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N.º 6

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1968 

Para a História de Ovar

O Cabido da Sé do Porto defende os limites territoriais de Cabanões
contra Válega, Beduído, Arada, Maceda, Cortegaça e Mira

Pelo Padre Aires de Amorim



Pertencia a paróquia de Cabanões (mais tarde dita de Ovar) à Mitra e ao Cabido (1), todavia, por acordo entre ambas, passou, em 18 de Setembro de 1466, o seu padroado a ser da apresentação simplesmente do Cabido (2). Quanto aos seus frutos e proventos materiais, foram unidos à Mesa Capitular, por Bula de Paulo II, de 24 de Maio de 1468, executada em 27 de Outubro de 1470. (3)

Ovar e Válega eram da apresentação do Cabido, pelo que lhe pertenciam os dízimos, que, de três em três anos, eram arrendados em hasta pública pela Páscoa. Em 1790, o Capitão Manuel de Oliveira Camoça, de Aveiro, arrendou-os conjuntamente, por três anos, pela quantia de 8733$335 reis anuais – continuou no seguinte triénio por 8870$000 anuais e no de 1796 foram para José Pinto Machado, do Porto, por 9300$000 anuais – mas, além disso, tinha o arrematante de pagar «de propina» ao Cabido, até ao fim de Janeiro de cada ano, sessenta e quatro milheiros de sardinha escorchada, encanastrada e posta no Porto. (4)

Por causa dos seus interesses materiais em Ovar, teve o Cabido de sustentar grandes pleitos judiciais, do século XVI ao XVIII, com Válega, Beduido, Arada, Maceda, Cortegaça e Mira.

 

OVAR E VÁLEGA

Em 1540 começou uma questão, que subiu à «Corte de Braga» (Tribunal Eclesiástico), para onde apelou o Cabido, contra Gaspar de Resende – filho do Cavaleiro Fidalgo, Garcia de Resende, morador na Vila de Ovar – que, de há pouco, era «Reytor e Abbade» de Válega, não obstante ter menos de 20 anos, e bem assim contra o Comendador e cavaleiro Fidalgo da Ordem de Santiago, Belchior de Macedo, que, por Bula Apostólica, tinha as duas partes dos frutos da dita Igreja de Válega. A razão era esta: os Réus apoderaram-se indevidamente dos dízimos de certas ilhas, alegando que estavam dentro da sua paróquia.

Na sua alegação, dizia o Cabido, a igreja de Cabanões estava anexa in perpetuum à Mesa Capitular, pelo que nela percebia os dízimos, permícias, rendas, direitos e frutos. Cabanões «estava cita ao Norte e a Igreja de Vallega estava ao Sul e asim a Igreja de Abanca, e a de Vedoido, e a Igreja de Cabanões com a de Vallega com penção de partir o lemite de suas freguezias na terra e dali vinha ter a Cal da Agoa do Puxadouro que hera huma Cal de agoa tão larga de baixa mar como o Rio Douro e de preamar hera duas vezes tão larga como o dito Douro e dali por a Cal abaixo athe a Ponte de Rabe Rabe e da dita Ponte de Rabe Rabe não paçava o lemite da dita Igreja de Vallega a parte do Soão e Sul e o da Igreja de Cabanões para a parte do Norte e a dita Cal da Agoa vay athe a fos de Aveyro que são sinco legoas pouco mais ou menos o que o dito lemite da dita Igreja de Vallega como dito he chegava somente a dita Ponte de Rabe Rabe e dali não paçava nem a de Abanca nem a de Vedoido e do lemite da Igreja de Cabanões do Cabido Autor hera por a dita Cal abaixo da parte do Norte e chegava com lemite athe a Ermida de Nossa Senhora das Aréas que esta junto da Fos de Aveyro da qual Ermida levava a dita Igreja de Cabanões as ofertas», por estar dentro do seu território. (5)

A igreja de Cabanões estava em posse pacífica de colher o dízimo todo «de todas as Ilhas que se sempre lavrarão da dita Cal do Puxadouro da parte do Norte athe a dita Ermida e por ser seu lemite a freguezia o anno paçado do trinta e nove o Ilhote do Cabo de Ovar pequeno e o IIhote de Boellas que estava abaixo e do IIhote da Moraceira e o IIhote que chamão Laranjo e Lizira do Cu do Porco estavão de dentro da dita Cal do Puxadouro da parte do Norte athe a Cal e Ermidas das Aças (6) no lemite e freguezia da dita Igreja de Cabanões os quais IIhotes e Lizira / 22 / do Cu do Porco se lavrarão e frutarão novamente o anno paçado de quinhentos e trinta e nove» e onde os Réus foram colher os dízimos do trigo e cevada, cerca de 700 alqueires, no valor de uns 20$000 reis.

Na sua contestação, diziam os Réus ser Válega tão antiga, como Cabanões; as freguesias próximas de Cabanões, como Beduido, Avanca, Cortegaça e Esmoriz, estendiam seus limites até o mar em linha recta; os Ilhotes do Cabo de Ovar Pequeno, Boelas, Morraceira, Laranjo e Esteiro de Porcos estavam mais próximos de Válega e eram cultivados por fregueses desta e nunca o Cabido deles recebeu dízimo; a Ermida de N. Senhora, a Virgem, era sua sufragânea, «muito antiga e de muita romagem»; Cabanões tinha Vigário residente e os Abades de Válega «sempre estiverão auzentes da dita Igreja», com excepção da actual.

Replicou o Cabido «que as Igrejas de Cortegaça e de Esmoris não demarcavam os limites de suas Igrejas com a de Cabanões»; o limite desta sua freguesia passava da Cale do Puxadouro para dentro até à Ermida e os ilhotes da contenda estavam entre a Cale e a Ermida referidas; o Cabido percebia pacificamente o dízimo e os ilhotes estavam mais perpínquos de Cabanões! pertencia-lhe o dízimo do sal e do pão das Ilhas de Garcia de Resende, Rebordosa, Carvalhosa e Cabo de Ovar Pequeno; tinha posse de dizimar também nas ilhas de Ovar Grande, Mós, Marinha Nova, Morraceira e Raposeira; se tais ilhas eram fabricadas por fregueses de Válega, era tão somente por pagarem certo foro ao Conde da Feira.

Treplicaram os Réus, dizendo que a Marinha ou Lezíria de Esteira de Porcos, bem como outras (cujos nomes não menciona) lhe pertenciam; as Igrejas em demanda nunca se demarcaram nestas «Lezírias e terras da contenda com outras mais que o Reo demanda aos Autores (Cabido) em outro libello apartado que estavão contra o mar e herão e forão nos tempos passados prayas e borraceiras que não tinhão nenhum proveito e por isso se não procuravão de aproveitar nem demarcar entre si».

Por sua vez, os Réus moveram uma acção de reconvenção contra o Autor, argumentando Válega partia, em linha recta, para o mar: ia ter ao Puxadouro, que era limite e daí «hia pela Marinha novamente rompida da parte dos herdeiros de João dos Santos que se chamavão os muros de Sambujeiro e ao diante para o mar hia huma Marinha de Sal que hera de Jorge Pires que haveria sinco ou seis annos que hera edificada». Continua a demarcação pelas ilhas (ou marinhas ou lezírias – parece tratar-se de sinónimos) acima ditas, que o Cabido chama suas. Diz pertencer-lhe «a leira do Cabo de Aguião que partia da banda do Norte com a Marinha do Sal que fora de Pero Fernandes e jazia no meyo antre a dita Marinha dos Escudeiros (7) e do Cabo de Aguião»; há quinze ou dezasseis anos, lavrando-se o Cabo de Aguião, a Marinha Nova e outras lezírias, indo o Abade Brás Brandão, de Válega, receber o dízimo, «os Reos (Cabido) com ajuda do Senhor Conde da Feira (...) com bestas e armas e espingardas lhe defendião o dito dizimo e de o dito tempo para cá levarão o pão trigo e sevada que serião sinco mil alqueires que podião valer mais de quatro centos mil reis».

Por sua parte, o Procurador do Cabido, de novo, repetia as demarcações acima ditas. Dizia que, de tempo imemorial, o seu Constituinte levava o dízimo das ilhas da Cale do Puxadouro para a banda do Norte até à Ermida das Areias, pois se encontravam dentro dos limites de Cabanões.

Reconhecendo não lhes assistir justiça alguma, o Abade Gaspar de Resende e o Comendador Belchior de Macedo assinaram em 20 de Julho de 1542 a desistência da demanda, confessando que as ilhas da contenda pertenciam a Cabanões. Foram condenados nas custas – 3$174,5 reis – e a restituir ao Cabido a posse dos limites contidos no seu libelo (8). Passados dias, em 25 do mesmo mês, presentes os Capitulares e o Fidalgo Garcia de Resende, assinaram um contrato de perdão mútuo nas custas de diversas contendas havidas entre o Cabido e o Comendador de Válega. Perdoava também aquele as novidades que este tivesse colhido nas ilhas e lezírias de Ovar, desde que não ultrapassassem, no total, 160 alqueires de cevada e 20 de trigo. (9)

 

OVAR E BEDUÍDO

A ilha do Corvo, a da contenda, somente em 1542 fora, pela vez primeira, semeada, produzindo trigo e cevada. Como o Rendeiro de Beduído, João Fernandes, fosse lá dizimar, e continuasse a fazê-lo até 1545, instaurou-lhe o Cabido um processo junto do Vigário Geral do Porto, alegando que a ilha pertencia a Ovar. Outro tanto reclamava Beduído, pela boca do seu Comendador, Rui de Sousa, Cavaleiro da Casa Real, que procurou inibi-lo, trazendo a causa ao Vigário Geral de Lisboa, Dr. Cristóvão Teixeira, por ser Conservador da Ordem de Cristo, à qual pertencia o direito de apresentação daquela Igreja contendora. Dizia que Beduído partia com Avanca directamente até ao mar «por marcos e bulhõens», dentro de cuja delimitação ficava a ilha do Corvo, e lá tinha ido, de noite, dizimar, sem qualquer direito, o Rendeiro do Cabido, Tomé Fernandes, levando 29 feixes de cevada. Apelou, então, o dito Cabido para Braga, mas como o Núncio Apostólico o inibiu, chamando a causa a si, recorreu à Santa Sé, não tendo, porém, sido recebida a sua apelação pelo que veio perante a Nunciatura / 23 / Apostólica com embargos. De novo se sentiu na necessidade de apelar para a Santa Sé, que nomeou João Gonçalves, Tesoureiro da Igreja de Cedofeita, como Juiz Apostólico. Foi, então, absolvido o Rendeiro Tomé Fernandes e revogados as sentenças dadas em favor do Comendador, que foi condenado nas custas.

Daqui recorreu este à Santa Sé, mas não tendo sido recebida a sua apelação, conseguiu que a causa fosse julgada pelo Auditor da Nunciatura, Dr. João Pais, que o condenou simplesmente nas custas, por os limites de Beduído não irem além da Cale do Puxadouro, ao Contrário dos de Cabanões. De novo, recorreu à Santa Sé, mas viu confirmada a sentença, tendo de pagar as custas – 5$764 reis –, sob pena de excomunhão. A sentença final foi emitida em 28 de Janeiro de 1549. (10)

Simultaneamente com esta questão, e pelo mesmo motivo, trazia outra o Cabido contra o Rendeiro de Beduído, João Fernandes, no Tribunal de Ovar. Dizia o autor que era sua a Igreja de Cabanões, anexa à Mesa Capitular, pertencendo-lhe os dízimos; a ilha da contenda estava dentro dos seus limites, pelo que lá colhia o dízimo do pão, do gado, que vinha pastar da serra de Arouca, de Albergaria, do Monte do Muro, e do junco, de que se faziam esteiras; o Réu, com gente armada, colheu 60 alqueires de cevada, de dízimos, indevidamente.

Respondeu João Fernandes que a ilha era de Beduído, pelo que o Rendeiro do Cabido o tinha esbuIhado de 30 alqueires de cereal.

Replicou o Cabido que o Réu era casado, e por isso não podia possuir dízimos da Igreja, nem como feitor da de Beduído, que tinha Vigário e Comendador, pelo que não lhe competia acção de força; Válega, Avanca e Beduído iam até à Cale do Puxadouro, de forma que todas as ilhas e ilhotes que nela estavam eram de Cabanões: o dízimo do pão do Corvo era do Cabido, de que pagava, desde 1542, um quarto ao Conde da Feira, e bem assim das terras sitas dentro da Cale, por serem de Cabanões. O Réu apelou para Coimbra, sendo condenado nas custas –12$940 reis e na restituição dos dízimos, em 6 de Julho de 1547. (11)

Em 4 de Agosto de 1550, Fernão de Évora, Notário Apostólico, foi notificar Rui de Sousa, que morava na sua Quinta, na Caparica, a pagar as custas «e elle disse e deu em resposta que elle tinha gançadas certas custas contra o dito Cabido do Porto por outras sentenças que requereria que se descompençassem humas por outras», pelo que protestava não incorrer em excomunhão. Mas afinal o Cabido já lhe tinha pago tudo, de forma que, em 23 de Agosto de 1550, o Provisor do Bispado do Porto e executor da referida sentença eclesiástica de 28 de Janeiro de 1549 determinou que ou pagaria nesse mesmo dia ou se lhe passaria carta de excomunhão.

 

OVAR E ARADA

Se as pugnas entre Ovar e Beduído foram esforçadas e dolorosas, as que, agora, vão seguir-se, entre Ovar e Arada, são, além disso, numerosas e morosas. O Cabido vai defrontar-se com um adversário temível, qual é o Comendador de Riomeão, a quem pertence Arada e Maceda, da Ordem de Malta ou de S. João do Hospital de Jerusalém. O magno pomo de discórdia será este: Arada e Maceda terão praia de mar, ou não? Por outras palavras, Ovar confrontará ao norte com Cortegaça, ou não?

Foi o Comendador Fr. Bernardo Pereiro, Cavaleiro professo do Hábito de S. João do Hospital de Jerusalém que atombou os bens pertencentes à Comenda de Riomeão. Para tal, tinha-se feito representar o Cabido pelo Cónego João Pereira, sobrinho daquele. Em 1630, o Dr. António de Campejo (ou Sampaio?) Ribeiro, Juiz do Tombo da Comenda, julgou por boa e confirmou, por sentença, a demarcação entre Arada e Ovar, trazendo, com isso, grande prejuízo, tanto ao Cabido, como aos seus Rendeiros. Na costa do mar ficava Ovar sem mais de légua e meia de território e anualmente passava a ter, de menos 200$000 reis, de dízimas de pescado.

Eis o termo da demarcação:

«Aos vinte e três dias do mes de Março do dito anno de mil e seis centos e trinta annos no lugar dos moinhos de Maria Annes estando ahi o Lecenciado António de Campejo Ribeiro Juis deste Tombo logo ahi prezente elle juis apareceo o ouvidor do Conde da Feyra da Camera de Ovar, e Joam Pereira Conego da Sé do Porto e Procurador do Cabido e por elles fora aprezentado a elle Juis pera os louvados pera dizerem por onde hera a demarcação da freguesia de Ovar com a de Arada que he da Comenda o Pero Fernandes o velho e António João e Bastião João todos do lugar de Loural e pelo dito Comendador foi apresentado por sua parte a Pero Dias e a Pero Pires e António Domingues todos de Arada aos quais elle Juis deu o juramento dos Santos Evangelhos em que suas mãos puzerão e por vertude delle lhes mandou que bem e verdadeiramente declarassem por onde hera o partilha da freguesia de Ovar com a de Arada que da vea da agoa do Ribeyro da Arca Pedrinha sahia a Madeyra (sic) (12) de Sima dos moinhos de Maria Annes e logo ahi mandou elle Juis de concentimento de todos por hum marco que esta na linha do Monte fora da marca com a quina ao Poente que vai dar ao Forno da Cal por onde vai a dita partilha e do Forno da Cal do outeiro da vella agoa a Fonte do Carregal e / 24 / dahi direito ao Mar onde se não meterão marcos por ser acoitada e xarneca dos Condes da Feira e feita a dita demarcaçam por onde devidião as ditas freguesias em respeito dos dizimos que em algum tempo herão lavradas as ditas terras da dita xarneca e não a outro algum a respeito somente se meteo o dito marco asima da dita Madria de Maria Annes na dita Ilha atras declarada e não prejudicar a xarneca e coitada dos ditos Condes da Feira por ser como dito he sua de juro e asinou aqui elle Comendador e Juis e louvados com mais o dito Conego João Pereira e testemunhas a todo prezentes Manoel de Magalhães morador em Arada e Francisco Dias e Manuel António de Arada e o Padre Frey Pero Rodrigues Sardinha Vigario de Riomeão e Francisco Borges Cura de Arada que todos aqui asinarão leu Lourenço Teyxeira de Quadros Escrivão do Tombo o escrevi = Ribeyro = Bernardo Pereira = João Pereira = Lourenço Borges = Pero Fernandes = António João = Bastião João = Manoel de Magalhães = Pero Dias = Frey Pero Rodrigues Sardinha = António Domingues = Francisco Dias = Manuel António». (13)

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Por causa desta demarcação, vão, agora, começar a surgir graves litígios, pois Arada e Maceda passaram fraudulentamente a ter praia de mar e os dízimos do pescados desviados para Comenda. Em 30 de Julho de 1646, levantou-se a primeira contenda. O Cabido processou os pescadores Manuel Fernandes, Diogo Fernandes, António André, Domingos Martins, todos de Ovar, e Manuel de Magalhães, do Hábito de S. João do Hospital de Jerusalém, de Arada: este último tinha induzido e persuadido aqueles a pagarem-lhe o dízimo do pescado em certo ponto da costa do mar (que não se nomeia, mas entende-se ser a tal praia da Arada), e não o quiseram fazer ao Rendeiro do Cabido.

Contestando a acção, disseram os Réus «entre os mais bens de que esta de posse a comenda de Riomeam que ha o Bauleio Bras Brandam e seus Rendeiros e ffeitores bem asim he colherem e receberem ho dezemo do peixe que se arrasta no termo e Ilemete de sua comenda isto de mais de hum dous tres sinco e mais annos sem pessoa alguma lho prohjbir».

Disse Manuel de Magalhães foi como feitor do Balio que recebeu o dízimo, por terem os ditos pescadores arrastado suas redes e chinchorros nos limites da Comenda.

Argumentaram somente pertencia ao Cabido o dízimo do pescado, desde a Barra de Aveiro «em lhe chegar a desmarcassam da freiguezia de Arada no que toqua hao mar e pescandosse fora dos ditos Ilemites nam tem posse de receber nem cobrar dezemo allgum no lemite da frejguezia de Arada e Maceda que sam da comenda de Riomeam que he do dito Bras Brandam nem numqua ho cobraram antes».

Mais alegaram, pretendendo o Cabido, há sete ou oito anos, dizimar do pescado, no limite das freguesias da Comenda, Manuel de Magalhães, como Procurador do Balio, demandou os pescadores pelo dízimo e por acharem que o deviam à Comenda, confessaram que o queriam pagar, pelo que o feitor continuou na cobrança e posse que tinha. Se o Cabido cobrava os dízimos no limite da Comenda, era à força e ameaçando com censuras. E, sendo Rendeiro do Cabido João Dias Galego, de Avanca, e querendo cobrar dos pescadores, nos limites agora em questão, Manuel de Magalhães «ho fez munir por hum monetorio do colleytor como conservador da comenda pella forssa que o dito Rendeiro queria fazer a quall vendo que estava convenssido dezestio e nam tratou de cobranssa allgum.».

Foram condenados os Réus, em 18 de Abril de 1653, como se vê pela sentença seguinte:

«Consta que a Meza Capitular dos autores pertencem os Dizimos dos fruitos novidades e pescados que os moradores e freiguezes da sua Igreja d'Ovar cultivam e recolhem ou pescam em que nam ha duvida e estando de posse de receberem por si seus remdjros e feitores os ditos Dizimos de todo o peixe arrastado e pescado pelos seus freiguezes da dita Igreja os Reos hum como procurador do comendador de Riomeam os mais como dele emduzidos lhe nam quezeram paguar os ditos dizimos perturbando aos autores em a posse que tinham valemdosse o dito procurador do comendador de Munitorios que fizeram mais notoria forssa e violencia contra os autores o que elles nam podiam prevenir pellos meos que se apontam por parte dos Reos que em qualquer tempo negaram os dizimos aos autores contra elles cometeram forssa nem os Reos ficam escuzos de a cometerem por dizerem que os Reos e os mais moradores do Var freiguezes dos autores arrastam o pescado nas terras da dita Comenda porque as praias e terras nam sam has que dam o peixe de que se pagam os Dizimos se nam ho lear e imdustria dos pescadores que estam sugeitos ha Igreja de que sam freiguezes pera nela paguarem o Dizimo do que ganham comtra o custume e posse que os autores justificam da sua parte nam podiam os Reos sem consentimento dos ditos autores adquirir posse alguma o que visto com o mais dos autos despocissam de direito julguo terem os Reos huns e outros cometido forssa comtra os autores asim o Procurador do Comendador Manoel de Magalhães como os mais contra quem esta Cauza se jmtentou que procede via ordinaria ou por Restituicam com sedula aos autores os quais mando que os Reos Restetuam a dita sua posse com todas as / 25 / perdas e damnos que na execussam se liquidarem e Custas dos autos. Porto dezoito de Abril de seis centos e sincoenta e tres». (14)

Como se vê, a sentença não dirimia o problema dos limites territoriais, diz simplesmente devem pagar os dizimos a Ovar os seus pescadores, «porque as praias e terras nam sam has que dam o peixe de que se pagam os Dizimos se nam ho Mar e imdustria dos pescadores que estam sujeitos na Igreja de que sam freiguezes».

Na forma da sentença, foi Manuel de Magalhães notificado para dar posse ao Cabido e em 27 de Maio, nas notas do Tabelião da Feira, Domingos Homem Soares, lhe largou e deu a dita posse. (15)

Outro tanto fizeram Manuel Fernandes Lé (ou Olé), Diogo Fernandes e António José Paulo, nas notas de António Cardoso Sanches, de Ovar, restituindo a «antigua pose que tem (o Cabido) de receber por seus Rendeiros, e efitores os dizimos de toda a sorte do mar». (16)

Em 4 de Junho, Manuel de Magalhães, que com os outros réus, tinha sido citado pelo Tribunal da Relação, nomeou um procurador para a liquidação da sentença havida «aserqua dos disimos do peixe que os pescadores dOvar pesquão na freguesia dArada». (17) É caso para dizer: vencido mas não convencido!...

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Simultâneo com este litígio, correu outro contra o mesmo Manuel de Magalhães, que terminou no Tribunal da Suplicação, em 1657, por causa dos dízimos da Ribeira do Sobral e outras terras.

Disse o Cabido no seu libelo estar de posse dos dízimos de Ovar, desde tempo imemorial e os moradores do lugar de Sobral lhe pertenciam, bem como a Ribeira do Sobral, no limite da freguesia; há quatro anos, o Réu tinha-se intrometido violentamente a colher os dízimos das terras desta Ribeira, bem como da terra chamada Senhorinha, sita no limite da freguesia, de que os Rendeiros do Cabido estavam em posse pacífica e imemorial; nunca o Réu, os Rendeiros da Comenda de Riomeão, cobraram os dízimos do terço da Ribeira do SobraI, nem de Senhorinha, tanto antes, como depois de feito o Tombo da Comenda, senão há quatro anos; sendo sempre os Rendeiros a colher os dízimos, nunca souberam do esbulho, senão em Setembro de 1643, avisados por João Dias e Baltasar de Resende, que traziam a dita renda por dois anos, a começar no S. João do dito ano de 1643.

Na sua contestação, disse o Réu que o Comendador de Rossas, Frossos e Riomeão, Fr. Bernardo Pereira, fizera Tombo da Comenda, demarcando as suas terras, sendo julgado por sentença, e na demarcação fizera-se o Cabido representar por seu Mestre-Escola, o Cónego João Pereira, em 23 de Março de 1630. Portanto as partes litigantes estiveram presentes na demarcação da Ribeira do Sobral.

Quando foi Comendador Fr. Bernardo Pereira, os seus Rendeiros cobraram os dízimos das terras, sitas dentro da demarcação de Arada, «como herão as que confrontavão com a Senhoria (sic) e que para a banda de Arada direito athe a praya do mar das quais se lhe pagara sempre o dito dezimo em quanto se lavrarão porque muitas dellas estavão ia hoje aruinadas».

A terra de Senhorinha fora sempre dizimada pelo Cabido e há dois ou três anos tinha o Réu dizimado aí «huma pontinha piquena que importaria hum alqueire de dízimo», por julgarem os lavradores que estava dentro da demarcação de Arada.

No S. Miguel de 1645, tinha o Cabido dizimado toda a terra da Senhorinha, incluindo a «pontinha piquena», pelo que não podia intentar contra o Réu uma acção de força.

«A Ribeira do Sobral fora tambem demarcada no dito tombo e do Rio que por ella vay se fizera também menção e asim e as terras que estavão de huma e outra parte pagarão dizimos a ambas as freguesias e se os lavradores pagarão algumas ao Reo que não tocava sempre a Comenda estava prestes para restituir na forma de suas ofertas».

Não era verdade ter o Réu dizimado a Ribeira toda, porque o Cabido tinha recebido mais de três partes e se a Comenda recebera o restante fora porque aos lavradores parecia serem dela.

Além das terras velhas da Ribeira do Sobral, havia muitas novas que se foram rompendo e ajuntando, alargando os lavradores os valos para dentro da freguesia de Arada, e das ditas terras sempre a Comenda colhera os dízimos, depois que se lavraram, sem o Cabido tem posse nelas.

Usara o Autor de dolo, quando dissera no libelo estava de posse de toda a Senhorinha e da Ribeira do Sobral, pois as terras novas eram de Arada, ainda que fossem lavradas por lavrador de Ovar.

Quando os dízimos da Comenda eram colhidos, não se diziam quais as terras que os pagavam, mas mandavam os colhedores procedessem os lavradores, segundo a sua consciência.

Os autos foram julgados no Porto, em 2 de Junho de 1647, pelo Corregedor do Cível, Dr. Francisco Monteiro de Leiva, ficando o Réu absolvido: «Provasse que havendo devidas sobre a demarcação entre o Cabido da Sé desta Cidade e o Comendador de Riomeão da Ordem de Malta se fes medição e demarcação da forma do dito tombo pelo qual se mostra que estas partes / 26 / devide hum Regato que comessa da lica (sic) pedrinha e vem para a vista de hum Marco que esta defronte do moinho de Maria Annes o qual está direito pela veya da agoa ao forno da cal que está no mesmo Regato e dahi por diante para o mar a outeiro de vella agoa por entre a praya e o regato direito ao dito mar o que tudo visto e o mais dos autos conthendo na dita visturia e como se mostra a divizão com clareza absolvo ao Reo do pedido pelos Autores e paguem ex cauza as custas dos autos».

Apelou, depois, o Cabido para o Tribunal da Relação do Porto, mas em 2 de Maio de 1655 viu confirmada a sentença e condenado nas custas. Recorreu, então, ao Tribunal da Suplicação de Lisboa, que, em 17 de Junho de 1657, deu a sentença seguinte:

«Aggravados são os Aggravantes pelos Dezembargadores dos Aggravos da Relação e Coza do Porto em confirmarem a Sentença do Corregedor do Civel em que absolve ao Reo da aucção de força e esbulho pelos Autores intentada revogando sua Sentença vistos os autos pelos quais se mostra que os autores e a sua Meza Capitular por si e seus Rendeyros estavão em posse de muitos annos de cobrar os dizimos da Ribeyra do Sobral e terra da Senhorinha dos freguezes da Igreja de Ovar de que o Reo Manoel de Magalhães se intrometera porcoza e violentamente a cobrar os ditos dizimos como Rendeyro da Comenda de Rio meão e freguezia de Arada o que o Reo não nega porem dependesse com que a dita Ribeyra do Sobral e terra da Senhorinha são pertenças da dita Comenda e estão dentro de sua demarcação feita pelo Juis do tombo sendo ouvido o Procurador da Mitra que deu Sentença em confirmação da dita demarcação porem como a dita Sentença he dada por Juis leigo nunca por ella podia paçar em cauza julgado o direito dizimal que he meramente espiritual e a decizão delle pertence ao Juizo Eccleziastico e sòmente podia dezimir a demarcação dentro da qual se pode pagar os dizimos a Igreja de diferente território havendo posse bastante de os cobrar como os Autores mostram e estavão largamente e pelos autos como nelles se tractava somente do processorio para que este Juizo he competente particularmente sendo intentada a aucção dentro do anno e dia o qual anno he util e não corre senão do tempo da ciencia do esbulhado por ser asim conforme o direito e como se não mostra que os Autores tivessem noticia deste esbulho antes do dito anno e a ignorancia se prezume quando se não prova o contrario sempre se deve declarar que esta acção foi intentada em tempo legitimo particularmente implorando os Autores o benefício da restituição o que visto e o mais dos autos despozição de direito julgo haver o Reo e seu Assistente cometido força e esbulho no recolhimento dos dizimos das ditas terras de que se tracta e mando sejão restituidos com perdas e damnos e lhe rezervo seu direito da propriedade para juizo competente e pague o Reo os autos. Lisboa dezaseis de Junho de seis centos e sincoenta e sete = Pinheiro = Lemos = Privado». (18)

Pinheiro e Privado são os Desembargadores, Drs. José Pinheiro e Jorge Privado de Faria.

Uma vez mais, ganhou o Cabido a contenda, todavia, também nesta, nada decidiu o Tribunal quanto aos limites territoriais. Sentenciou que não aproveitava ao Réu ter sido o Tombo da Comenda julgado por Juiz, pois tendo sido este leigo, faltava-lhe competência para decidir do direito dizimal. Quanto ao direito de propriedade, podia o Réu recorrer a Juízo competente.

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Neste mesmo ano de 1657, teve o Cabido no Tribunal da Relação do Porto uma questão contra D. Fr. Bernardo de Noronha, Cavaleiro professo da Ordem de Malta e Comendador de Riomeão, a quem, depois, sucedeu na Comenda e no pleito Fr. Lopo Pereira Lima (19) É o candente problema dos limites. Apelava da demarcação sentenciada pelo Juiz do Tombo em 1630, não obstante terem decorrido tantos anos.

Razões do Cabido:

«Prouaria que a antiga e uerdadeira demarcação entre os freguezes de Ovar e Arada e Maceda fora sempre pelo alto da Madria da agoa da Arca Pedrinha e dahi ao alto do Monte Sobreiro e deste ao de Fonte de Canas e deste ao Marco Redondo que se não achaua e dezião ser furtado e deste ao outro que estaua quebrado e deitado de fronte do outro do Morangueiro e dahi pela xarneca e costa do mar que estestaua no lemite e Facho de Cortegaça donde hia correndo por toda a costa do mar para o sul athe a Barra de Aueyro aonde chegaua o lemite da dita freguezia de Ovar».

Dizia que esta demarcação sempre se observara athé à feitura do Tombo de 1630, e Arada e Maceda, tanto antes, como muitos anos após esta data, nunca tiveram Costa de Mar, nem pescaria que aí se arrastava, nem dizimavam do peixe, pelo contrário este direito era cobrado pelos Rendeiros do Cabido, desde Cortegaça até à Barra de Aveiro.

«Prouaria que as freguezias de Ovar, e Cortegaça estauão muito chegadas do mar e sempre na Praya o dizimo da pescaria delle partirão huma com a outra e não com a Comenda de Riomeão e suas anexas, Arada, e Maceda que estavão muito mais metidas pella terra dentro e nunca de tempo antigo levarão dizimo algum do peixe da Praya do mar».

Alegava que, segundo a antiga e verdadeira demarcação, as terras da Ribeira do Sobral, Carregal e Senhorinha / 27 / estavam dentro dos limites de Ovar, pelo que pagavam ao Conde da Feira o Oitavo, como quaisquer terras de Ovar, e as da Comenda não estavam oneradas com tal.

«Provaria que tudo quanto hera destricto e jurisdição do Concelho de Ovar tudo hera tambem destricto da freguezia de Ovar e ainda hera mais dilatada que o Concelho porque se extendia ao lugar de GuiIhonai que hera do Concelho de Pereira e costa do mar que contestava em Cortegassa de que sempre se pagarão os dizimas a dita freguezia de Ovar athe o tempo que o dito Tombo se fizera e inda muitos annos depois».

Mais alegava que pela demarcação sentenciada em 1630 se tinha tirado a Ovar «mais de huma legoa e meya pela Costa do mar e mais de tres legoas de terra em cerco e tudo isto se dera as anexas da dita Comenda sem de antes se terem couza alguma na dita Costa e terras», o que tinha acarretado a Ovar um prejuízo em dizimos de 100$000 reis.

Naquela demarcação dissera o Comendador Fr. Bernardo Pereira «fazia o dito Tombo pera os Requerimentos e milhoramentos e não para prejudicar as demarcações antigas e dizimos» de Ovar, no que houve «dolo simulação e fraude. Confirmava-se isto mesmo, pelo facto do Cabido não ser inquietado nos dizimos, durante uns oito ou dez anos, após 1630, mas somente quando Manuel de Magalhães se intrometera a dizimar do pescado. O mesmo dolo houve quando foram enganados os louvados e Procurador do Cabido, dizendo-lhes, que a nova demarcação não prejudicava os dízimos e direitos de Ovar, antes beneficiava os seus moradores, pois os isentava de pagar o Oitavo ao Condado da Feira e os encargos do Concelho.

Concorreu nesta partilha fraudulenta o escrivão do Tombo, Lourenço Teixeira, parente do Comendador. Era também seu sobrinho o Cónego João Pereira, que por ele se deixou enganar...

Contestando o libelo do Autor, apresentava longa defesa do Comendador e Réu:

«Provaria que a mais antiga e verdadeira confrontação de que todas as mais demarcações nascerão entre a freguezia de Ovar e Arada que herão as que ambas partião e circumvezinhavão e que se conservavão a dita demarcação de Arca Pedrinha Marco que demarcava com a freguezia do Souto e com a de Travanca e com a de Ovar e com a de Arada pela veya de agoa da Ribeyra da Arca Pedrinha sahia a Madria de Sina dos moinhos de Maria Annes e dahi pela veya de agoa ao Forno da Cal e dahi ao outeyro da Vella Agoa e Souto do Carregal e dahi direito ao mar esta hera a verdadeira antiga demarcação entre as freguezias de Ovar e Arada que se acordava nem ouvera outra mais que esta entre as ditas freguezias como constava da mesma demarcação e sentença dada sobre ella».

Mais afirmava que outra demarcação nunca houve antes ou depois do Tombo de 1630, e se o Rendeiro do Cabido dizimou alguma vez do pescado no limite da Comenda, foi porque os Comendadores andavam ausentes, em defesa da fé cristã, pelo que não podia prescrever seu direito, sobretudo estando o Tombo julgado por sentença.

«Provaria que a freguezia de Cortegaça e Maceda estavão mistos e juntos que tinhão terras que partião a vara huns com outros e estavão em sua altura e Costa do mar e Arada da mesma qualidade em rezão que da igreja de Arada não havia caza athe o mar e algumas mais terras da mesma freguezia e Comenda e seria meya legoa da dita freguezia ao mar e pela parte do nascente ficava a freguezia de Arada e nunca a freguezia de Cortegaça com Ovar partio pam nem peixe nem couza alguma por se meter entre elles as freguesias Maceda e Arada partindo Maceda com Cortegaça e Arada com Ovar».

Disse também se não havia marco até ao mar, era por haver muitas coutadas e por ter o Conde da Feira pedido a Fr. Bernardo Pereira os não metesse, com receio de um dia outros Comendadores impedirem a caça; não obstante, se tais montes e terras um dia fossem lavradas, pagariam dizimo a Arada, pois lhes pertenciam.

«Provaria que que (sic) nunca ouvera Marcos que se achassem a que se podesse dar fe que podessem fazer demarcaçam com Arada e Ovar mais que o da Arca Pedrinha pela veya da agoa ao Forno da Cal e dahi ao Outeyro de vella agoa e Fonte do carregal e dahi direito ao mar e não havia outra demarcação nem na houve entre a freguezia de Ovar e Arada Comenda de Riomeão e o Marco de que o Reverendo Cabido se queria ajudar para a sua menos verdadeira demarcação em que esteve de fronte do outeiro do morangueiro demarcava com hum Marco que estava junto a Sernacheira e dahi a outro que estava entre Alegonches de Jogal e dahi outro que estava a Fontinha do valle que hia para a Fontinha do valle e de Pereira de Bouças e dahi a Pedra de Armar a qual demarcação demarcava entre Maceda e Arada anexas da Comenda de Riomeão como se julgara na demarcação por Sentença que hera a apelada ha vinte e sete annos pois fora demarcada e confirmada a dita demarcção no anno de seis centos e trinta».

Alegava, ainda, os lavradores que lavravam as terras do Carregal ora da Comenda, se pagavam o Oitavo ao Conde da Feira, não era por tal deverem, mas para evitarem litígios com «pessoas poderozas». Nem se metiam em demandas os Rendeiros, pois não iam defender à sua custa o que não lhes pertencia, e os Comendadores andavam ausentes. E se pagavam, / 28 / seria porque o Ouvidor da Feira, Lopo Soares de Albergaria, usou de força com eles. Mas as terras da Arca Pedrinha até ao Forno da Cal não pagavao tal ração, apenas o dízimo à Comenda.

Mais. Vindo o Vigário Geral do Porto em 1657 a Ovar arrendar os dízimos desta igreja, pediram-lhe os Rendeiros mandasse pôr balizas, para evitar dúvidas com Arada e saberem o que podiam cobrar. Então o Vigário Geral mandou que o local fosse visto pelos louvados – foram António Rodrigues Galo e Amador Jorge, ambos de Ovar – e pelos Rendeiros do Cabido e Comenda. Alinharam por um pinheiro no outeiro da Senhorinha e outro na costa do mar, por onde se vê ser boa a antiga demarcação da Comenda, que dava a Arada cerca de uma légua de costa marítima.

E a dita demarcação era tão verdadeira que fora feita perante os louvados do Cabido, Câmaras de Ovar e Feira, Conde, Comendador e Frades da Feira, Senhores da igreja de Travanca, Abades de Espargo, S. João de Ver, assistiram e a houveram por boa. Portanto não houve dolo e malícia da Comenda, antes poderia presumir-se tal coisa da parte do Cabido. Nem este estava de posse das terras da contenda, nem dos dízimos dos cinchorros, pois dantes os não havia, nem tais terrenos se lavravam por serem montes e paus.

Impunha-se uma vistoria ao local em questão, cujo acórdão do Tribunal da Relação do Porto, pronunciado em 31 de Agosto de 1661, só três anos após, em 28 de Abril, teve execução. Foi feita pelo Desembargador, Dr. Duarte Ribeiro de Macedo, com o escrivão Baptista de Sá, e juntamente os Advogados das partes, Drs. Gonçalo Ribeiro de Sousa e Cunha, pelo Cabido, e Manuel Nunes Franco, pela Comenda.

Começou-se no Monte de Alpedrinha, – onde «achara (o Desembargador) que as ditas pedras da Arca Pedrinha hera demarcação das freguezias do Couto e Arada e a que estava declarada no Tombo viera elle Desembargador vendo pello mesmo Monte a vista do valle da Madria e Arca pedrinha aonde nascia hum Ribeyro que tinha entre o Monte e Arca Pedrinha e o Monte Sobreiro athe o lugar donde estava o moinho de Maria Annes e achara que ambos os ditos Montes herão agoas vertentes para o dito Ribeyro e valle e viera ao meyo que estava na fralda do Monte Sobreiro que hera da Contenda e hera uma pedra grande que tinha huma Cruz da Ordem de S. João com a hera de mil seis centos e vinte e nove e estava posto na fralda do dito Monte agoas vertentes da freguezia de Arada para o Rybeiro e com huma testa a quina para o Nascente demorando o citio dos moinhos de Maria Annes e a outra quina a face demarcando ao forno da Cal das terras da dita Ribeyra que se lavrarão e asim as que ficavão para Arada pagavão dizimas permicias (...) e logo dahi fora elle juis ao Forno da Cal que se desse dahi a andar ao Outeiro da vella agoa e Fonte digo que estava sobre o Carregal e dahi direito ao mar com que se ouvera por vista a demarcação declarada no Tombo da Comendo e por quanto o artigo de nova razão primeiro do Reverendo Cabido continha que a demarcação hera pelo alto da Madria da agoa de Arca Pedrinha e dahi ao monte Sobreiro (...) e do alto do Monte Sobreiro ao de Fonte de Caves e deste ao Marco Redondo que se nam achava e dezião ser furtado e deste ao outro que estava quebrada e deitado de fronte do outeiro de Morangueiro que ficava na Area sobre o mar e o dito Dezembargador por lhe ficar mais perto donde acabara a visturia da Comenda asima dita atravessara a xarneca junto a costa do mar que hera perto de huma legoa ao citio defronte do dito outeiro de Morangueiro aonde achara huma pedra terria e lançada no chão que tinha quatro palmos e meio em comprido e tres de largo e que junta della não havia outros nem havia mais no cítio por onde andarão e dali fora elle juis para a xarneca que tudo hera chão e Monte ao citio da Fonte das Cabes por se não achar no sitio do Marco Redondo de que se tractava as Cauzas concedidas as appelantes já dahi foi elles juis ao Monte Sobreiro donde se descobria o Monte da Arca pedrinha e citio delle e vira elle Dezembargador que esta demarcação hera o meyo da xarneca e ficava direita de Fonte Pedrinha mas muito desviado do Marco do Tombo da contenda de que se apelara e logo pelo Procurador do Reverendo Cabido o licenciado Gonçalo Ribeiro de Souza foi dito que protestava como protestaria e tinha no princípio daquella visturia della não prejudicar a seus Constituintes porquanto elle se achava certo sempre de quem o informasse nem processara os autos e logo pelo Procurador do Comendador foi dito que protestava que a chamada demarcação em que se fundava o Reverendo Cabido não prejudicar em couza alguma a demarcação da dita Comenda e que requeria em Juizo da Cauza mandarem dar vista as partes pera apontarem de direito e o Dezembargador lhe mandou tomar seus protestos e que se fizessem os autos concluzos (...)».

Requereu, em seguida, o Procurador do Cabido, dizendo que no auto da vistoria faltara declarar «que no citio do Forno da Cal e agoa vella por onde se alleava que era a demarcação da Comenda não havia Marco nem sinal algum de que fosse demarcação nem donde estava metido o Marco sobre que corria letigio athe o mar e que o Juis da villa de Ovar acompanhara ao dito Dezembargador por toda a demarcação do Reverendo Cabido levando sempre a sua vara alçada por ser isto notaria por onde estava a dita demarcação (...)».

Então o Réu, Comendador Fr. Lopo Pereira de Lima, dizendo que há dois dias tivera conhecimento da sentença / 29 / da demarcação de 1630, pediu fosse apensa aos autos e se lhe desse vista.

O Tribunal da Relação do Porto pronunciou, em 27 de Janeiro de 1665, a sentença seguinte, favorável ao Cabido:

«Acordão os do Dezembargo &ª. Não deferem aos embargos visto o treslado da Cauza digo visto o estado da Cauza e forma da Sentença dada nos autos apenços, e deferindo sem embargo delles apellação interposta, não foi bem julgado pelos Juis do Tombo em haver por boa e confirmar por Sentença a demarcação feita no anno de seis centos e trinta entre a Igreja de Arada pertencente a Comendo de Riomeão e a Igreja de Ovar unida im (sic) perpetuum a Meza Capitular declarando começar no Ribeyro de Alpedrinha e hir pela veya da agoa a Madria do Moinho de Maria Annes onde meterão Marco e dahi ao Forno da Cal continuando ao Outeiro da Vella Agoa e Fonte do Carregal direito ao mar dizendo que não metião mais Marcos nas ditas partes por ser coutada xarneca de juro dos Condes da Feyra declarando outro sim que dividião e demarcavão as ditas freguezias a respeito dos dizimos se em algum tempo se labrassem as terras da dita xarneca e não a outro e que sómente a esse fim metião o dito Marco anulando e revogando a dita demarcação e sendo vistos os autos provas dadas sobre os artigos de nova rezão recebidos Sentenças e mais documentos juntos e como se mostra ser o direito dos dizimos e questão sobre a propriedade delles meramente espiritual cujo conhecimento compete privativamente ao Juizo Eccleziastico sem os louvados nem o Juis do Tombo se poderem intrometer nella nem fazerem a declaração referida sendo seculares e incompetentes e no contrario procederão nula mente como se julgou na Sentença da Suplicação dada sobre o processo em favor do Cabido e visto outro sim fazerem a dita demarcação e porem o Marco sem procederem Justificação nem se juntarem documentos alguns por onde legitima mente constasse da posse e direito que estas partes tivessem como hera necessário e posto que pelas testemunhas do apellado se prove ser a demarcação sobre dita e antiga e verdadeira e a que se observou entre as ditas freguezias comtudo pelas dos apellantes se prova o contrario e ser a mais antiga e esta a que o Cabido articula que comessa no alto do Ribeyro da Arca Pedrinha indo pelo alto do Monte Sobreiro ao Marco Redondo e dahi as mais partes declaradas pelo Cabido athe o Facho de Cortegaça e outro sim se mostra pelas mesmas testemunhas e pelas Sentenças deste Sennado e da Suplicação estar a Igreja de Ovar em posse de cobrar todos os dizimos das terras da Ribeyra do Sobral de ambos as partes e do Carregal e Senhorinha e o dizimo do peixe que se toma no mar do Facho de Cortegaça athe a Barra de Aveyro na qual posse está de tempo muito antigo asim antes da demarcação apellada como depois della feita athe que os Rendeyros Feitores e Procuradores do Comendador Violenta mente os comessaram a pedir e cobrar sobre que o Cabido juntou várias forças em que teve por si as Sentenças referidas pelas quais tem acquerida a posse dos ditos dizimos sem os Comendadores terem alguma sobre que possam fundar seu direito. Mostrasse mais estarem as ditas terras e Praya do mar demarcados dentro do termo e território do Concelho de Ovar onde as lustiças exercitão sua lurisdiçam em tudo o que pertence a seus officios e ficar a freguezia de Arada fora da dita lurisdição e estarem outro sim as ditas terras e Praya dentro da xarneca que os mesmos Louvados declarão no termo ser de juro do Conde da Feyra das quais se paga ao dito Conde o direito do Oitavo como das mais terras da dita freguezia de Ovar sendo que os moradores de Arada e Maceda o não pagão das suas terras e ficão sendo de diversa natureza e qualidade de que tudo rezulta prova bastante para se anular e revogar a dita demarcação como não legita mente feita em prejuizo da posse do Cabido que he a que principal mente se concidera nas ditas demarcações julgão e declarão por nulla e não legitima mente feita a dita demarcação e mandão que por ella se não faça obra nem pela Sentença em confirmação della dada e que o Marco posto se levante e seja o Cabido conservado na posse em que está athe se fazer outra demarcação sobre que as partes requererão pela via que milhor lhes parecer e condemno ao apellado nas custas delles de ambas as instancias. Porto vinte e sete de laneyro de seis centos e sesenta e sinco = Souza = Ribeyro».

Daqui se infere que o Juiz do Tombo não julgou bem e se considera nula a demarcação de 1630. Ovar e Cortegaça são limítrofes na praia pois Arada e Maceda não têm acesso ao mar. No Tribunal da Primeira Instância tinha perdido a questão o Cabido. No da Relação ganhou, sendo o Réu condenado nas custas de ambas as Instâncias. Não se conformando, recorreu o Comendador ao Tribunal da Suplicação, que proferiu o acórdão seguinte:

«Não he agravado o agravante pelos Dezembargadores dos Agravos da Relação do Porto Cumprasse Sua Sentença por seus fundamentos e o mais dos autos e o agravante pague as custas delles Lisboa quatro de Novembro de seis centos e sesenta e seis – Lampreya – Tem tenção do Doutor Francisco da Crus Freire». (20)

Lampreya é o Dezembargador Dr. João Lampreya de Vargas. Tinha terminado mais um renhido pleito com a vitória do Cabido, mas o futuro reservar-lhe-ia outros. / 30 /

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Decorridos quinze anos, em 1681, ainda não tinha o Comendador de Riomeão cumprido as Sentenças, acabadas de transcrever. Tendo conseguido o Cabido uma Provisão real, em que se nomeava o Tribunal da relação do Porto, para fazer a execução, e estando vaga a Comenda, foi o Administrador das Comendas, Francisco de Sousa de Meneses, citado para as audiências de 16 e 30 de Maio, sendo julgado à rebelia, por não ter comparecido. O Juiz, Dr. José Nogueira Galvão, Cavaleiro professo da Ordem de Cristo, «mandou que hu escriuão fosse ao sítio e lugar do marquo, e que este fosse leuantado a custa do Comendador», (21) mas tal não chegou a executar-se, senão em 1698. Então em 6 de Setembro, «no monte que esta iunto as quintas nouas», termo de Ovar, compareceram o tabelião, Gabriel Pereira, de Ovar, os Procuradores do Cabido, Dr. Luís de Magalhães. Arcediago de Oliveira, Dr. Manuel de Sousa Félix, e Domingos Rodrigues da Silva, de Esgueira, como Procurador do Comendador de Riomeão, Fr. Gabriel de Castilho, Cavaleiro professo da Ordem de Malta, e todos nomearam seus louvados, para que «deuidicem e dicessem onde era o alto do Ribeyro de arca pedrinha e o alto do Monte sobreiro e o Marco Redondo que fiquoa nas areas e tudo na forma de sentenssa que alcanssou o dito Reuerendo Cabydo da Çee do Porto contra o dito Comendador».

Protestaram os Procuradores das partes que «em todo o tempo que quoalquer de sseus constetujntes se achassem prejudicados na dita deuizão lhe não prejudicaria Gsta louuação».

Ajuramentados aos Santos Evangelhos, «diçerão os ditos louuados que o Ribejro de Arca Pedrinha era o que estaua per sima das calas de sobrado de Antonio Fernandes da Villa de Ovar e o alto do Monte Sobreyro era logo o que estaua junto do outeyro das possas das lagoas de Arada que fiqua pera o sul deste em direytura ao Marco Redondo».

A louvação foi aceite pelas partes, porém o Cabido requereu fosse levantado o marco que ainda estava caído. desde 1666, e se conservasse judicialmente na posse, segundo a demarcação antiga, reconhecida pela sentença da anterior contenda. Em 6 de Setembro de 1698, foi ordenada a posse e em 9 o Juiz de Ovar pronunciou a sentença:

«Julgo a detremenação e declaração dos louuados por minha sentenssa defenitiva e pera sua ualidade lhe emtreponho minha authoridade e decreto judicial e paguem estas partes as custas de permejo em que os condeno Uilla de Ouar noue de Setembro de mil e seis sentos e nouenta e outo annos Bernardo da Sylva».

Ao ser empossado o Cabido na sua «antiga e uerdadeira demarcação», já ninguém sabia onde ficava o Marco Redondo. E nem admira. pois já em 1665 se dizia não existir no sítio, parecendo ter sido furtado, quanto mais agora em 1698. passados tantos anos...

Eis o auto de posse:

Saibão quoantos este publico instrumento de posse dada por uertude da Sentença junta uirem que no anno do nassimento de nosso Senhor Jezu Christo de mil e seis sentos e nouenta e outo annos aos onze dias do mes de Setembro do dito anno no outeiro de Arca pedrinha que he do termo desta Uilla de Ouar que he Uilla terra e iurisdissão do Conde da Feira Dom Fernando Forias Pereira Pimentel de Menezes e Silva Conde e Senhor da dita Uilla e de outras e no alto do Ribeiro de Arca pedrinha onde eu tabelião fui uindo ahi pellos louuados conthendos na sentença junta meterão hum marco de pedra de gram com hum letreiro aberto que dis Cabido e Ouar na direitura deste meterão outro marco da mesma pedra de gram e com o mesmo letrejo no alto do monte Sobreiro e destes marcos e das terras que fiquão pera a banda do sul que pertencem a esta freguezia meti de posse ao Reverendo Arcediago Luís de Magalhais como procurador bastante do Reuerendo Cabido; e pellos ditos louuados não saberem onde era ou estiuesse o marco redondo o Reverendo Arcediago e Antonio de Soa rendeiro do Comendador pautoarão do alto do monte Sobreiro ao do morangueiro que fica além da charnequa do Conde de Fejra e se mandarão meter dous marcos emqouanto se não sabia onde hera o marco redondo e por não estar prezente.

Domingos Rodrigues da Silua procurador do dito Comendador pera ambos de dous desidirem por louuados onde estiuera o dito marco Redondo e que emcoanto se não declarasse onde estiuera o dito marco se não acabaua acabaua (sic) a dita demarcassão e dos ditos dous marcos de Arca pedrinha e do de monte Sobreiro e das terras que ficão de dentro da dita demarcação pera esta freguezia tomou posse o dito Reverendo Arcedeago em prezenssa do dito António de Soa rendeiro do dito Comendador que a não jmpedio nem outra pessoa alguma e na dita posse o ouve aqui... por emuestido e encorporado nela de que tudo fis este auto que asinei o dito Arcediago e de que forão testemunhas Domingos Gomes Campos e Antonio Jorge de Carualho rendeiro dos dezemos desta freguezia que todos aqui asinarão eu Gabriel Pereira tabelião que escreui e me asinej de meu publiquo sinal que tal he Luis de Magalhaes Domingos Gomes Campos Antonio Jorge de Carualho Em fee de uerdade Gabriel Pereira». (22)

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/ 31 / Novamente a Comenda de Riomeão atombou os seus bens, pois, em 2 de Maio de 1702, era escrivão do Tombo Manuel Fernandes da Maia e Juiz do mesmo, o Dr. António Dias Alves, Cavaleiro professo da Ordem de Cristo e Provedor de Esgueira.

Tendo Domingos Rodrigues da Silva, Procurador do Tombo da Comenda, o tal que não esteve presente (com boa ou má fé?) à identificação do Marco Redondo, como atrás se viu, requerido ao sobredito Juiz mandasse fazer a demarcação entre Arada e Ovar, o Cabido da Sé, citado, passou em 30 de Abril procuração para o Cónego Luís de Sousa de Carvalho o representar. Diz este não ter dúvidas em fazer-se a dita demarcação, «na forma en que já tinha feito e levantado Marquos pella parte do Reverendo Cabido, na forma de huma Sentenssa que contra a dita Comenda e seus Comendadores tiveram na Soplicasam de Lisboa, que se deu a Execusam em nove de Setembro de Mil seis centos noventa e outo», tendo-se, então, levantado «hum Marquo no monte de Arqua Pedrinha que cordeia direito ao outro que se meteo no alto do monte Sobreiro junto ao outeiro das alagoas de Arada do qual cordeia dereito a huma pedra que esta narea do mar que serve de Marquo a que se chama o marcuo Redondo».

O Procurador do Tombo, de harmonia com a Sentença da Suplicação e execução da mesma, requereu ao Juiz «mandasse meter Marquos por esta Comenda junto aos que estavão postos pello dito Reverendo Cabido» e protestou «de en todo o tempo se requerer sobre o dereito que a dita Comenda tem, e lhe pertenser nos Dizimos da Sardinha e mais pescado da Costa do Mar, quanto abrange por aquella parte a dita freiguezia de Arada, e a da Maçeda, tudo pertensas desta Comenda como antigamente cobrava de que o Reverendo Cabido se achava de posse». É sempre a Comenda vencida, mas não convencida, a sonhar com uma frente de mar para Arada e Maceda, por causa dos dízimos do pescado!...

Mais disse o procurador do Tombo que, entre o marco do Monte Sobreiro e o Marco Redondo, tinha o Cabido levantado mais dois extrajudicialmente, pelo que pedia visse o Juiz se estavam todos na mesma direcção e, não estando, os mudasse.

Segundo o auto desta demarcação de 2 de Maio de 1702, foi posto um marco de granito com a cruz de Malta «no alto da Arqua pedrinha junto a Estrada que vai de Espargo pera Cabanonz e pera Ovar», encostado ao marco do Cabido. Outro idêntico levantou a Comenda, no alto do Monte Sobreiro, também encostado ao do Cabido. Outro, metido extrajudicialmente, se via no pinhal de Maria Gonçalves, junto à Corga forca e, «por se achar que estava algum tanto metido pera os bens desta Comenda e propreedades dei Ia», foi, de comum acordo, mudado mais para o sul, ficando encostado a ele o da Comenda. Outro extrajudicial do Cabido tinha sido posto na Charneca. O da Comenda foi levantado «junto a Estrada da Charnequa que uaj de Arada pera Ouar de fronte do Monte do olho Marinho», na direcção do do Cabido, «mais pera baixo pegado a Estrada». A demarcação terminou «na area do Mar junto a huma pedra branca que ahj esta a que chamam Marquo Redondo», segundo a Sentença da Suplicação, sua execução e louvação. Aqui ficou posto o último marco da Comenda.

Pelo Procurador do Cabido foi também dito respondia à pretensão da Comenda sobre os dízimos do pescado «com a sentensa de que fiqua feito mensam, e con outras que o Reuerendo Cabido tinha alcansado sobre forssas que deram e sobre a Propriedade».

Pelo outro Procurador «foi dito que sobre as mesmas sentenssas he que tinha feito o Proptesto de que em nenhum tempo seriam em prejuizo desta Comenda e seus Comendadores e de requererem o direito que tiuessem contra as ditas sentenssas». (23)

Finalmente a última contenda entre Ovar e Arada!

Tinham sido mudados uns marcos divisórios, com prejuízo do Cabido, pelo que, em Janeiro de 1739, se demandou a Comenda. Era Procurador do Autor o Licenciado Francisco Pinto Brandão e o escrivão Bernardo Pereira Campos, da Vila da Feira.

O Cabido requereu fosse citado o Comendador de Riomeão, ou seu tutor e pai, D. Sancho Manuel de Vilhena. A uma carta do Deão, respondeu dava ordem aos seus Procuradores para amigavelmente se reporem os marcos, mas tanto estes, como o Cura de Arada e outros (24) procuraram enredar e nada se resolveu.

Em carta para o Cónego Sebastião de Prada Lobo, dizia, em 28 de Novembro de 1744, o Advogado do Cabido: «D. Sancho deyxou nomeado tres procuradores para a cistirem á tal louvação e já com a premeditação de que hum o não pudece faser sem os outros; hum destes hera o p.e Manuel Alves dos Santos Cura de Maceda e o p.e Jacinto Cura de Arada outro; estes mancebos comem os lombos aos seus freguezes e a Papa de D. Sancho e porisso a hum e outros querem faser servissos, e estam acerrimamente teymosos em que se não há de faser a reposição dos Marcos na forma da sentença de V. Mercês do anno de 702». (25)

A sentença a que alude esta carta é a da última demarcação.

Em 1745, ainda corria o pleito. Era, então, Comendador de Roças e Riomeão D. Fr. António Manuel de Vilhena, que vivia em Malta, mas aqui tinha como Procurador, o Comendador Fr. Manuel Távora e Noronha.

Parece que a esta contenda se refere também outro manuscrito, (26) com documentação de 1751 a 1767: os / 32 / marcos mudados estavam no Monte Sobreiro e Corga Enforcada. E porque da mudança só beneficiava o Cabido, foi julgado pelo Tribunal da Vila da Feira, em 20 de Fevereiro de 1767, como tendo sido ele quem praticou o delito e condenado nas custas. Ignoro se tal sentença aquietou os ânimos, ou se foi, como noutras vezes, degrau para subir mais alto, pedindo justiça.

No final de tanto contender, torna-se claro que, de longa data, Arada e Maceda pretenderam alargar suas fronteiras até ao Oceano, mas sem direito. Se ignoramos como se pôs termo a esta última e demorada questão, sabemos, por outro lado, que em 1765 Cortegaça e Ovar se demarcaram como limítrofes, o que não aconteceria, se as freguesias referidas da Comenda avançassem até ao mar. Os mesmos direitos do Cabido foram mantidos, quando este processou o Vigário de Mira em 1780, como adiante se verá, provando-se, então, que a freguesia de Ovar ia do marco que a dividia com Cortegaça, até à barra ou foz velho.

 

OVAR E CORTEGAÇA

Corriam autos no tribunal eclesiástico do Porto entre os Abades de Esmoriz e Cortegaça, por causa dos dízimos do pescado da praia, pelo que, em 22 de Outubro de 1664, o Vigário Geral, Dr. João Rodrigues de Araújo, querendo fazer uma vistoria do local em questão, deslocou-se a Cortegaça. Foi aqui «nas casas de Domingos Martinz estalagadeiro» (27) que se encontrou com o Arcediago de Oliveira, João de Araújo Costa, Procurador do Cabido, e Miguel Rodrigues, Abade de Cortegaça, que disseram desejar fazer a demarcação da praia do mar, para evitar, assim, quaisquer dúvidas entre os Rendeiros dos dízimos de Ovar e Cortegaça. Mandou-lhes, então, ver o local com os louvados, concordando, depois, todos amigavelmente que a divisão «héra no areal chamado as cabarneiras que hé abaixo do outeiro donde esteve o facho de Cortegaça algum tempo e depois, o mandou tirar a Condeça da Feira, e tornara por no outeiro antigo donde antes estava, e que ahy no ditto areal das cabarneiras, que estava no baixo do ditto outeiro deçendo delle pera a parte de Ovar, ahy se devia pôr a ditta devizam, e marco pera os dizimos de peixe da praya do mar somente». O termo de composição foi julgado por Sentença do Vigário Geral. (28)

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Dividia as duas freguesias um marco «na Costa do Mar em o citio do Morangueiro» e não havia «outra divizão alguma na dita Costa». Ora em 3 de Setembro de 1696, Manuel Rodrigues, Manuel António e suas mulheres, de Cortegaça, bem como o respectivo Rendeiro, Manuel João e mulher, de Silvalde, foram-se ao marco divisório, derrubaram-no, mudaram-no e meteram balizas, tomando, deste modo, «grande parte da Costa» de Ovar, no que prejudicavam António Pais Chaves, Rendeiro de Ovar.

A questão foi julgada no Juízo de Correcção do Cível da Relação do Porto, em 28 de Junho de 1697, pelo Desembargador Corregedor Manuel Ferreira, que condenou o Rendeiro de Cortegaça em tirar as balizas, restituir os dízimos indevidos, reparar o marco e pagar as custas.

A reposição do marco fez-se judicialmente em 28 de Agosto do mesmo ano, de que lavrou o respectivo auto o tabelião Gabriel Pereira, estando o Cabido representado pelos seus Procuradores, Cónegos Domingos Gonçalves Prada e António de Sousa de Magalhães, Arcediago da Régua. Foi metido um marco de granito «na dita Costa no sitio do morengejro», confrontando com outro também granítico, «que fica polia parte do nassente defronte do pinhejro chamado do Alcajde adonde se devide frejguezias de Cortegassa e Maceda».

O Abade de Cortegaça esteve presente com o seu Rendeiro à reposição do marco e não contradisse a posse do Cabido. (29)

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Por se encontrar caído no sítio das Caverneiras em que estava, quiseram amigavelmente o Cabido representado pelo Dr. Francisco Pinto Brandão e pelo Solicitador José Inácio de Brito e o Abade de Cortegaça, João Pinto Barbosa, levantar o marco da praia, posto em 1664, e colocá-lo mais para nascente trinta e oito varas de cinco palmos «pera lhe nam chigar a Mare cordiando com outros marcos que estam asima que devidem a dita Freguezia de Cortegaça com a de Maçeda pella terra por nam ter a dita Freguezia de Maçeda costa de mar». A procuração do Cabido é de 5 de Dezembro de 1764. A reposição do mesmo marco de 1664, com esta data gravada, foi executada em 5 de Setembro de 1765. Do lado do norte, lê-se «Couto» e do Sul «Ovar».

A sentença da demarcação, proferida pelo Juiz Ordinário do Cível no Couto de Cortegaça, em 5 de Setembro de 1765, é esta:

«Julgo o termo retro de repozisam do marco por minha sentença defenetiva e para major vallidade sua lhe emtreponho minha autoridade e decreto indicial que mando se cumpra como nele se contem e paguem os suplicantes as custas dos Autos de premejo e se / 33 / paçe sentença a quem a pedir Couto de Cortegaça e de Setembro sinco de mil e setesentos e sesenta e sinco annos» Asesor Manoel de Oliveira Baptista = Domingos Alves de Magalhaies». (30)

Nestes autos se diz que «esta Freguezia de Cortegaça só mente parte com a freguezia de Ovar pella Costa do Mar».

 

OVAR E MIRA

Em 1 de Outubro de 1779, encontrava-se, «no sítio da Barra termo desta villa» de Ovar, para demarcar a costa, o Desembargador António de Lousada Silveira, dos Agravos da Casa da Suplicação, com o escrivão de Ovar, António Brandão Coelho de Melo. Foram postos três marcos altos de pedra, junto à Barra, com a inscrição «Ovar – 1779», voltada ao norte e «Mira – 1779», voltada ao sul. Protestou, então, o Procurador do Cabido, Dr. António José Pereira Zagalo, que por esta demarcação ficava fora a Barra e o rio, de que a Mesa Capitular recebia os dízimos do pescado. Deste modo, Ovar ficava sem duas léguas de Costa marítima. O Desembargador não mandou escrever tal protesto, «por que elle não vinha demarcar a dita freguesia nem descedir sobre o dizimo da Igreja so sim demarcar e devedir as terra (sic) dos dois conselhos de Mira e Ovar». (31)

Foi só então, quando desta delimitação, que o Cabido soube que os seus direitos estavam a ser espoliados pelo Vigário de Mira e pelo Rendeiro do pescado da Rainha Mãe, e isto desde há anos.

Em Maio de 1775, começou o Vigário de Mira, «que por nome não perca», a colher violentamente o dízimo do pescado que saía da costa do mar de Ovar, impedindo o Rendeiro do Cabido com pistolas, espingardas, bacamartes, fisgas e outras armas contundentes, metendo-o na cadeia e tirando-lhe o pescado. O Vigário andou nesta posse abusiva até Outubro de 1779. É de 11 de Abril de 1780 uma inquirição judicial de oito testemunhas, que disseram pertenciam à Mesa Capitular pacificamente os dízimos de Ovar, e a sua demarcação, pelo poente, ia do marco que a dividia com Cortegaça até à barra ou foz velha. Uma das testemunhas, p. ex., António de Oliveira, de Ovar, «disse sabia pelo ver e conhesser que o destrito desta Villa ocupa pela parte do mar, e poente desde o marco que devide esta freguezia da de Cortegaça the o sitio da barra, ou fos velha, e nesta posse sempre se conservou com os seus rendeiros, e de perceber os Dizimos de todo o pescado do mar praya que porta no destrito desta freguezia, e tão bem do que não aporta sendo pescado pelos nasionais desta Villa».

Depuseram ainda que Manoel de Oliveira Camossa, Rendeiro do pescado da Rainha Mãe, espoliando o Cabido em Maio de 1777, e daí até ao presente, tem obrigado a ir aportar a Aveiro o dízimo do Cabido, fazendo-lhe pagar tributo, contra o imemorial costume, em que estava de o transportar para onde quisesse, livre de pagar direitos. Assim se perdia o pescado, por se deteriorar, e a renda dos dízimos baixava, por causa destes prejuízos. (32)

Em 22 de Maio de 1780, o Cabido processou Manuel de Oliveira Camoça, que foi julgado em Aveiro. Em 19 de Fevereiro de 1781, confessou o Réu a sua falta de direito, prometendo não mais tornar a coagir o pescado do Autor a vir aportar a esta ou aquela praça. A sentença tem a mesma data de 19 de Fevereiro de 1781 e é contrária ao Réu. (33)

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Já é ocasião de pôr ponto final nesta longa teia de demandas que noutros tempos foi urdida, perturbando a paz da boa vizinhança dos povos, em defesa dos limites territoriais de Ovar e direitos do Cabido.

Os dízimos eram fonte de múltiplas questiúnculas – por vezes graves, como vimos – mas, abolidos pelo Governo Liberal de D. Pedro, nem por isso deixaram de aparecer novas desinteligências territoriais, para cuja solução importa conhecer o passado.

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NOTAS:

(1) – Arq. do Distrito do Porto – Cartório do Cabido, n.º 751, fls. 3 e segs.; fls. 9 e segs.

(2) – Cabido, 753, fls. 671 v. e segs.

(3) – Cabido, 820, fls. 60 e segs.; 10, fls. 19 v. -20.

(4) – Cabido, 1549.

(5) – Esta «bela Ermida» foi, depois, surripiada pelas gentes de Aveiro, cujo pleno direito fundavam na simples tradição. Cf. J. F. Teixeira de Pinto. – «Mem. e datas para a hist. da Vila de Ovar», 1959, pgs. 64.

(6) – Leia-se «Ermida das Areias».

(7) – A Marinha dos Escudeiros e a do Cabo de Aguião não são salinas, mas marinhas salgadas ou de pão. Cfr. Cab., 777, fls. 38 e segs.

(8) – Cabido, 777, fls. 66 e segs.

(9) – Cabido, 778, fls. 267 v. e segs.

(10) – Cabido, 777, fls. 145 e segs.

(11) – Cabido, idem, fls. 194 e segs.

(12) – Leia-se «Madria».

(13) – Cam., 777. fls. 107-108 v.

(14) – Cab., 764, fls. 302 e segs.

(15) – Ibid., fls. 313.

(16) – Cab. Ibid., fls. 315-316.

(17) – Ibid., fls. 317 e 319.

(18) – Cab., 777, fls. 213-226 v.

(19) – Faleceu em 31 de Março de 1681 e tem seu túmulo no Mosteiro de Leça do Balio. Cfr. Pe. Arnaldo Duarte – «O Mosteiro de Leça do Balio» – Porto, 1940, pgs. 23.

(20) – Cabo 777, fls. 98 e segs.; e 758, fls. 267-269.

(21) – Cab., 758, fls. 152-155 v.

(22) – Cab., ibid., fls. 142-150.

(23) – Cab., ibid., fls. 270-274 v.

(24) – «Cura de Arada, e outros semelhantes, que vivem com os viloens» – Cab., 749, fls. 55 v.

(25) – Cab., Ibid., fls. 55 e segs.

(26) – Cab., 1620.

(27) – Leia-se «estalajadeiro».

(28) – Cab., 758, fls. 187-189 v.

(29) – Cab., ibid., fls. 133-139 v.

(30) – Cab., ibid., fls. 173-186 v.

(31) – Cab., 776, fls. 362 e segs.

(32) – Cab., 775, fls. 390 e segs.

(33) – Cab., 786, fls. 55 e segs.

 

páginas 21 a 33

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