta.

À coca, José Luciano viu um dia José Estêvão chegar a Aveiro. E correu a Estarreja buscar o cunhado. Vieram os dois e procuraram José Estêvão em sua casa. Este apareceu pouco depois a receber as visitas; tratou José Henriques com muito agrado, abraçando-o efusivamente, mas sem fazer de José Luciano o menor caso. E trava-se o seguinte diálogo:

– Não recebeste uma carta minha? É que te escrevi solicitando a tua intervenção a favor da candidatura de meu cunhado.

– Recebi. O que me admira, menino – disse voltando-se para José Luciano – é a sua audácia em querer ser deputado. Que títulos apresenta a justificar a sua pretensão? Quais são os seus serviços ao País? Quais são os seus méritos provados? Como hão-de os eleitores consagrar o seu nome? Se fosses tu, José Henriques, homem cheio de serviços autênticos e méritos reais! Mas teu cunhado! Desculpa, mas é audácia.

José Luciano comentava no salão do palácio da rua dos Navegantes: – Eu já pedia ao soalho que se abrisse para desaparecer por ele abaixo».

Hoje, em regime republicano, que se diz de pura democracia, o critério é outro. Sem ofensa para os jovens deputados que me ouvem e são, sem dúvida pessoas de grande mérito. Se a estátua que está defronte desta casa pudesse animar-se, descer do seu pedestal e entrar por aqui dentro, é natural que José Estêvão ficasse admirado. Mas eu, por mim, eleito tanto contra a vontade dos dominadores do regime, que até ao meu diploma desapareceu, e recebido com tão pouca simpatia por esta Câmara, que só ao fim de mais de ano e meio se resolveu a proclamar-me deputado, é que não tenho de que me admirar. A culpa é minha, não é da Câmara. Eu sou velho e vejo aqui tudo cheio de gente nova. Mas isso só quer dizer que os novos têm o talento e os serviços que eu não tenho, a competência que me falta; que eles são um valor e eu uma inutilidade / 41 /, e que razão me assiste para dizer que não vim aqui fazer nada.

Sim, Senhor Presidente, entro nesta casa por respeito aos meus eleitores, que me elegeram tão espontaneamente que me julgo no dever de os não desgostar. Mas reconheço a minha insuficiência para cumprir o seu honroso encargo, a minha inutilidade, perfeita inutilidade, dentro desta casa.

Positivamente, os tempos mudaram.»

Plenamente cônscio dos seus predicados, tinha vencido afoitamente a primeira prova. A sua forte personalidade, embora em torno da sua primeira intervenção parlamentar se mantivesse a campanha de segregador ostracismo político, e o propósito de lhe abafar todos os ecos exteriores, arrefeceu de algum modo a animadversão contra o indesejado ferrabrás iconoclasta, esfrangalhador de reputações, impenitente e incorrigível. Bernardino Machado, que combatera ardorosa e pertinazmente, e crivara de apodos numa desafronta que julgou devida, casual ou deliberadamente – mais provavelmente procurando o ensejo – olvidando os motivos que os haviam afastado, dirigiu-se-Ihe, numa breve troca de palavras de cortesia. Sentiu-se que na Câmara passaria a contar-se com uma nova voz, livre como uma rajada, poderosa, independente, com a ousadia de abordar e verberar os temas tabus, doesse a quem doesse.

Fiel, como era seu timbre, às obrigações assumidas, salvo os dias em que se deslocava ao Porto para dar as suas lições na Faculdade de Letras, passou a exercer a sua função de deputado com assiduidade e activa participação. Reduziu «O de Aveiro» – designação então adoptada para o seu inconfundível semanário – a duas páginas, que o tempo escasseava-lhe para preencher as quatro habituais. Desdobrava-se, afanosamente, pela actividade parlamentar, pela docência universitária e pela inalienável missão jornalística, que lhe estava nas tendências irremovíveis ou, para usar a sugestiva expressão corrente, na própria massa do sangue.

 

Na sessão de 10 de Abril seguinte, a Câmara comemorou a batalha de La Lys. Homem Cristo propõe-se «levantar duas ou três afirmações» de antecedentes oradores, numa hora que, «se não era de recriminações, era, todavia, de justiça e de verdade histórica», que «nunca se deve perder a ocasião de afirmar».

A reposição da verdade histórica, no ensejo, consistia, em afirmar a sua convicção de que não fora o partido com maioria na Câmara que tomara a iniciativa da participação do nosso país na Grande Guerra de 1914 – 1918, mas que ela resultara das obrigações do tratado que de longa data nos unia a uma Nação – a Grã-Bretanha – que tinha entrado nessa pendência.

«Mas – continuava – se não houve nenhum partido a tomar a iniciativa da guerra, houve, todavia, a obrigação, que não foi cumprida, de auxiliar o partido que então estava no poder. Este é que é o facto.»

E, preconizando o princípio de que, uma vez declarada a guerra, não havia mais que discutir se Portugal devia ou não ter tomado parte nesse conflito, frisava:

«Não quero aqui censurar ninguém, porque, repito, a hora não é para retaliações nem para recriminações. Mas o que também não posso, eu que defendi tenazmente a intervenção na guerra, é consentir que se diga aqui que ninguém foi contra a guerra. E não só por ter o meu nome ligado à guerra, mas porque do facto de ela ser contrariada resultou uma coisa tremenda para Portugal – e essa coisa tremenda foi não termos feito na guerra a figura que devíamos ter feito, nem tirarmos da guerra o resultado que devíamos tirar. Esta é que é a verdade.

«Não houve quem combatesse a guerra? Então porque estive eu três meses metido na Cadeia?

«Houve o mais vivo combate à guerra. Contrariou-se a guerra por todas as formas. Esse combate à intervenção na guerra desmoralizou o Exército, desorientou a opinião pública».

Verberando a atitude dos que, no decorrer dela, combateram a nossa intervenção no conflito mundial, e lamentando a conduta dos partidos, observava:

«Se, feita a paz, nos tivéssemos sabido manter naquela atitude de moralização e de respeito pelo Direito, pela Justiça e pelo Trabalho, em que nos devíamos ter mantido, nós seríamos hoje o primeiro povo da Península e não estaríamos assistindo a este espectáculo único de a Espanha ter maior consideração internacional que o país que combateu ao lado dos Aliados.»

E continuava, considerando que se tornaria desnecessário associar-se à homenagem da Câmara, pois, tendo defendido a guerra e nunca se tendo arrependido de o fazer, tacitamente lhe estava dada a sua adesão.

«Além, todavia, dessa adesão tácita – concluiu – eu queria declarar expressamente que me associava às palavras de V. Ex.ª, sr. Presidente, e que o principal acto de Portugal, nos últimos tempos foi a sua entrada na guerra. Lamento apenas que desse facto se não tenha tirado as consequências que seriam de esperar.»

Voluntarioso e inquebrantável, experimentados os dotes e os meios em que os exercia, a intensidade a imprimir intrínseca e extrinsecamente ao discurso, e as capacidades de captar a atenção, já nem mesmo o impressionam as desapontadoras qualidades acústicas do hemiciclo onde os «pais-da-pátria» debatiam as grandes e as pequenas questões nacionais ou de mera regedoria – daquela a que chamou, dando largas à veia satírica, na epígrafe de um artigo publicado no seu jornal, «Uma Sala Desmoralizadora».

Conhecera-a na fase precedente, antes do incêndio / 43 / que sofrera, e lá ouvira oradores como Pinheiro Chagas, Latino Coelho e Hintze Ribeiro, e figuras de saliente relevo como Rodrigues Sampaio, Mariano de Carvalho, Emídio Navarro e Dias Ferreira, além de outras que deixaram nomeada. Depois de reconstruída, só então lá voltava e «surpreendido, surpreendidíssimo ao vê-Ia, ao ouvir falar dentro dela, que ninguém tivesse clamado que aquela sala era uma das fontes, e das mais perniciosas da desmoralização e da anarquia portuguesa». (4) E repisava, espantado e exprobatório, exagerando o traço como um caricaturista, na maneira que lhe era tão própria: «Aquela casa é imoral: Aquela sala é dissolvente. Aquela sala foi feita justamente para o pau de bater bifes, para os chinfrins, para as algazarras, a falta de atenção, a falta de respeito, a votação de projectículos às carradas, sem ninguém saber o que se vota, enfim, tudo aquilo que assinala a Câmara, desde que se construiu o novo edifício. Porque, é notável, a grande decadência da Câmara dos Deputados coincide precisamente com a nova sala».

Analisa as consequências morais e políticas de um caso com aparências somenos e que, entre austero e risonho, considera influente na vida pública nacional, e se diria coisa simples, de secundária importância, «essa coisa de oradores não se ouvirem», os oradores que eram precisamente os componentes da assembleia legislativa e os procuradores dos povos das diversas regiões do País.

Pois «o deputado, com a consciência plena de que o não ouvem, fala sempre sob essa pressão terrível, e em vez de orar berrava, o que obstava a uma verdadeira e sã eloquência», e assim, «não havendo forças humanas, nem regras de educação, nem leis de boa sociedade, nem praxes de bom tom, nem o diabo», que forçassem os demais, não ouvindo, «a ser surdos, a ser mudas e ainda por cima a estar quedos como penedos».

Por isso, a sala era por si mesma, uma causa de desmoralização, um motivo de desordem, um motivo de indisciplina e de anarquia. «Não única, de certo, mas uma causa», acentuava.

Não tarda, no entanto, a tomar a palavra, certo de que se fará ouvir, na verberação severa de acontecimentos académicos pouco antes ocorridos em Coimbra. Com o seu proverbial desassombro, ferindo para todos os lados, e sem temor de a todos desagradar, em 19 de Abril: ...«O Tempo» disse em público o que todo o mundo diz em Coimbra. Que sabe o Governo a esse respeito?» E acrescentava: A República não pode consentir que se acusem de verdadeiros crimes os funcionários públicos, ficando de braços cruzados. Tem de proceder contra os acusadores ou contra os acusados.»

A traços gerais, refere as consequências do conflito, que tivera origem num discurso pronunciado pelo estudante Eduardo Coelho, quintanista de Medicina, junto do féretro do professor Daniel de Matos, a greve consequente, os manifestos com ataques aos professores, o perigo de se suscitar a solidariedade dos estudantes das duas outras Universidades, para, depois, salientar o número limitadíssimo de lições que da greve resultariam. Aliás, mesmo sem essas atitudes estudantis de rebeldia, o número de aulas era reduzido sob os mais diversos pretextos: «Sabe V. Ex.ª, Presidente, quantas lições tenho dado na Universidade do Porto, desde onze de Março até hoje? Duas. SEM EU NUNCA TER FALTADO! Os estudantes, que marcam as férias a seu talante, faltando às aulas em massa – é um novo género de greve – entenderam que as deviam prolongar de onze de Março a onze de Abril. Um mês, nada menos. Depois houve feriado, porque os generais estrangeiros (5) foram ao Porto. Nos dias em que eles lá estiveram, e nos dias em que eles já não estavam. E por aqui, sr. Presidente, pode V. Ex.ª calcular, e a Câmara, o estado a que chegou o ensino em Portugal

Confronta o nosso com o regime do ensino e a orgânica da Faculdade de Letras de Paris, que pouco antes visitara. Discreteia sobre um problema da sua predilecção e com que estava inteiramente familiarizado: «...em Paris, há seis cadeiras de História Antiga, com seis professores diferentes. Em Portugal há só uma. Há quatro cadeiras de História da Idade Média, com quatro professores diferentes. Em Portugal há só uma. E há onze cadeiras de História Moderna e Contemporânea, com onze professores diferentes. Em Portugal, para não fugir à regra, há uma só!

«Já por esse lado, nós estaríamos em espantosas condições de inferioridade. Já por esse lado o nosso ensino seria miserável. Junte-se-Ihe a anarquia das greves dos cursos livres e dos feriados, sem falar na péssima preparação e falta de zelo de uma parte do professorado, e ver-se-á que o ensino entre nós NÃO É NADA.»

Levado ao exagero, reconhece, depois, calmamente, que as responsabilidades não cabiam ao governo de então, mas a muitos governos, para pedir «por amor do País» e com aplausos da assembleia, «que se ponha cobro a esta situação, que se tornou intolerável».

E, passado o tempo da acrimónia, remata a sua segunda intervenção parlamentar – que, como a primeira, nos chega pela deficiente reconstituição dos taquígrafos – dirigindo-se, com serena isenção ao Dr. Bernardino Machado:

«Sabe V. Ex.ª, sr. Presidente do. Ministério, V. Ex.ª que foi professor ilustre tantos anos, que a mentalidade nacional está cada vez mais baixa. E há-de reconhecer, com o seu talento, a necessidade impreterível de a elevar.

/ 44 / De contrário, onde iremos parar? Dediquemo-nos a esta obra, sobre todas benemérita, sobre todas patriótica

Volvida precisamente uma semana, e, assim, a 26 desse mesmo mês de Abril de 1921, tomando já familiaridade com o ambiente, perseverando em trazer a público o que as conveniências partidárias procuravam evitar, chama a atenção da Câmara e do Governo para os ataques de que vinha sendo alvo, no Rio de Janeiro, o embaixador de Portugal, que a imprensa brasileira e alguns membros da colónia portuguesa ali residente acusavam de actos pouco consentâneos da sua função. Nem só sobre esses factos incide a acerba crítica de Homem Cristo, mas contra o facto de o representante diplomático do nosso país não tomar clara e firme defesa de Portugal, nas reavivadas teses nativistas. A campanha reacendera-se e o deputado, em termos embora mais moderados que o panfletário, refuta-a com larga e concludente argumentação: «Sob este ponto de vista a nossa glória é sem igual. /.../ Ao mesmo tempo, quanto mais os anos decorrem mais se reconhece e admira a cultura e a ciência, a alta ciência, dos portugueses dessa época». Da do descobrimento e do desbravamento da terra brasileira.

Acusa contundentemente o embaixador Duarte Leite de não se dedicar sem tergiversação à tarefa patriótica de erguer bem alto o nome e o prestígio da sua pátria, prossegue com a peremptória condenação do procedimento que se atribuía ao nosso representante – a quem, aliás, já espontaneamente, defendera, com o seu habitual calor, em outro período da sua vida política.

E fazendo-se eco do que chegara ao seu conhecimento, conclui: «Pode esse homem continuar representando o nosso país no Brasil, depois de tudo o que fica relatado? O Governo e a Câmara que respondam. Apelo para os seus sentimentos patrióticos».

*

*   *

Em consequência do caso Liberato Pinto (a que fizemos alusão, tão sucinta como exige a natureza desta notícia que se não compadece com pormenores marginais) e por a favor daquele oficial e influente político se haver manifestado em meados de Maio uma larga parcela da G. N. R., surgiu uma crise política e com ela a queda do Governo.

Em “O de Aveiro”, o indomável director do aguerrido semanário comentava os acontecimentos com a sua vivacidade costumada e acrescentava (6): «Ainda há oito dias tive que aplaudir o sr. António José de Almeida (Presidente da República nessa data) e já hoje tenho que o censurar.

«Sou amigo do sr. António José de Almeida e não o sou nem do sr. Correia Barreto, nem do sr. Bernardino Machado, nem do sr. Álvaro de Castro. Mas a verdade é uma só, é que o sr. Correia Barreto e o sr. Álvaro de Castro andaram bem e que o sr. António José de Almeida andou mal»: Períodos antes escrevia: «Não quero com isto ofender pouco nem muito o sr. dr. António José de Almeida a quem dedico a mais profunda amizade. Estou repetindo o que cem vezes tenho feito na minha vida, que é pôr acima de tudo o dever cívico, quando ele se impõe de uma maneira imperiosa».

Punha praticamente termo, antecipado de dias, à sua carreira parlamentar, tão proteladamente encetada e tão abruptamente interrompida: «Anuncia-se já que alguns deputados não voltarão à Câmara. Eu sou um deles. Entrei ali de cabeça erguida, sem directa nem indirectamente o solicitar. Foi por simples respeito aos eleitores, contrariado, forçado, como quem ia cumprir, sempre o disse, uma pena. Não hei-de ser eu que lá permaneça numa situação humilhante...»

A curto trecho, o Parlamento foi dissolvido, e, assim, Homem Cristo não chegou a levantar de novo na Câmara, como tencionara e anunciara no seu jornal, a questão da greve académica coimbrã, da qual, dizia, «não foram só os estudantes que andaram ma!».

*

*  *

Nas eleições seguintes apresentou-se às urnas pelo Círculo de Aveiro uma lista extra-partidária, a denominada Aliança Regionalista, que englobava vários matizes. Compunham-na Jaime Duarte Silva, Manuel Alegre e Homem Cristo, como deputados e o dr. Augusto de Castro – não natural do distrito, mas de ascendência aveirense – como candidato a senador. O movimento regionalista – que mereceria ser recordado – saiu vencido pela coligação Egas Moniz – Barbosa de Magalhães. A campanha tomou calor acendrado, com «O de Aveiro» na vanguarda. Por largo tempo se mantiveram os ecos dessa luta apaixonada, e apaixonante, como a generalidade das pugnas eleitorais.

Não teve melhor êxito em Moçambique, nas mesmas eleições legislativas, para as quais, como sucedera em Timor, nem sequer teve conhecimento prévio da candidatura do seu nome. A iniciativa partira de vinte e cinco eleitores de Lourenço Marques «que se lembraram de apresentar o nome do Sr. Francisco Manuel Homem Cristo (pai), o erudito jornalista, hoje lido em toda a parte onde se fala a língua portuguesa – conforme diziam no manifesto de propaganda publicado em 1 de Julho. Uma breve justificação da escolha entre os títulos com que a justifica, termina por declarar: «Outra / 45 / causa nos leva a votar em Homem Cristo. O ilustre professor de História da Universidade do Porto e director de “O de Aveiro” não promete a ninguém os seus bons ofícios em qualquer negócio, empresa ou emprego, nem a sua influência se exercerá para abafar qualquer processo de sindicância, libertar criminosos e apadrinhar injustiças».

Não figurava em qualquer lista. Tinha sido apresentada a candidatura, «em tempo e modo legal», mas isolada. Deveria, pois, ser riscado o nome de outro qualquer candidato e substituído pelo seu. E a verdade é que, não tendo vencido embora, ainda assim, e apesar de se ter tomado como probabilíssima a eleição pela sua terra natal – que de certo preferiria no caso de obrigado a opção – conseguiu sair vitorioso nalgumas das principais assembleias de voto daquela província ultramarina.

Voltaria a ser eleito deputado em Janeiro de 1923, de novo candidato pelo agrupamento regionalista aveirense, desta vez vitorioso em luta não menos tenaz. Menos assíduo nessa legislatura do que na primeira de que fizera parte, absorvido com as suas fogosas campanhas, Homem Cristo não deixa, assim mesmo, de participar nos trabalhos da Câmara, e de intervir, uma ou outra vez, com a sua veemência insubmissa. As suas opiniões dissentem da maioria ou até da totalidade. Considera-se todavia, na obrigação cívica de as manifestar, ainda que desagradem ou destruam qualquer ideia estabelecida. Como algures dissemos, estar só não o coibia, desde que estivesse convencido de uma verdade. Em certas circunstâncias antes se queria só de que mesmo bem acompanhado.

Aliás, ele o proclamou: «Ninguém cultiva menos o favor público neste país do que eu, a antítese mais perfeita do engraxador que Deus tem criado». E completou: «Não lisonjeio os meus leitores, não lisonjeio os meus próprios amigos».

Em 12 de Março de 1923, volta a usar da palavra, para prestar homenagem a Basílio Teles, dois dias antes Falecido – «não para afirmar que foi um grande português e um grande patriota», qualidades de todos conhecidas, mas, como lhe estava no ânimo inquebrantável para ir à mão dos que pecavam por simples inexactidão, «para destruir a lenda da sua misantropia, e declarar os motivos por que ele se afastou da política da República».

Trazia o seu depoimento pessoal nessa breve intervenção no decorrer do preito que a Câmara prestava ao grande e incompreendido vulto republicano. E esse testemunho de algum modo infirma uma impressão vulgarizada acerca de um notável pensador, – de quem Júlio Brandão num folheto «in-memoriam»,assinalava com um «talento enorme que refulge aureolado por um carácter que se diria antigo. É de bronze e cristal essa figura estóica». Ao mesmo tempo proporciona-nos um ensejo para apreciar a forma do improviso oratório de Homem Cristo, na homenagem a um amigo, a que algum arrufo ocasional não ensombrou o velho afecto – «constante», como o próprio Basílio escrevia em 4 de Julho de 1922. Transcreveremos assim toda a parte final desse discurso, extraída da redacção obtida pelas notas taquigráficas:

 

DISCURSO DE HOMEM CRISTO NA CÂMARA DOS DEPUTADOS NA SESSÃO DE 12-03-1923

«Basílio Teles foi um homem de acção, por excelência. Afirmando que ele foi um trabalhador, V. Ex.ª afirmou, evidentemente, uma verdade. Desde 1877 até ao presente trabalhou sempre pelo desenvolvimento das ideias do País, pelo prestígio da República e pela grandeza da Pátria, sem descanso algum. Se, em 1910, não fez parte do Governo Provisório, foi porque o impediram. Nem mais, nem menos.

Basílio Teles fez-me muitas vezes as suas confidências. Ele, que toda a gente apontava como encerrado em sua casa, sem sair, não só me abria a porta de par em par, mas procurava-me na Faculdade de Letras para, ruas abaixo até à estação de S. Bento, me ir fazendo as suas confidências. Disse-me mais de uma vez: – «Em 5 de Outubro estava assente que eu seria Ministro do Interior. Encontrava-me em Paris, ocupado nos trabalhos revolucionários e, de repente, sem a menor satisfação aparecia Ministro das Finanças. Entendi que, tratado desse modo, me devia abstrair, mas depois procurei ainda avistar-me com um dos altos trunfos da República» – e o seu nome abstenho-me agora de citar – «tendo-me sido impossível trocar impressões com esse homem, o qual dispunha então absolutamente do movimento republicano.

Em seguida, procurou Basílio Teles uma outra individualidade que hoje desempenha altas funções na República, e da mesma forma viu inutilizados os seus esforços.

Desde que não podia ser senão um elemento secundário na política, natural era que se afastasse. Mas nunca Basílio Teles deixaria de anuir a todas as propostas que lhe fizessem para trabalhar pela reabilitação da República e por um melhor caminho para os destinos do País.

O que acontecia, porém, com Basílio Teles? Acontecia que era sempre convidado à última da hora. Vinha uma revolução, convidavam-no na véspera; vinha outra, sucedia o mesmo. E ele, que era um homem metódico, que era um homem de planos, não queria, naturalmente, aderir por tal forma a movimentos revolucionários.

Ainda na antevéspera do 19 de Outubro fui a sua / 46 / casa, a pedido de um chefe outubrista. Dizendo-se que Basílio Teles não abria a sua porta a ninguém, pediu-me esse chefe outubrista que o acompanhasse, pois que queria expor-lhe as ideias do movimento e convidá-lo para tomar a chefia.

– Vamos lá – disse-lhe –, mas, certamente, Basílio Teles não adere à tentativa que vão fazer, porque ela é feita sem um objectivo fixo, e ele não é homem para essas coisas.

Lá fomos. Basílio Teles respondeu exactamente o que eu previa, com uma grande lucidez de espírito, com grande conhecimento das coisas, acabando por dizer:

– «O melhor é desistirem desse movimento e empregarem todos os esforços para que ele não saia, porque, se sair, será mais um desastre para a Pátria.»

Nunca se encerrou, não digo na sua torre de marfim, porque se algum fraco tinha era o seu orgulho, mas de renúncia, levada a um extremo que não sei como definir. Vivia pobrissimamente e não havia forma de aceitar fosse o que fosse por mais que os seus amigos insistissem. Eles não sabiam mesmo como lhe haviam de falar a tal respeito para não o melindrar, porque, naquele estado de renúncia e de concentração, em que vivia tudo lhe poderia parecer uma esmola, e Basílio Teles não era homem a quem se pudesse dar a ideia de que, pela circunstância de não poder lutar com a vida, receberia qualquer coisa. Se lhe ofereciam um emprego, declarava-se sempre incompetente; de modo que era impossível arrancá-lo àquela miséria em que ia definhando o seu espírito.

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Aceite, porém, esse facto, o que é certo é que Basílio Teles – e era isto que eu queria afirmar – nunca, em época nenhuma, deixou de estar pronto a intervir em certas circunstâncias, e essas circunstâncias nunca se deram.

 

Postal de Basílio Teles para Homem Cristo

Infelizmente para ele, morreu com a maior amargura que pode torturar a alma de um homem – a amargura de ver o avanço da mediocridade que triunfou por todas as formas na República. Ele, um homem de tanto talento, viu-se preterido por quantos medíocres têm surgido; ele, um homem tão honrado, de uma honestidade verdadeiramente antiga, viu-se posto de parte por quantos exploradores têm aparecido nesta terra, desde 5 de Outubro. O seu ideal viu-o manchado. Assim foi fenecendo, fenecendo, fenecendo até desaparecer, encolhido na sua cama, anteontem de madrugada, como se ainda aí a perversão terrível em que se apaga o País o pudesse ir incomodar.

Sr. Presidente: Associo-me às palavras de V. Ex.ª, mas lamento que, em vez de dois minutos de silêncio, não tivesse V. Ex.ª proposto que se levantasse esta sessão em sinal de luto pela morte do grande português que era também um dos raríssimos republicanos históricos que ainda existem. Não vejo nesta Câmara um único republicano do seu tempo! Tudo isto é novo! Pode ser que eu esteja enganado, mas creio que não há aqui nenhum homem do seu tempo.

Uma voz: A principiar pelo Sr. Presidente.

O Orador: O Sr. Presidente é muitíssimo mais novo na política republicana, pois que apareceu em 1890, ao passo que Basílio Teles trabalhava pelo ideal republicano desde 1877, ou seja desde treze anos antes.

Por consequência, sendo um dos republicanos mais velhos de Portugal, tendo prestado tantos serviços à República, sendo um grande talento, a homenagem da Câmara devia ir mais longe que os dois minutos de silêncio, e esta sessão devia ser encerrada como manifestação de sentimento.»

*

*  *

A mais probante das intervenções parlamentares de Homem Cristo, e que alcançou foros de retumbante e verdadeiramente memorável, verificar-se-ia em 7 e 8 de Novembro de 1924, numa das mais tempestuosas sessões que em qualquer época se registaram na Câmara / 47 / dos Deputados – única, porventura, se considerarmos, que um orador, sem qualquer grupo que lhe desse algum apoio efectivo e fiel e, na circunstância, praticamente desacompanhado, encarou intrepidamente, a manifesta e concertada hostilidade da enorme maioria dos membros da Assembleia.

A questão que se levantara, tempos antes, na Faculdade de Letras do Porto e que opusera fundamentalmente Homem Cristo a Leonardo Coimbra, dera motivo a uma das exacerbadas campanhas do temível fundibulário aveirense.

Leonardo Coimbra foi atacado com a mais implacável e destemperada crueza, apodado com uma alcunha desprimorosíssima que ganhou voga, numa escalpelizadora análise da sua obra, sem continência nem o menor vislumbre de contemplação, numa longa série ininterrupta de números de «O de Aveiro». Confiado nas suas faculdades, tão evidenciadas e aplaudidas, de orador, deputado que também era, levou o pleito, imprudente e intempestivamente, para o Parlamento onde o ambiente lhe era afecto.

Acusou o antagonista cerrada e contundentemente, usando dos seus provados recursos tribunícios, com os quais, antecipadamente, escolhendo a arma que manejava com mestria e o campo para o duelo, que estimara como desigual, julgou irremediavelmente aniquilar o adversário, menos dextro e experiente nesse género de pugna a que o compelia.

A sensação generalizada no fim do exprobatório e mordaz discurso do director da Faculdade de Letras portuense, principal visado na campanha do panfletário, era a de que este ficara insanavelmente esfrangalhado e desmoralizado. Os membros da Câmara, sabendo embora que o polemista destemido, como o felino que não é mortalmente alvejado, reagiria com o mais imediato e intenso ímpeto, viram, meio estupefactos, que Homem Cristo, após um ataque tão eloquente e mordaz, lívido mas altivo, se levantou acto contínuo para ripostar aos altissonantes reptos do acusador com um insuspeitado e incontido denodo, e com uma imprevista e inabalada força de ânimo;

«Senhor Presidente: Acabo de assistir à sessão mais indigna de que há memória não só nos anais parlamentares deste pais, mas nos de qualquer outro pais do mundo civilizado. Se as palavras de infame insulto contra mim fossem dirigidas a outro, V. Ex.ª chamaria à ordem, pela certa, o orador: Mas como se tratava de um homem que tem as mãos limpas, num pais de ladrões.»

Era o primeiro arremesso do felino provocado – o «Leão de Arnelas» lhe chamavam, aludindo ao reduto onde residia, e em tons pretensamente ridicularizantes, os patrícios que lhe haviam sentido as garras sangrentas, na pele frágil. Mas era inconforme com as normas, inaudito de audácia e arreganho. De todos os sectores se elevaram clamorosos protestos, de estranheza compreensível, e de táctica, para abafar a voz incómoda.

O presidente, árbitro que não se impusera a impedir as primeiras contravenções às regras do jogo, intervém: – «Eu peço a V. Ex.ª que retire essa expressão.»

O orador, indomável, retira-a evasivamente: – «Dizer um país de ladrões, não significa QUE TODOS SEJAM LADRÕES. Sabe-o toda a gente, até aqueles que não têm exame de instrução primária.

Os protestos repetem-se, recrudescem, mas a minoria democrática, que, para significar a sua sobranceira hostilidade abandonara a sala, não resiste à curiosidade, e volta. E o inflamado orador, enfrentando a malquerença da assembleia, exclama: «– É extraordinário que um homem só, meta medo a tanta gente

As interrupções sucedem-se: – «Não pode ser. Não consentimos...». Homem Cristo, sem ceder um ápice, afronta a animadversão, eleva a voz acima do sussurro que não abranda: – «Não pode ser o quê? Eu é que posso dizer isso aos senhores! Eu é que estou aqui desempenhando uma missão de moralidade e de justiça. Já se esqueceram das horas de agonia em que, sob o látego do sidonismo, a minha voz era a única a ouvir-se e me aplaudiam

Alguém interrompe de novo: – «A única a ouvir-se?» – «Sim – retrucou o orador –, com altivez, sem medo e constante, a única a ouvir-se

O rumoroso ambiente acentua-se. O desforço, contudo não abranda de intensidade. A agitação, a balbúrdia atinge o extremo, mas Homem Cristo não se intimida nem acua. Alude ao facto de o seu acusador ter mostrado disposição de o esbofetear e comenta: « – Pobre dele, que lhe fazia saltar os miolos à primeira tentativa...»

E, como documenta o «Diário das Sessões», logo se levanta uma voz atónita: «– Então V. Ex.ª vem armado para aqui?»

O orador redargue:«Chegue-se cá, atreva-se, e eu lhe direi se venho armado ou não. O primeiro que avançar, queimo-lhe os miolos.»

À enorme agitação, já que nada detinha o arrebatado e contumaz polemista, que na tribuna afirmava a mesma descomedida violência que usava no jornal, seguiu-se uma relativa e progressiva calmaria, expectante. Alguns deputados não pertencentes à parcialidade mais numerosa, rodeavam Homem Cristo, que, sem interrupções, encetou a sua defesa, a desafronta máscula, atacando inclementemente, analisando ponto por ponto cada uma das acusações e voltando-lhes o gume acerado contra o querelador.

Fica nessa sessão com a palavra reservada. Retoma-a no dia imediato e fala durante duas longas horas e meia. Divaga, documenta e demonstra, floreteia, / 48 / brande o cajado e descarrega a maça; ironiza, braveja e vitupera; desvia-se porventura, da conexão e retoma o fio. Duas longas horas e meia, com as galerias repletas, sem qualquer mostra de arrefecimento, sem perder o domínio e antes vencendo o malquistado auditório que já o escuta: «– Os senhores devem estar um pouco admirados de me ouvir hoje falar com tanto desembaraço. Julgavam-me um patrazana, não é verdade? A falar e a escrever não sou pior, antes sou melhor, não digo do que o génio da raça, que com esse ninguém se compara, mas do que muitos outros que andam aí nas tubas da fama e nas asas da glória. Que me falta, para ser também um dos queridos dos que decretam as supremas honras do Capitólio?

Sabe o meu país (com energia) o que me falta? (com veemência) SER LADRÃO!»

No dia seguinte, um diário da capital, que lhe não era afeiçoado, mas dos poucos que não entraram na concertada barreira de silêncio com que se pretendeu abafar o efeito do aspérrimo discurso, comentava-o, assinalando que Homem Cristo «divagou em erudições que prenderam a atenção geral e teve uma eloquência que, sem ser formoso nas suas linhas, não deixou de ser solene na substância. Com todos os seus defeitos, num ambiente intra-câmara absolutamente hostil, conseguiu triunfantemente ser ouvido com interesse justificado. O panfletário revelou-se um orador didáctico talvez prolixo mas profundo».

Não é compatível com a natureza deste bosquejo rememorativo, como já atrás observamos, a transcrição de extensos trechos, mesmo os mais significativos, desse longo discurso, aliás integralmente publicado em «O de Aveiro» (7). Limitamo-nos a trasladar os períodos finais como demos os do início, como simples documento e curiosidade. E pelo contraste de bem humorada tranquilidade que estabelece em relação à investi da inicial:

«Meu irmão tinha uma pequeníssima fábrica de moagens em Aveiro; a que eu era alheio inteiramente. Um dia viu-se em dificuldades, e foi-me procurar a Coimbra, onde eu estava então, para me pedir um auxílio de dez contos de reis, que era tudo quanto ele possuía. Com esses dez contos de reis, ficando eu sócio da fábrica, e mais dois ou três auxílios do mesmo valor, equilibrava os seus negócios, dizia, e a fábrica andaria para diante. Dei-lhe o auxílio pedido e fiquei sócio da fábrica, mas sem ter na administração ingerência alguma. Durante uns poucos de anos, recebi desses dez contos, sem mais lucro nenhum, apenas seis por cento. Mas veio a guerra, constituíram-se empresas novas, e um dia apareceu alguém a perguntar-me se eu queria vender a minha parte por 155 contos. Julguei que era mangação. Quando vi que era a sério, não esperei que mo perguntassem outra vez. E sem me lembrar de que tinha de pedir licença ao sr. Leonardo, vendi.

Empreguei o dinheiro desta forma. Mandei fazer uma casa, que é medida de prudência, dada a enorme falta delas em todo o país. Mas para mim! Para eu viver! Que para alugar não cairia em tal tolice.

Custou-me a casa 72 contos.

Comprei 30 contos de acções da nova companhia.

Emprestei a meu filho 35 contos para o seu negócio. E o resto ficou de reserva, para chegar ao menos até à fronteira, quando tenha de fugir deste país!

Fora disso, vivo dos interesses honestos do meu jornal, sem despesas de redacção, e onde tudo o mais se faz com a máxima economia.

Meu filho ficou de me pagar oito por cento, e tem pago. Não me deve coisa alguma. Mas paga em livros, foi o contrato, o que diminui o juro, tendo ele, como tem, uma livraria em Paris, e no preço da viagem do comboio, quando lhe faço alguma visita. O comer paga-o ele. Sou seu hóspede. E está dito tudo! E aqui tem o sr. Leonardo como eu vou de graça ao estrangeiro. De graça, sr. Leonardo. Fique sabendo que vou de graça ao estrangeiro (Risos).

Meu filho tem automóvel. Tem muitos amigos que possuem automóvel, também, como ele. E eu percorro a França, vou onde quero, estudando e divertindo-me. É uma pândega rasgada, (Risos) sem eu, todavia, meter para isso as mãos nos cofres públicos, nem gastar as minhas economias.

O que peço a meu filho é que me obrigue o menos possível a smokings e casacas, que não me dou bem com isso (Risos). E que me não ponha no meio de senhoras, o que para um velho é um perigo. A gente, depois de velho, ouve pouco e vê pouco. É tudo pouco. Dizemos sim quando devemos dizer não, e não quando devemos dizer sim. E, não obstante eu saber falar francês, há percalços como este: Estando em casa de uma dama muito ilustre, agora condecorada com a Legião de Honra pelo governo francês, Madame Rachilde, perguntou-me ela em certo momento: «Está muito aborrecido, não é verdade, sr. Homem Cristo?» Ao que eu respondi de pronto e tom firme para ser maior a delicadeza: «Oui, oui, Madame» (Risos).

Sem isso, sr. Leonardo, tudo me corre por lá às mil maravilhas.

Vou concluir, dizendo ao meu país que ponha os olhos em mim. Diz-se aos rapazes novos a toda a hora: Não te metas em nada, deixa lá, que daí não vem pão à gente. Eu tenho-me metido em tudo. Eu tenho protestado contra tudo. Eu tenho sempre reagido. Há quarenta e cinco anos que sou uma voz constante de protesto / 49 / neste país. E estou vivo! E estou são! E ainda não me faltou pão para comer!

É mentira que a felicidade não acompanhe os que se batem pela verdade, e pela honra do seu país!»

Não está, no propósito do rabiscador e concatenador destas linhas relembrar em pormenor o que de justo ou destemperado motivou e visou esse incidente pessoal acendradíssimo, nem qualquer fim de recolha antológica do jornalista famoso que acidentalmente foi deputado.

Este discurso, que teve resposta franca, foi larga e vivamente comentado na altura. «Leonardo Coimbra ficou a escorrer sangue» na expressão de um evocador do memorável duelo parlamentar (8). Não há dúvida que o «complot» contra Homem Cristo resultou contraproducente. E Moreira de Almeida, no dia seguinte ao último acto da renhida luta, escreve em «O Dia»: «Ai, Sr. Leonardo Coimbra, mais lhe valia ter quebrado uma perna do que subir àquela tribuna».

Registamos essa oração reveladora de um fogoso e inflexível temperamento apenas como um dos casos mais singulares da nossa vida parlamentar, a que raros antecedentes congéneres se poderão apontar – como, salvaguardadas as diferenças de estilo, das personalidades e das circunstâncias, os de Garrett contra Rodrigo da Fonseca Magalhães, de José Estêvão contra Costa Cabral e alguns mais. No seu desmesurado e inultrapassado azedume e ímpeto, esse discurso constituiu sem dúvida o ponto culminante e o canto de cisne de Homem Cristo como deputado, e, dele, assim, damos duas passagens mais reveladoras – no auge da procela e na calmaria em que, já risonhos, alguns raios de luz rompem o cinzento das nuvens a clarear.

Esta esquecida e eventual faceta do jornalista eminente fica, assim, ainda que apressada e toscamente, esboçada. Não pretendemos com estas páginas desluzidas juntar novos louros à glória do grande e prestimoso aveirense. Ficarão singelamente como uma achega para a biografia de um homem individualizadíssimo, que foi medular e sobressalientemente um jornalista, inconfrontável pela sua singularidade temperamental e de processos, e um dos maiores que a Imprensa portuguesa tem evidenciado.

EDUARDO CERQUEIRA

__________________________________________

(1) – «O de Aveiro», n.º 202, de 20-3-1921.

(2)  Idem, idem.

(3)  «Jornal de Notícias», de 5-4-1921.

(4) – O de Aveiro» – n.º 205, cit.

(5) – O marechal francês Joffre, o generalíssimo italiano Diaz e o almirante inglês Dorien, quando da tumulação dos dois soldados desconhecidos na Batalha.

(6) – N.º 212, de 20-5-1921.

(7) – N.º 378 e 379, de 16 e 23 de Novembro de 1924.

(8) –Luís Barradas (Almedina) - «Homem Cristo e Leonardo Coimbra no Parlamento» 2.ª ed., 16 págs., Lisboa, 1941.

 

páginas 35 e 49

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