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N.º 5

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1968 

O problema do moliço na Ria de Aveiro

Pelo Capitão de Fragata Agostinho Simões Lopes

Ex-capitão do Porto de Aveiro

 

Desde longa data que a indústria da apanha de moliço na Ria de Aveiro constitui uma das mais características e importantes actividades desta região, ligada como sempre esteve à agricultura local.

É já muitíssimo vasta a matéria divulgada sobre o assunto e, além disso, tem sido objecto de particular atenção das várias Entidades que, através dos tempos, têm tido jurisdição na Ria de Aveiro.

Não pretendemos, por conseguinte, apresentar nada de novo, embora haja muitas ideias divulgados que nem sempre correspondem à realidade e verdade dos factos e que têm necessidade de ser esclarecidos. Infelizmente temos constatado que muito do que se tem dito ultimamente, quer como argumento para justificar o estado de crise actual desta indústria, quer como explicação para a excessiva abundância de moliço na Ria, raramente contém afirmações exactas. Antes pelo contrário, o que se diz é quase sempre influenciado por um ou outro interesse de carácter particular ou regional, que nada adianta e em nada contribui para qualquer esclarecimento.

Nos últimos tempos pouco se tem escrito sobre moliço, salvo um ou outro artigo em jornais diários ou na imprensa regional.

Uma das principais razões, e até mesmo talvez a única razão de ainda se falar neste assunto, reside na perturbação que a abundância de moliço provoca, sob o aspecto recreativo, nomeadamente na prática de desportos náuticos com embarcações a motor e pesca desportiva.

A apanha de moliço não pode ser tratada isoladamente, tendo em vista apenas o interesse para a própria actividade ou para a agricultura. Assim aconteceu, na realidade, durante largos períodos, com manifesto prejuízo de outras actividades marítimas.

A apanha de algas efectuada desordenadamente e durante todo o ano como se fez durante esses períodos trouxe resultados catastróficos para outra indústria, talvez não menos importante – a da pesca – visto que ambas estão intimamente relacionadas, como vamos ver.


ANCINHOS - Instrumentos necessários para a apanha do moliço.

Há uma época, entre Março e Junho, em que as criações entram pela barra e se conservam mais melindrosas. Coincide, também, esta época com a desova de muitas espécies que constituem a fauna da Ria.

Essas pequenas espécies procuram o abrigo dos moliços, nas zonas em que as correntes são mais fracas, como meio de defesa contra as espécies mais vorazes e ainda porque é no seio do moliço que encontram, também, pequenos animais de que são muito ávidos.

Uma das espécies mais abundantes na Ria, o robalo, é muito voraz e, sem aquele abrigo do moliço, a pequena fauna aquática seria, certamente, aniquilada.

Em face do que acabámos de expor se compreende, facilmente, o cuidado que às entidades oficiais mereceu a regulamentação da apanha de moliço, cuidado esse que resulta de dois factores principais:

a) – protecção do moliço, para que se não extinguisse, em virtude da sua enorme utilização como fertilizante das terras de cultura; / 24 /

b) – garantia da existência permanente de zonas com moliço, para protecção das espécies piscícolas.

E, foi, precisamente, nestas duas actividades, agricultura e pesca, conjugadas, que assentou durante largo período a organização da vida económica da Nação.

Nos séculos XVII e XVIII, a agricultura regional atravessou um longo período de decadência que arrastou, também, à decadência a indústria do moliço.

Como é sabido, estes e outros períodos de decadência estiveram sempre relacionados, e mesmo dependentes, da localização e do estado da barra.

Foi por este facto que, a partir de 1808, data em que ficou para sempre aberta e estabilizada a Barra de Aveiro, a agricultura teve novo e definitivo desenvolvimento.

Paralelamente, e em consequência desse desenvolvimento agrícola, passou a existir uma maior necessidade de moliço para adubar as terras e, novamente também, a respectiva indústria entrou em fase de grande desenvolvimento.

Com a crescente e desordenada colheita do moliço, a que já atrás fizemos referência, sem regulamento que a pudesse disciplinar, originou-se uma enorme crise na própria indústria moliceira e na pesca lagunar.

Na indústria moliceira, isto é, na decadência da produção de algas em virtude, principalmente, do levantamento geral dos fundos e da exploração imoderada.

No Relatório Oficial do Regulamento da Ria, de 28 de Dezembro de 1912, por Augusto Nobre, Jaime Aleixo e José de Macedo pode ler-se:

«O moliço propriamente dito, a seba, a folhada e outras plantas de valor secundário, que constituem a flora dos sapais, requerem naturalmente terreno quase permanentemente alagado, e hoje grande parte dos leitos que antigamente se mantinham inferiores ao nível das maiores baixa-mares, emergem já a pouco menos de meia maré, havendo muitos que se elevaram de modo a só serem banhados pelas preia-mares de águas vivas e alguns pelas dos equinócios. Os álveos, de certa altura para cima passam a dar outras plantas – bajunça, junco, caniço – realizando-se a diminuição progressiva da área produtora de algas.

A exploração extremamente intensa que se tem exercido, já pela extracção continuada, sem dar tempo a que as algas cresçam e se reproduzam, já por apanharem, com as gadanhas, gadanhões e enxadas, a própria vasa, levando com ela raízes e sementes, representa, se não o aniquilamento da vegetação, que é muito potente, pelo menos o depauperamento da produção». 

Por outro lado, e como se disse atrás, durante a desova e frequência de criação, a apanha de moliço é altamente prejudicial para a fauna da Ria.

No século XIX, a apanha de moliço era de tal maneira intensa, que a Ria de Aveiro se viu, praticamente desprovida da sua fauna.

Para obstar a tão grande inconveniente, foram então, publicadas as primeiras disposições legais que, no entanto, não trouxeram os resultados previstos.

É que os interesses agrícolas eram tais que se sobrepunham a todos os outros e, tanto os agricultores como os moliceiros, com a sua resistência, foram impedindo a execução de quaisquer disposições publicadas.

Da constante luta de interesses entre a pesca e a apanha de moliço e, como a primeira quase que desaparecera da Ria perante a exagerada actividade da segunda, resultou finalmente a publicação de um Edital do Governo Civil de Aveiro, em 1868.

Pelo seu interesse no que revela de cuidado, estudo atento e até como elemento revelador do estado das pescas na Ria de Aveiro, merece ser transcrita a sua introdução:

 

1868 SETEMBRO 9

EDITAL

«AUGUSTO CORREIA GODINHO FERREIRA DA COSTA, bacharel formado em direito, fidalgo cavaleiro da casa real e secretário-geral, servindo de governador civil do distrito de Aveiro.

Mando que seja posto em execução o seguinte regulamento:

Considerando que, entre as necessidades da sociedade, a de prover à sua alimentação é das primeiras e mais indispensáveis, e que a exploração da pesca marítima e fluvial é o recurso que, em maiores proporções pela própria barateza dos seus produtos, pode satisfazer esta necessidade principalmente às classes menos abastadas;

Considerando que, assim como na cultura da terra / 25 / a natureza retira a imensidade dos seus benefícios quando o homem por ignorância ou desleixo não procura auferir deles proveito, também, por igual desleixo, ou ignorância, os nega na produção das águas, como desgraçadamente o está demonstrando a esterilidade quase completa da ria de Aveiro, outrora tão rica de peixe, e hoje destinada quase exclusivamente à navegação e à extracção do adubo da terra com privação do alimento do povo, e perda de uma indústria que, favorecido por boas e fáceis comunicações, poderia só por si tornar rico quem a ela se dedicasse convenientemente;

Considerando que não é conveniente nem lícito que para cómodo dos agricultores se arruíne a indústria da pesca, mormente na Ria de Aveiro, onde pode ser tão lucrativa;

Considerando quão lastimoso seria que este distrito, dotado de um manancial de riqueza oferecido por sua ampla bacia de águas, extensa costa marítima e pelo Rio Vouga, permanecesse mais tempo no abandono da piscicultura, quando esta está hoje recebendo em países estrangeiros, com felizes e surpreendentes resultados, aperfeiçoamento que recebem outras muitas artes e indústrias humanas, estado este ainda mais digno de lástima quanto são geralmente conhecidas as causas do mal e fácil remédio;


Barcos moliceiros

Considerando as evidentíssimas vantagens que resultarão de se proteger a fecundação e criação dos peixes, já removendo os obstáculos que a ignorância, ou mal entendida ambição, opõe aos trabalhos da natureza, já promovendo o conhecimento da fecundação artificial, isto é, a prática da piscicultura entre a classe piscatória, para que melhor conheça o que convém a seus legítimos interesses, e de acordo com eles observe e cumpra as leis e regulamentos da pesca;

Considerando que todas as câmaras municipais, às quais a ordenação do reino delegou a faculdade de bitolar a menor capacidade da malha das redes de pesca, apenas a do concelho de Castelo de Paiva estabeleceu esta bitola, mas de um modo irregular e contrário à lei, porque, permitindo a malha por onde passe uma moeda de prata de 240 réis, o que corresponde a 15 milímetros por lado, ou menos, se a moeda for cerceada, permitiu o que se pretendia proibir;

Considerando que a costa, a ria e os rios navegáveis são propriedade nacional, e que por isso compete à administração pública regular o exercício da pesca e polícia respectiva;

Considerando que, a tolerar-se a continuação dos abusos existentes, todos os esforços seriam baldados para melhorar a indústria da pesca, e que a sucessiva / 26 / diminuição das espécies seria a sua consequência inevitável;

Considerando que as primeiras providências, entre outras, a adoptar desde já consistem a facilitar a livre entrada e saída dos peixes, quando tenham de passar da água doce para a salgada, e desta para aquela, durante o período de desovamento, e na observância da lei proibitiva do emprego de certas redes toleradas por abuso e ignorância de uns, e incúria de outros, e sempre com prejuízo do cultivo das águas e da alimentação do povo: etc....».

* * *

Como se pode verificar, logo de início se nota a pretensão de colocar ao mesmo nível de interesse a pesca e a cultura da terra. Verifica-se também que o exagero em que se caíra, no que diz respeito à apanha de moliço, não permitia o desenvolvimento da fauna «como desgraçadamente o está demonstrando a esterilidade quase completa da Ria de Aveiro, outrora tão rica em peixe, e hoje destinada quase exclusivamente à navegação e à extracção do adubo da terra...».


Barcos moliceiros na faina.

Com a mesma finalidade do Edital publicado pelo Governo Civil, foram tomadas medidas restritivas, quanto à apanha do moliço, pelas respectivas Câmaras Municipais, das quais também julgamos de muito interesse transcrever as seguintes posturas:
 

CÂMARA MUNICIPAL DE VAGOS

Artigo 1.º – É proibido aos povos deste concelho a apanha de moliço, por qualquer forma que seja, nos lagos municipais, desde 15 de Junho até 31 de Julho; todo aquele que for encontrado em contravenção desta postura pagará de multa por cada vez, sendo barco 3$000 réis, sendo carro 100 réis.

§ único – São considerados como do concelho os moradores da Gafanha que têm uso e posse de apanhar os mesmos moliços nos ditos lagos.

Artigo 2.º – Fica proibida a todos os povos de fora do concelho a apanha dos moliços nos lugares do concelho, seja em que tempo for; o que for encontrado em contravenção desta postura pagará de multa por cada vez o duplo do declarado no art.º 1.º e seu parágrafo.

Quando o contraventor de fora do concelho não pague a multa à Câmara, seu zelador, arrematante ou outra qualquer pessoa por ele autorizada, ser-lhe-á apreendido o barco, ou carro com todos os seus aparelhos, para à vista deles ser julgada a transgressão; nos objectos apreendidos se fará a penhora para pagamento da multa e custas, caso o contraventor não queira pagar depois do seu julgamento.

Artigo 3.º – A Câmara poderá conceder as licenças, que julgar convenientes, ou avençar-se com as pessoas de fora do concelho para poderem apanhar moliço nos mesmos lagos no tempo não defeso.

 

CÂMARA MUNICIPAL DE ÍLHAVO

Artigo 1.º – É proibida a apanha de moliço de qualquer natureza nos baldios do concelho desde 15 de Abril inclusive até 25 de Julho inclusive, sob pena de serem os transgressores multados na quantia de 2$500 réis pela primeira vez e em 5$000 réis no caso de reincidência.

Artigo 2.º – Na mesma multa do artigo antecedente incorre o que empregar gadanho na apanha dos referidos moliços.

§ único – No caso dos transgressores de que tratam os artigos 1.º e 2.º serem de concelho estranho se lhes apreenderão os barcos e quaisquer utensílios, ou instrumentos, que empregarem na apanha dos moliços e que se julgar suficiente para pagamento da respectiva multa, custas e mais despesas no caso de procedimento, o que poderá ser suprido por fiança idónea.

 

CÂMARA MUNICIPAL DE ESTARREJA

Artigo 112.º – É proibido:

1.º – Apanhar moliço na Ria desde 24 de Junho até 31 de Julho, inclusive, excepto os arrolados, sob pena de 3$000 a 6$000 réis;

2.º – Usar na apanha de moliço de outros instrumentos que não sejam os ancinhos na forma do antigo costume, sob a mesma pena do artigo antecedente.

§ único – Às pessoas que não são do concelho é sempre proibido apanhar moliço na área dele sem a competente licença da Câmara, pela qual pagarão 6$000 réis por ano e por cada barco, sob pena de 12$000 réis, e a licença será concedida com as restrições dos n.ºs 1.º e 2.º deste artigo.

/ 27 /

Artigo 122.º – É proibida a pesca nas águas do concelho desde 1 de Março até 31 de Maio, sob pena de 500 e 1$000 réis.

§ único – Exceptuam-se:

1.º – A do sável e lampreia e a pesca ao anzol;

2.º – Com rede estreita inferior a 0.02 m ou de arrastar, sob pena de 1$000 a 2$000 réis, e serem inutilizadas as mesmas redes;

3.º – Lançar qualquer elemento destinado a matar o peixe sob pena de 1$000 a 2$000 réis, pois que somente é permitida a pesca à rede, fisga, anzol ou à mão.

 

CÂMARA MUNICIPAL DE OVAR

Capítulo XLII

Artigo 42.º – É proibida a pesca nos rios deste concelho nos meses de Março, Abril e Maio e em todo o ano com redes de malha estreita, ou varredora, por contrária à necessária criação, sob pena de 600 réis e de serem inutilizadas as mesmas redes.

§ único – É igualmente proibido lançar nos mesmos rios troviscos e outras matérias venenosas, sob pena de 1$200 réis.

Capítulo XLIX

Artigo 49.º – É proibida a colheita de moliços desde 29 de Junho até 31 de Julho de cada ano. O que durante esse tempo for achado a colhê-los, ou se souber que os colhe, sofrerá a pena de 5$000 réis e mais três dias de prisão ao que for de fora do concelho.

§ único – No distrito daqueles concelhos, que designarem outra época, não se poderá colher moliço se não no dia em que se permite, mas também antes desse dia não poderão os moradores desse concelho colhê-los neste, debaixo da pena sobredita de 5$000 réis e três dias de prisão.

*  *  *

Porém, como anteriormente, ainda nenhuma destas medidas teve qualquer influência, por falta de execução devido ao enorme predomínio dos interesses agrícolas e por falta de uma autoridade que fiscalizasse e impusesse o cumprimento de tais disposições.


Barco moliceiro

A situação, entretanto, agravava-se e exigia essas ou outras medidas adequadas de modo a estabelecer um equilíbrio entre as duas actividades – pesca e apanha de moliço.

Por esse efeito pareceu pela primeira vez um Regulamento da pesca e apanha de moliço na Ria de Aveiro, aprovado por Decreto de 28 de Dezembro de 1912.

Foram, de seguida, introduzidas algumas disposições transitórias, que vigoraram até 4 de Janeiro de 1916, até que, finalmente, foi publicado um Regulamento definitivo, que ainda hoje está em vigor com alterações muito ligeiras, pelo Decreto n.º 3003, de 27 de Fevereiro de 1917.

Pelo actual Regulamento passou a ser livre na zona pública da Ria, entre outras actividades, o exercício da apanha de moliço desde que sejam observadas as respectivas disposições regulamentares.

Estabeleceu ainda este Regulamento um período de defeso desde 24 de Marco a 24 de Junho, pelas razões expostas em relação à fauna marítima. Esta limitação refere-se, não só à apanha de moliço, como também ao transporte e comércio de moliços verdes.

Repare-se que este defeso diz respeito, apenas, a moliços verdes, os quais são arrancados do fundo pelo moliceiro com instrumentos que também estão regulamentados, como veremos a seguir.

Porém, a limpeza das salinas, «desde que estejam em completa vedação com as águas públicas, pede ser feita na época estabelecida para o defeso, precedendo autorização do capitão do porto».

A experiência de muitos anos veio a demonstrar que este período de defeso, com a rigidez estabelecida, não tinha já razão de existir uma vez que a finalidade a atingir estava conseguida. Por este motivo foi o assunto revisto novamente e, em consequência disso, aquele condicionamento foi alterado por diploma legal (Decreto n.º 36822, de 7 de Abril de 1948).

Deste modo, a apanha de moliço e o transporte e comércio de moliços verdes passaram a estar vedados «durante um período de defeso não superior a três nem inferior a dois meses em cada ano, compreendido entre 24 de Março e 24 de Junho, período que será anualmente fixado por despacho do Ministro da Marinha em / 28 / processo iniciado por proposta do capitão do porto de Aveiro...».

Julgamos oportuno informar que, a seguir à publicação deste Decreto, jamais deixou de ser autorizada a redução do período de defeso para aquele mínimo de dois meses, durante o período conveniente e legalmente estabelecido.

Ficou, deste modo, muito atenuado o inconveniente para a agricultura e a actividade dos moliceiros, sem afectar a protecção da Ria.

É frequente ouvirem-se ou lerem-se em qualquer jornal afirmações, sem qualquer fundamento e quantas vezes maldosamente, pretendendo demonstrar o prejuízo resultante da paragem dos moliceiros durante o período do defeso. Chega-se, por vezes, ao exagero de afirmar que aqueles e seus familiares passam fome durante este período por se manterem inactivos. No entanto, nada disto corresponde à realidade. Com efeito, nunca é surpresa para ninguém, e muito menos para aqueles que se encontram ligados a esta actividade, que todos os anos haverá o defeso. Por conseguinte, quem trabalha no moliço já conta com isso no rendimento do seu trabalho de modo a obter uma compensação anual que cubra aquela inactividade.

Não se dá, e ainda em maior escala, um caso análogo com os navios da linha da pesca do bacalhau?

Ninguém ignora que estes navios exercem a sua actividade durante cerca de meio ano, ficando o restante tempo no porto de armamento, parado, em preparação para a safra seguinte.

Os moliceiros também aproveitam a sua pequena paragem para algumas reparações, pinturas, etc. No entanto, têm ainda a possibilidade de continuar a exercer a actividade da apanha do moliço arrolado, como se verá mais adiante.

Ao mesmo tempo que foram estabelecidos aqueles condicionamentos, o mesmo diploma regulamentou também as ferramentas permitidas no exercício daquela actividade.

Na apanha de moliço são apenas permitidos ancinhos de madeira com as seguintes características:

de arrastar – deve ter, pelo menos, 64 dentes com a altura máxima de 0,12 m.

o rapão – deve ter, pelo menos. 32 dentes com a mesma altura máxima, mas o comprimento do pente é limitado a 0.75 m.

o de manejo – comprimento máximo de 2 metros no cabo; 0,66 m no pente e 0.15 em cada dente, não podendo nunca o número destes ser superior a 14.

/ 29 / Na carga e descarga é permitida a utilização de ancinho de ferro, o engaço, de 3 dentes.

Por serem estas as alfaias normalmente utilizadas na actividade da apanha de moliço, durante o defeso só é permitida a existência, a bordo, do ancinho de manejo e do engaço, mas nos barcos devidamente autorizados a efectuarem o transporte de algas.

Além da apanha do moliço no fundo pelo processo do arrasto – moliços verdes – pratica-se, paralelamente, a apanha do moliço que, naturalmente, se deposita nas margens – moliço arrolado.

Esta modalidade foi, também, regulamentada ficando permitido «ser feita a pé e da linha da preia-mar de cada maré para fora do leito das águas...»

Além disso, o moliço que se depositar nas margens, naturalmente, em lugar de domínio público, e em qualquer época, pertence a quem primeiro dele se apropriar, e o que se depositar, naturalmente, nas propriedades particulares pertence aos respectivos proprietários.

Esta disposição também foi sendo atenuada, gradualmente, em face da quantidade de moliço arrolado ser cada vez maior.

Na realidade, à medida que a apanha de moliço verde vai sendo mais reduzida, aparece o moliço arrolado em maior abundância.

Não é de admirar que isto aconteça pois que o moliço arrolado não é mais do que o moliço que amadureceu e se desprendeu do fundo, ficando a flutuar e sendo transportado pela corrente até se depositar na margem ou sair pela barra.

Por este facto passou imediatamente a ser autorizada a apanha de moliço flutuante, na própria corrente da Ria, desde que fosse na vazante e a uma distância superior a 10 metros da linha da baixa-mar.

Este condicionamento foi estabelecido em virtude de se pretender evitar quaisquer prejuízos para os proprietários dos terrenos marginais, onde o moliço se depositaria se não fosse apanhado a flutuar.


Recolha de moliço

Actualmente, a quantidade de moliço flutuante é já tão grande, e sem haver quem o apanhe, que este condicionamento também já foi abolido.

Estamos, por conseguinte, perante uma situação crítica cuja solução, não muito distante, será a Junta Autónoma do Porto de Aveiro ver-se compelida a efectuar a limpeza do moliço nos canais de navegação por não haver moliceiros que a executem.

Não podemos afirmar que se virá a verificar o total desaparecimento da actividade moliceira, porque haverá sempre quem pretenda o moliço para adubo das suas terras. Está neste caso, evidentemente, aquela actividade modesta do lavrador que vai apanhar o moliço de que precisa para a sua utilização pessoal e que o faz em pequenas embarcações que hoje também existem em grande quantidade.

Mas, aquele belo e elegante barco que só existe na Ria de Aveiro e que foi, durante muitas gerações, o «ex-libris» da região, esse sim, desaparecerá para sempre e apenas passará a constituir peça de museu.

Temos razões para admitir, o que é da maior naturalidade, que em breve se iniciará uma actividade moliceira «motorizada», em substituição da clássica propulsão à vela com o pano de forma tão característica.

À primeira vista poderão parecer exageradas estas afirmações. Porém, a redução no número de barcos moliceiros e no número de homens que se dedicam a esta actividade é tão grande, como veremos em seguida, que outra coisa, infelizmente, não se poderá concluir.

Vejamos, em primeiro lugar, alguns números elucidativos, respeitantes à variação do número de barcos moliceiros existentes.

Segundo Fonseca Regalia, em «A Ria de Aveiro e as suas Indústrias», existiam em 1889, no total, 1342 barcos moliceiros. Este número tem vindo a diminuir gradualmente e hoje está reduzido a menos de metade. O quadro seguinte mostra concretamente a evolução destes elementos:

 
Ano Barcos existentes

1889

1925

1938

1955

1958

1961

1964

1966

1967

1 342

1 356

830

823

702

666

613

609

602

 

/ 30 / Esclarece-se que neste número estão incluídas todas as embarcações registadas na Capitania para apanha de moliço. Por conseguinte, incluem os barcos moliceiros, propriamente ditos, e ainda todas as embarcações mais pequenas, tipo bateira, que são utilizadas directamente pelos lavradores para seu serviço pessoal.

Estes elementos dão-nos uma ideia clara e concreta da diminuição permanente do número de barcos moliceiros. Verifica-se, também, que esta redução não é de agora, nem depende, apenas da falta de mão-de-obra actual, visto que o desaparecimento dos barcos moliceiros teve o seu início há já cerca de 40 anos.

Repare-se que os elementos relativos a 1889 e a 1925 não mostram, praticamente, diferença no número de barcos.

No entanto, ao longo desses 36 anos, houve um período de dez, entre 1902 e 1912, em que se deu um decréscimo na exploração das algas, segundo informações da época.

Esse curto período de crise foi consequência de grande emigração e, principalmente, pela continuada e desregrada apanha sem dar tempo ao crescimento das algas.

Como se viu, porém, essa crise passou e a indústria recompôs-se, o que nunca mais sucedeu a partir de 1925.

Com efeito, entre 1925 e 1938, um período de 13 anos apenas, deu-se uma fantástica redução de 526 barcos, a que corresponde uma percentagem de 39 %.

Nos últimos anos voltou a verificar-se uma acentuada emigração.

Há muitas dezenas de barcos moliceiros parados, porque os seus proprietários emigraram e não cancelaram os seus registos, muitos deles chegando até a abandoná-los nas margens.

Por conseguinte, o número indicado atrás é muito maior ainda do que os que andam actualmente em actividade.

Qual a razão porque em 1925 se iniciou tão brusca e enorme redução, se nessa altura não havia crise de mão-de-obra e nem sequer havia falta de moliço na Ria?

Não teria coincidido esta mudança com o desenvolvimento e divulgação do adubo químico?

Entre 1938 e 1955 deu-se novamente, uma estabilização para, a partir deste ano, se entrar numa constante redução.

Entre 1955 e 1967, correspondente aos últimos doze anos, o número de barcos diminuiu de mais 221, ou seja de 27 %, o que representa uma redução quase da mesma ordem de grandeza da do período entre 1925 e 1938.

A que atribuir também esta tão grande redução, não se vislumbrando agora vestígios de outra suspensão?

Constatamos, por conseguinte, que nos últimos 42 anos desapareceram da Ria nada menos de 747 barcos moliceiros, segundo a estatística, mas na realidade o número é maior pela razão atrás apontada.

Mas será só a emigração a causa desta tão grande baixa nos barcos moliceiros?

Antes de expormos as conclusões a que chegámos para explicar o abandono actual desta actividade, vejamos o que se passa, paralelamente, com o número de homens que trabalham no moliço.

Segundo a mesma publicação de Fonseca Regalla, o número de homens em 1889 era de 2542, o que representa uma média aproximada de 2 homens por cada barco.

Podemos afirmar que, actualmente, a média é inferior àquele número. Muitos moliceiros empregam a bordo as suas mulheres, algumas com inscrição marítima mas a maior parte com uma simples autorização da autoridade marítima para exercerem aquela actividade.

Além disso, como se disse atrás, o número de barcos engloba as bateiras dos lavradores que não têm actividade permanente nem necessitam de mais do que um homem, e o seu número pouco tem diminuído, ao contrário do que acontece com os autênticos barcos moliceiros, pois é em relação a estes que se tem dado a grande maioria das baixas.

Por último, muitos indivíduos com a categoria de moliceiro, ou deixaram a vida marítima ou têm enveredado por outro ramo de actividade marítima de carácter local, havendo muitos a trabalharem, por exemplo, na navegação fluvial do Tejo, quer em barcos a motor quer a bordo das características fragatas à vela.

Por conseguinte, em face das considerações atrás efectuadas, não é possível apresentar actualmente um número exacto de homens exercendo a actividade moliceira na Ria de Aveiro.

No entanto, apresentamos a seguir os números correspondentes às novas inscrições marítimas nesta categoria, entre os anos de 1950 e 1966, que dão bem / 31 / ideia do reduzidíssimo interesse que hoje existe por esta actividade.

 

Ano

Inscrições Marítimas para moliceiros

1950

1953

1956

1959

1962

1965

1966

1967

50

49

71

26

37

8

6

7

 

Acresce, ainda, que a quase totalidade destas inscrições nos últimos anos tem sido de indivíduos que não possuem as habilitações mínimas legais para se inscreverem em qualquer das categorias da inscrição marítima, e só por condescendência do capitão do porto isso se tem verificado com a restrição de que só poderá exercer a sua actividade na Ria de Aveiro.

Se assim não fosse, talvez não se tivesse registado uma única inscrição para moliceiro nos últimos tempos...

Quais serão, também aqui, os principais motivos deste desinteresse?

Em nossa opinião há vários, que se conjugam e que indicaremos a seguir.

Ao enunciarmos essas razões, fazemo-lo sem a preocupação de as indicarmos por ordem de importância, até porque seria impossível distinguir quais são as que têm maior ou menor influência no assunto que estamos a considerar.

 
Barcos moliceiros na faina.

a) – Decadência da agricultura

É um problema actual, cuja apreciação está fora do âmbito destas considerações, mas por demais conhecido para necessitar qualquer esclarecimento.

Vimos atrás que o desenvolvimento da actividade moliceira esteve sempre ligado ao desenvolvimento da agricultura da região. Quando esta entrava em decadência, arrastava também a outra.

Não admira, por conseguinte, que os reflexos actuais se façam sentir como sempre aconteceu.

Este estado de decadência da agricultura reflecte-se na actividade moliceira, já por não haver tanta necessidade de moliço, como pelas limitadas possibilidades de pagamento que não compensa a exploração.

Se analisarmos e compararmos os preços da barcada de moliço através dos tempos, concluímos que hoje o seu preço, apesar de elevado, não é compensador.

Com efeito, o preço médio da barcada em 1883 era de 4$00 e o actual é de 400$00.

Há quem atribua, como uma das razões do desaparecimento cada vez maior de moliceiros, as elevadas taxas que estes têm que pagar à Capitania. Nada mais falso e, só por total ignorância do assunto ou má vontade, é que se poderão fazer estas afirmações.

Com efeito, o exercício da apanha de moliço está sujeito ao pagamento de uma licença para cada barco, cuja importância é de 70$00 por ano e foi estabelecida pelo Decreto n.º 10 105, de 19 de Setembro de 1924.

Há mais de 43 anos e, até hoje, não sofreu qualquer agravamento...

Além disso, os barcos que não exerçam a actividade durante toda a época de exploração podem obter uma licença por período, pagando 40$00 em relação ao primeiro período e 30$00 em relação ao segundo.

O preço actual do moliço não é compensador devido, principalmente, ao elevado custo de vida e ao preço de mão-de-obra, também cada vez mais elevado e mais difícil de conseguir.

As reparações e a conservação dos barcos são extraordinariamente caras, tanto em consequência dos elevados preços do material, como dos salários para pagamento ao pessoal especializado.

 

b) – Adubos químicos

Já atrás nos referimos a este caso quando indicámos os dados estatísticos referentes ao número de barcos moliceiros.

Ninguém desconhece, certamente, o incremento que tomou a utilização dos adubos químicos nos terrenos de cultura, substituindo na maioria dos casos o adubo orgânico. Daí, a menor procura de moliço, se bem que ainda hoje há agricultores que o não dispensam nas suas propriedades, sobretudo quando pretendem cultivar produtos de melhor qualidade.

Quase todos os agricultores continuam a utilizar o adubo orgânico nas terras que cultivam para seu consumo particular, utilizando o adubo químico nos terrenos cuja produção se destina ao comércio.

 

c) – Emigração

Outro problema actual à escala nacional, cujos reflexos não poderiam deixar de se sentir na actividade moliceira, ou melhor, em todos os ramos da actividade marítima.

Julgamos, também neste caso, não serem necessários quaisquer esclarecimentos ou comentários sobre o assunto.

 

d) – Natureza do trabalho

É de todos bem conhecido o trabalho do moliceiro, e sobre a sua rudeza e violência não será necessário alargarmo-nos em considerações.

É um trabalho pesado, que exige esforço físico enorme, tanto na apanha do moliço verde arrastado, como, simultaneamente, no próprio governo da embarcação, / 32 / particularmente quando não há vento e se torna necessário o emprego da vara como meio de propulsão.

Apenas existem hoje, praticamente, dois centros de moliceiros – Murtosa e Torreira – dos quais só o primeiro continua e dedicar-se à apanha de moliços verdes pelo processo do arrasto. Na Torreira, já de alguns anos a esta parte que a actividade está reduzida ao moliço arrolado, de apanha muito mais fácil e de muito menos esforço físico.

 

e) – Falta de assistência

O moliceiro não usufrui qualquer modalidade de assistência. O patrão não tem qualquer agremiação e o trabalhador não tem sindicato ou qualquer outro organismo análogo e, tanto um como o outro não estão abrangidos pelos organismos oficiais de assistência, actualmente existentes.

Compare-se, por exemplo, o que se passa com estes trabalhadores e os pescadores. Estes, com as suas Casas dos Pescadores onde lhes é facultada assistência médica gratuita na doença e subsídio para medicamentos, etc., para si e para todo o agregado familiar. Aqueles, sem nenhuma instituição a que possam recorrer naquela emergência.

Além desta assistência na doença, todos os pescadores têm as respectivas Mútuas onde recorrem em caso de acidente e os moliceiros continuam a nada possuírem.

 

f) – Habilitações literárias

Em face da natureza do seu trabalho, é o moliceiro que se encontra na mais baixa categoria da escala marítima e o que tem mais baixo nível profissional.

É uma categoria que, apesar de prevista no próprio Regulamento da Inscrição Marítima, só existe na Ria de Aveiro.

Pela actual legislação o moliceiro também pode matricular-se, eventualmente, em qualquer actividade de pesca costeira ou tráfego e pesca local. No entanto, à excepção do que se referiu em relação à navegação fluvial do Tejo, são raros estes casos visto que o moliceiro não poderá usufruir qualquer das regalias assistenciais das Casas dos Pescadores, por nunca poderem inscrever-se como seus sócios beneficiários.

Se bem que a legislação não preveja qualquer excepção em relação às habilitações literárias – para a inscrição marítima é necessário pelo menos o ensino primário elementar – para o moliceiro não há qualquer outro condicionamento quer em relação à idade, quer a outras habilitações.

Como consequência da actual legislação escolar, raro é o indivíduo que não possui hoje o exame do ensino primário elementar e, por conseguinte, ao pretender inscrever-se como marítimo inicia já a sua vida profissional como pescador, pelo menos.

/ 33 / Por esta razão, a quase totalidade das inscrições marítimas indicadas atrás para moliceiros é de indivíduos que não satisfazem àquelas condições mínimas quanto às habilitações literárias, mas que vão sendo autorizados em virtude da ausência quase total de candidatos para o efeito.

* * *

Julgamos ter dado, embora sucintamente, uma ideia do que se passa com o moliço na Ria de Aveiro.

Pelo que foi exposto, fácil é concluir que não se prevê qualquer hipótese para resolver a situação.

Além da apanha do moliço ter vindo a decrescer, verifica-se que há zonas da Ria onde não se exerce aquela actividade; ou porque a quantidade do moliço tem menos interesse, ou porque ficam bastante afastados dos locais de venda.

Com o fim de eliminar, ou pelos menos atenuar, os inconvenientes apontados, já desde Janeiro de 1966 que foi eliminado o defeso para apanha de moliços verdes nos seguintes locais públicos:

Canal de Ovar – para norte da Torreira;

Canal de Mira – para sul da ponte da Vagueira;

Canal de Ílhavo – para Sul da ponte de Vagos.

 

Para demonstrar o desinteresse, quase total, pela apanha de moliço indicamos o reduzido número dos que pretenderam continuar a trabalhar durante o defeso:

Em 1966  ——————  61 barcos

Em 1967  ——————  49      »

 Com estes números e sem mais comentários concluímos o nosso despretensioso trabalho.

* * *

BIBLIOGRAFIA

Estado actual das pescas em Portugal – A. A. Baldaque da Silva, 1891.

A Ria de Aveiro e suas indústrias – F. A. da Fonseca Regalla, oficial da marinha, 1889.

Regulamento da pesca e da apanha do moliço na Ria de Aveiro – publicação do Ministério da Marinha, 1917.

Notícia sobre as indústrias marítimas na área da jurisdição da Capitania do porto de Aveiro – Cap. mar e guerra Rocha e Cunha, 1939.

 

páginas 23 a 33

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