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N.º 4

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1967 

 

Onde mora o Folclore?

Por Albano Ferreira

 

A coisa tinha de partir de Arouca e partiu mesmo: – levar ao último Colóquio Portuense de Arqueologia um ensaio em vez de uma comunicação, como cumpria, sobre o tema folclórico que se definia no seu próprio título – Castrejas as Danças Folclóricas Portuguesas?

A proposição que se esconde na pergunta é de arrojo, já que ninguém poderia ter visto, para as estudar, as danças dos nossos aborígenes castrejos, tão distantes no tempo. Deles se sabia apenas o que a Arqueologia havia informado acerca da sua cultura, e foi sobre os dados desta que nos detivemos a imaginar a coreografia que se havia de desenvolver no seu seio para poder estabelecer as possíveis relações com as actuais danças da nossa gente rural.

Assim podemos averiguar que no decurso da sua lenta evolução veio o tempo do nosso aborígene abandonar a pastorícia errante para se instalar em abrigos familiares fixos que desenvolvendo-se haviam de dar lugar às povoações castrejas. Deu assim o homem, animal gregário, o grande passo para a sociedade, para a agremiação.

Sabemos como fundou a primitiva povoação – um conjunto de pequenas casas redondas – e o que a mesma lhe daria em troca: refúgio, agasalho, fraternidade, economia agro-pastoril de feição comunitária, ética em normas de relação e comportamento, defesa e segurança. Nasceu para este efeito a muralha, obra colectiva de comparticipação comunitária.

Ali passou a viver o nosso aborígene que tratou de levantar mais uma, se não mesmo duas outras muralhas para maior segurança.

Dentro destas, no seio do próprio agregado, nascera, medrara e agitava-se, como é óbvio, uma juventude ávida de folgança, já que o recreio em gente nova é de imposição orgânica tão premente como o comer e o dormir.

Conseguida a tranquilidade, haviam de surgir os momentos de ócio, logo aproveitados por aquela juventude, que atingira a idade núbil (a idade do namoro do nosso tempo), para os seus devaneios, para os seus procurados encontros e consequente realização dos divertimentos, de que a dança lúdica é o primeiro e o mais apropriado aos dois sexos juntos.

Surge, então, a dança social de conjunto, rapazes e raparigas aos pares, por efeito do inaparente impulso sexual.


AROUCA - Vista parcial

Mas a dança não é tumulto nem distúrbio. É uma actividade recreativa ordenada e coordenada em que os participantes intervêm no gozo dum brinco comum. A dança terá de ser como o foi a muralha, uma obra de com participação comunitária.

Mas a dança não pode realizar-se sem suporte rítmico e musical. O ritmo pode obter-se pelo bater das palmas das mãos ou dum pau noutro pau e a música, por não haver ainda, possivelmente, o instrumento sonoro que a produzisse, teria de ser fornecida pela voz humana, pela cantoria. Daí o cantador (que necessariamente havia de ser socorrido pela articulação da palavra, se não já dum verso, e aqui estaria, possivelmente, a origem da própria poesia) – figura já tradicional que nunca mais deixaria de estar ligada à dança popular mesmo depois de obtido o primeiro instrumento musical (flauta rústica duma cana silvestre que ainda vemos em mãos dos pastores, ou, como indica o Arqueologista, do osso duma tíbia).

Estamos, assim, em presença duma coreografia social estruturada e definida pela associação dum conjunto de pares – rapazes e raparigas – em coordenada movimentação de sentido comunitário, na obediência um cantador fincado no suporte musical em que assenta e se desenvolve toda a dança.

Outros factores ocorrem a ampliar e enriquecer tal coreografia mas já não importa referir aqui.

Se esta dança é, com efeito, a coreografia criada e fixada pelos nossos aborígenes castrejos, como cremos, podemos verificar que ela subsiste, permanece, nos / 65 / seus longínquos descendentes, os actuais rurais que a guardam e renovam com inusitado vigor e frescura.

Naqueles rurais se contam os de Arouca, e por aqui devíamos ficar. Mas interessa saber que foram muitos mais os herdeiros de tão singular e significativa herança, que a observação nos permite identificar, delineando mesmo a área da sua distribuição. Fixa-se esta (eis aqui uma novidade que há-de produzir protestos e controvérsia), numa zona que a partir do rio Vouga médio se estende para noroeste e confunde com o perímetro da chamada «videira d'enforcado», produtora do vinho verde, com particular incidência e caracterização entre o médio Vouga e o rio Ave, como qualquer observador pode verificar.

Convém, antes de mais, fazer uma prevenção para destruir um equívoco que está a tomar vulto em matéria de folclore coreográfico e musical. Nem tudo o que o povo opta ou pratica, e só porque é povo, tem de ser folclórico ou mesmo popular. O nosso povo dança polcas, valsas, quadrilhas e todas estas coreografias vieram de salões mundanos europeus; dança modinhas de roda e estas vieram das reuniões familiares urbanas quando no princípio do século estavam em moda os chamados Jogos de Prendas; dança modas de pares agarrados, faz rodopios como piões, levanta as saias em seus rodeios e mostra as pernas; adapta o Fado a coreografias de arranjo. Ora isto não é folclore, como não são folclóricas aquelas modinhas cantadas de origem teatral.

Folclore está na vivência de tradições oriundas de povos anónimos e incultos, como esses aborígenes que temos estado a apreciar. O folclore não se inventa, nem se substitui. Para ser válido tem de ser autêntico e de raiz ou origem regional.

Como íamos dizendo, as danças folclóricas de origem castreja foram acantonar na zona do perímetro da «videira d'enforcado» por ali existir um tipo humano que descende exactamente daquele outro que viveu nos inúmeros castros do Noroeste da Península, zona apropriada ao viver mais fácil dos povos primitivos pela presença da humidade natural (abundância de pastos e de frutos), pela facilidade da defesa comum, pela proximidade do mar, pela existência de minérios (particularmente o ouro).

Mais tarde, já nos tempos históricos, haviam de erguer-se nessa zona as pequenas e graníticas igrejas românicas. Ali se fundira uma Nação que não resultara positivamente do mero acaso.

É ali que mora o folclore!

*

*  *

Se por Arouca muito se dançava as tais danças castrejas, ali particularmente distinguidas pelo seu conteúdo comunitário – os pares a desfazerem a sua unidade básica trespassando-se ou mudando de lugar na distribuição do brinco comum – muito mais se cantava.

Para as danças tornava-se necessário um ajuntamento de pessoas dos dois sexos que para o efeito se procuravam; para cantar bastava apenas o encontro pausado, que não precário ou passageiro, dumas tantas raparigas, nunca menos de duas, para termos já um / 66 / canto escontriado a duas vozes e, se forem três, a possibilidade dum coral a três vozes paralelas ou sobrepostas – juntar as cabeças e a dádiva brotava espontaneamente, a fundir-se no silêncio envolvente.

A mulher arouquense só cantará em uníssono junto do berço e, fora de casa, na horta, à eira e no lavadoiro, e já o não faz em trânsito desacompanhada. Com outras ao pé, é que funciona. É esta modalidade folclórica arouquense que importa agora conhecer.

O canto arouquense só tomou aspecto folclórico depois que o etno-musicólogo Prof. Virgílio Pereira o descobriu e dele se ocupou para proclamar:

«O cancioneiro de Arouca é o mais rico e significativo do país.

Vocês, arouquenses, não sabeis a riqueza folclórica que tendes nos cantos populares da vossa gente rural, espécies raras dos velhos «fabordões» e «gymeis».

«Arouca é um centro difusor, como verifiquei por Resende e Cinfães, dessas vossas maravilhosas espécies musicais».

Foi uma surpreendente novidade para quem, como nós, não estava ainda informado a tal respeito. Folclore, então, era uma bela palavra de sentido mal definido e quando começou de entender-se era para designar danças populares, como de resto vem sendo vulgarmente interpretado, como aqui mesmo se já viu.

Facto é que Arouca dispõe dum acervo musical particularmente rico e significativo, como resulta da apreciação do mais categorizado etno-musicólogo que o prospectou e registou no livro «CANCIONEIRO DE AROUCA», que a extinta Junta de Província do Douro Litoral havia de editar, que importa considerar. As 531 espécies musicais ali coligidas são, só já pelo número, particularmente significativas.


Raparigas arouquenses em traje tradicional.

Será altura de perguntar-se: – Como explicar a presença de tais e tantas espécies musicais por terras de Arouca? Desde que Arouca tem no seu vale maior um convento que foi inicialmente de monjas da velha ordem de S. Bento, que mais tarde a prestigiosa Rainha Santa Mafalda, neta do fundador da Nacionalidade, havia de submeter à de Cister na reforma de S. Bernardo, a resposta concreta estava naturalmente indicada: – ali, naquele convento! – E assim está estabelecido.

Por outro lado os dicionários de termos ligados à música informam que Fabordões são géneros musicais de típicos corais que se assinalaram pelo século XII em Inglaterra e que as ordens religiosas haviam de transmitir aos seus mosteiros do exterior, o que tudo concorre para dar consciência à indicada origem da nossa música coral. Com aqueles se identificam os gymeis, de que derivaram se não mesmo lhes teriam dado origem. Nos dois a mesma fórmula.

Os corais arouquenses, como de resto muitos outros estranhos à região, são cantados ao ar livre. em voz natural e sempre igual sem pianos nem fortes, por mulheres voltadas para os vales ou declives, de forma a poderem ser ouvidas ao longe, como se a toada fosse emanação telúrica do chão que pisavam ou dádiva do céu. Alguma coisa de unção religiosa pairava nessa música lenta e nostálgica.

Tais corais hão-de definir-se pela junção de duas ou três pequenas melodias iguais sobrepostas e separadas por terceiras da escala musical, extensivas pela repetição quer dos seus períodos que de toda a composição e pela lentidão dos tons graves, mais prolongados nos remates finais. Têm a particularidade de a sua iniciação se fazer pela voz duma única mulher para definir o mote poético e a figura musical, logo repetido a duo com a voz superior da acompanhante, para seguir-se propriamente o coro. no qual se incorporaria a terceira voz quando se tratasse dum fabordão. A qualquer das vozes em função se podem agregar outras acompanhantes.

E acontece algumas vezes que um inesperado e pejorativo apupo aparece no remate da cantoria, partido, em regra, dum indivíduo estranho senão mesmo duma das próprias participantes do adjunto coral. Qual o significado ou intenção deste apupo, tão característico entre os audientes dos cantos populares? Desagrado, chacota ou apenas divertimento? Compreende-se que possa resultar dum estranho ouvinte, mas já se não explica se da comparticipante.

O apupo, sempre reservado para os remates dos corais populares, é, com efeito, desconcertante. Temo-lo como sinal de troça, mesmo perante aquele conteúdo religioso que emprestamos aos corais que se criaram ou desenvolveram à sombra do convento, que é o caso de Arouca, que começa de entrar em perigo.

Merece crítica a relação dos conventos e os cantos populares, como também estudo merecem os próprios corais.

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A Igreja e os seus institutos religiosos só dispunham, como é sabido, duma música-tipo ou única, que é a música coral gregoriana, caracterizada pela sua estrutura uníssona. Outra não era admitida e se houve tentativas de a modernizar ou enriquecer mediante as prestigiosas fórmulas de Palestrina, o Concílio de Trento, dos meados do século XVI, tomando conta do caso repôs as coisas no seu lugar e a música religiosa se havia de conter na sua linha gregoriana tradicional.

Na Igreja há corais, por sinal muito belos, mas não passam do resultado de umas tantas vozes associadas a desferir uma melodia a uma só voz ou linha. Ora / 67 / isto não acontece com os corais populares, evidentemente mais complicados, mais ricos, pela inicial associação de 2 ou 3 vozes escontriadas. Nada, pois de comum entre uns e outros. Haverá quando muito uma unção de que comparticipam os dois. daí ter resultado o equívoco da interdependência que os liga, mas que nada depõe a favor ou contra. Por outro lado, os cânticos religiosos têm sempre uma difusão e observância universais quanto os populares uma localização muito restrita e são desiguais de terra para terra e mesmo de sítio para sítio, como podemos ver.

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Quem, por terras de Arouca, procure cantos populares para os observar directamente, grande surpresa o aguardará: – é ver o jeito, a queda, o dom, que tem a criança do sexo feminino local de construir com outra um canto escontriado, desses que tecnicamente se designam por gymeis.

As crianças, a partir dos dez anos, se não mesmo menos, já cantam com segurança; frequente é ouvi-las em pequeno grupo cantar maravilhosamente aquelas cantas ou modas populares que estão no património do seu círculo familiar.

Agora surpreender uma qualquer delas a transformar numa canta escontriada aquela cantiguinha exótica, de fundo mavioso, de que se apossou, é novidade que muito o há-de ferir.

Com efeito, enquanto a sua companheira canta ao natural tal cantiguinha, a nossa rapariguita entra de botar espontaneamente em tom superior sem qualquer deslize desarmónico. de que resulta um puro coral.

Este não foi sujeito a qualquer experiência nem criado depois duma série de tentativas frustradas ou ensaios. Resultou dum facto criador, duma nascente inferior sue fluiu, como um jacto de água num repuxo.

E aqui está a origem e a história de todos esses gymeis e fabordões, de que Arouca é afinal uma mina produtora, e de tal qualidade é esse material que muitos são, como havia de informar Virgílio Pereira, os que, de fora, dele se têm apoderado...

E já não vale a pena continuar, que mais haveria de dizer. Voltamos a perguntar:

– Onde mora o folclore?

 

páginas 64 a 67

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