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N.º 8

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1969 

Estarreja no folclore e na saudade

Pelo Dr. Joaquim Soares Rodrigues da Silva

Advogado

 

Por várias razões já não corremos atrás dos foguetes. Custa-nos enumerá-Ias, até porque não é da falta de perna para correr o principal motivo da nossa decidida abstenção: o espírito ainda nos pede folia, o sangue ainda ferve e, o que chega às faces, também chega ao rubro, mas há que fazer o triunfo da vontade, dizer-se que não a muita coisa, para que não sejamos dos apontados por excessos e insensatez e para que não fiquemos fora de tempo, como os que dizem que a juventude é desvairada, nada faz de jeito, nada vale e em nada contribuirá para a sua valorização e para o engrandecimento das gerações futuras.

Todos os povos, cá e lá fora, se orgulham do seu passado e toda a gente aproveita com sofreguidão, com desvelo e comovida paixão, os mimos de beleza que as gerações passadas lhes legaram ou abandonaram à voragem do tempo, sorvedoiro sem remissão, que tudo traga!

Não são os doentes da beleza, são todos os que têm amor às coisas, todos os que se devotam à civilização, em qualquer dos seus aspectos positivos, e vêem na arte a única flor da vida.

Aos nossos escritores Teófilo Braga, Ramalho Ortigão, Almeida Garrett, Jaime de Magalhães Lima, Corrêa de Oliveira, Afonso Duarte, João de Deus, Trindade Coelho, Alexandre Herculano, que em prosa e verso tiraram inspiração do nosso povo, das suas romanzas e ditos e dos resumos dos seus feitos, para a criação de novos mitos, em que o Senhor é servido no meio da exaltação das virtudes nacionais, dois dos seus principais objectivos do seu precioso labor, a esses, como a todos os mais escritores nacionalistas, ninguém regateia louvores; e o seu merecimento os impõe como indiscutíveis mestres da nossa riquíssima literatura.

Mestres, astros, que ficam iluminando séculos fora, o seu labor não podem as gerações esquecer-lho e tem de ter-se como padrão, luzeiro, exemplo de nós todos, igualmente patriotas e à sua imagem e semelhança crentes devotadamente, posto que sem aversão às coisas novas, perscrutamos as antigas, para que se não obliterem, esfumem, acabem.

Ninguém dirá, com razão, que na sua terra não há folclore, não existe qualquer manifestação artística, em coisas ou em tradições, que valha a pena por ela se ocupar alguém ou uma agremiação. Somos dos que veneram os escritores acima citados e outros mais, que amaram e serviram, legando-nos em museu ou literatura, a sua notícia de amor às belas letras ou às belas artes, e mais que notícia, a obra feita ou reproduzida.

Foram aqueles criadores de novos mitos, que nos ensinaram essas outras formas de rezar, e é como quem reza que venho confessar que já não corremos a foguetes!... Mas que pena, que pena nos faz saber que as festas já são outras, ainda quando, como há milénios e sempre, estralejavam foguetes na nossa terra em clamor de festa!

Vem isto a propósito de, ainda pelo S. João e S. Pedro deste ano, eu estar no meu escritório, na Vila de Estarreja, e chegar-me à janela, em busca de ar mais puro, o ar de Junho, aqui um pouco húmido, mas suave, perfumado, que os nossos sentidos aceitam e tanto nos tranquiliza, ar que é mesmo repousante.

Dizia Junqueiro, quem se não lembra?!... «vinham-me da montanha as canções das ceifeiras»; e a montanha estava-me à esquerda, aos contrafortes, até Cambra, até ao Caramulo, enquanto para o mar, coaxavam rãs, / 28 / e toda a terra, até por entre as casas, nos jardins e nos campos e nos interstícios das calçadas, na sua verdura, nas plantas, nas flores, evolava para o espaço a fragrância inebriante, que ao meu coração, então puro, pagava, em repouso, o amor com que estava vivendo pelas coisas simples e belas.

Algures estralejavam foguetes, havia música, alguém festejava a quadra dos Santos populares, mas já não ouvi cantos, que seriam os nossos cantos tradicionais, outro tempo vulgares nestes dias, de boca em boca, a solto ou em conjunto apregoados, para animação de toda a gente e animação desta paisagem rica de cambiantes e ornamentos naturais e elanguescente de perfumes silvestres.

Ai há quantos anos, ainda como dizia o poeta, andava eu pelas nossas ruas, de rua em rua, com o rapazio da minha laia, Manel Nordeste, João França, Miguel Ascêncio, Zé Manquinho, João Ferraz, o Artur Tavares, os Ferreiros e muita mais malta, descalço, calção e alça, como o menino herói de Edmundo de Amicis e o não menos tocante de Victor Hugo, andávamos a saltar fogueiras, às fogueiras todas, ainda que enxotados, praguejados e ameaçados, senão zupados pelos maiores, e então não sentia o ar desta boa terra, não o vivia pelo coração e pelo espírito, que o calor era outro, como outra era a música e a vida!

As canções das raparigas e dos rapazes atroavam os ares, chamavam à vida, quem já tanto vivia, davam mais vida à vida, e davam o riso das gentes, que é a mais sã e uma fecunda expressão de paz; as danças entre eles, em que nos metíamos fugidiamente, e o gargalhar de todos e o lume crepitante das fogueiras imprimiam imorredoiramente em nossa alma a lição mansa das coisas e do desvelo que se lhes deve como matrizes do nosso carácter e civilização.

A esse tempo, os inúmeros esteiros da nossa região eram intensamente frequentados; neles circulavam imensos barcos e de Mira, Águeda, Aveiro, Ovar, as muitas coisas que iam ou vinham, todo o tráfego comercial de produtos da Ria, das lavouras e indústrias das redondezas, seguiam a via fluvial, a esse tempo, ainda havia barqueiros:

O meu amor é barqueiro,

Leva a vida a fazer frete!

Quando parte para a viagem

Diz-me Adeus com o barrete

 

Assim, e a roda, cantavam as belas moças, e com estas os rapazes, e todos em refrão:

 

Bate lavadeira, lavadeira bate,

Que as nossas cantigas não têm remate!

Não têm remate, remate não têm

Bate lavadeira, lavadeira bate bem!

 

E no Rio Antuã, que me está capaz de aparar comovidas lágrimas, de já lá não ir nadar, eu que nele aprendi a nadar nuzinho, só com os da minha idade, aos seis anitos, a esse tempo, esse belo rio tinha os seus pitorescos areais, que eram das mulheres corarem e secarem a roupa que lavavam e eram os nossos campos de bola e de jogo da pela, nossos estádios de atletismo, do vasto exercício pré e post natação, então para nós, que nadávamos quatro, cinco e mais vezes ao dia!... Meninos da beira-rio!

 

As lavadeiras do Rio,

Todas tiram o avental

Para fazer travesseiros

No meio do areal

 

E o refrão, cantado por todos:

 

Bate lavadeira, lavadeira bate!...

 

Os travesseiros eram para os filhos de colo, para os nossos irmãos, como para nós, um lustrusito antes!...

Mas o Antuã vai agora com muita água, que o verão antecipou o Inverno, esquecendo que o Outono havia de vir! E é certo que também o Outono e o Inverno têm aqui os seus encantos, mesmo no que toca a folclore, e eu lho haverei de trazer aqui, um dia, não longe, para que algumas riquezas de Estarreja não hajam de perder-se.

Iria ainda nas recordações da minha infância e das mil variadas canções que o povo cantava e já não canta, nem mesmo sufragando os Santos populares, mas comove-me tudo isto; as saudades nos cansam e, entretanto, pode ser que alguém nos ajude, um filho meu, ou vós, meus amigos, que adorais as boas e belas coisas e tendes o culto da Terra e haveis visto que Estarreja, por ora ignorada ou esquecida, é uma Terra grande, rica de seus valores naturais e rica de coisas humanas e até culturais.

É ver, andem comigo!

 

páginas 27 e 28

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