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N.º 4

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1967 

 

A originalidade do Barroco em Aveiro

Pela Dr.ª Dulce Souto

Professora da Escola Industrial e Comercial de Aveiro

 

A dimensão humana da Arte, tende, paradoxalmente, neste século da Técnica, a alargar-se para uma universalização, saindo do núcleo restrito dos estudiosos especializados, para o público em geral, permeável as noções base e ávido de se cultivar.

É um fenómeno a que nacionalmente também estamos ligados, dado que o Português hoje viaja mais, o que o habilita a adquirir uma mais criteriosa receptividade, um mais cuidadoso espírito de selecção, uma interessada busca de elementos concisos e simples, que respondam às suas necessidades estéticas.

Portal da Capela das Barrocas

A esta posição actual do nosso povo, não são alheios os muitos meios de divulgação que usufrui, que bendiz e a que corresponde, não a nível uniformizado, mas sujeito às flutuações próprias de condicionalismos regionais de vária ordem. E porque à região de Aveiro cabe precisamente um índice alto de condições favoráveis a essa divulgação, que vai da influência do meio geográfico, – pé em terra, pé no mar – com fáceis acessos, à mobilidade temperamental, há que proceder a uma esquematização actualizada de conceitos artísticos, para, servindo a cultura regional, servir também as nossas gentes.


Interior e altar-mor da Igreja de Jesus, no Museu de Aveiro.

A hora actual é dinâmica e quer acabar com a arte estática, para lhe arrancar vida, vida que seja transmitida a quem a olha, a quem a quer descobrir e for capaz de a sentir. Por isso e porque Aveiro, capital dum distrito cheio de interesse, deve saber falar do seu espólio aos que a visitem, parece-nos que só se pode falar daquilo que se conhece; consequentemente, devemos contribuir para que todos comecem por saber o que têm, para acabarem por se habilitar a uma atitude de resposta oportuna, que ponha, na nossa tradicional arte de bem receber, uma nota de bem elucidar.


Órgão setecentista da Igreja de Jesus.

Assim, há que insistir primeiro na escrupulosa atitude que ao falar da Arte como da História se tem de manter, não tomando por rígidas certezas, períodos-marcos, que se adoptaram por comodidade de ligação e sequência.

É que os limites que tais períodos assinalam são sujeitos a oscilações que podem traduzir-se na presença de características dum período ultrapassado já, ao lado de formas novas; ou, pelo contrário, reconhecida evidência de elementos avançados, a ressaltar dum conjunto ainda marcadamente tradicional. Isto é de facto uma posição-base, para podermos falar de qualquer período artístico.

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*    *

Sabemos que esses períodos fundamentais dizem respeito às Artes Pré-Histórica, Clássica, Medieval, Moderna ou Contemporânea; e porque esta divisão implica uma matéria incomportável, há que seguir o estudo individualizado de especializações e de estilos, na Arquitectura como na Escultura, na Pintura como nas chamadas Artes Menores, constituídas por Ourivesaria, Mobiliário, Tapeçarias e Bordados, Faianças e Porcelanas, Vidros e Vitrais.

Assim e porque Portugal nasce no séc. XII, tomando este século como ponto de partida para a maior ou menor projecção de influência deste ou daquele estilo, foram subdivididos em Românico, Gótico, Manuelino, Renascença, Barroco, etc.

É deste e só deste que se vai ocupar este nosso trabalho de síntese, primeiro porque é um dos estilos que, na corrente de reabilitação de artes mal compreendidas, está hoje na ordem do dia para muitos autores; depois, porque Aveiro está no norte do país, onde este estilo teve os seus maiores cultores, razão fundamentada na maior abundância nortenha de madeiras, que permitiram maravilhas de efeitos.

E finalmente vamos tratar este estilo, porque orgulhosamente podemos afirmar que Aveiro tem Barroco, Barroco tão bom, que a coloca em lugar de relevo, podendo-se-lhe mesmo atribuir características individualizantes. Assim, começaremos por fazer um brevíssimo / 15 / apanhado dos aspectos essenciais do Barroco, fugindo à sua etimologia, discutida, e sintetizando as opiniões sobre o seu aparecimento. Para alguns, o Barroco é um volte-face nos temas tradicionais, estilo Jesuíta relacionado com as conclusões do concílio de Trento; para outros, crise de gosto que faz realce dos volumes, mas que é uma arte escravizante dos sentidos.

Modernamente, há justíssimas opiniões para esta arte, conceitos curiosíssimos até. Não resistimos a reproduzir aqui a posição de Claude Roy no seu livro «Arts Baroques», quando nos diz: «...O Barroco é um estado de espírito que se exprime através das formas e que a igreja adoptou por ter querido estabelecer um programa de aplicação das Belas-Artes, à conquista das almas». Empolgou-nos a leitura da sua obra ainda quando falando da intensa linha de construção dos Jesuítas que nos novos temas souberam aproveitar elementos nativos que eram símbolos ou ritos de paganismo, para os assimilar, afirma: «...os Jesuítas pediram aos diabos profanos, para levar as suas pedras aos santos do Paraíso!» e mais adiante: «Há uma verdade barroca – a linha curva é o mais curto caminho do cálculo à graça!»


Ângulo e pormenor de talha barroca da Igreja de Jesus.

Muito mais apetecia reproduzir, para transmitirmos o sabor que vai tendo esta evolução de conceitos, que nos leva a concluir o seguinte: é uma arte tipo, que serviu, de facto, sobretudo a arte religiosa, por coincidir o seu aparecimento com as necessidades de construção ou remodelação de templos, mas não a podemos considerar escrava duma temática religiosa. Foi moda e não servilismo, resultante certamente da fusão de factores diversíssimos e não da exclusiva ideologia da Igreja da época.

Habitualmente, considera-se Barroco tudo o que no domínio artístico pertence aos séculos XVII e XVIII. Todavia, a arte do primeiro, para alguns decadência e degenerescência da Renascença, é acentuadamente proporcional, estilizada e severa, própria das horas duras da política nacional. É a denominada arte «maneirista» de que a nossa igreja da Misericórdia é um exemplo. O Barroco propriamente dito, que se lhe segue, usa na arquitectura sacra um plano interior em que a nave é ladeado de capelas pouco cavadas, propícias a ouvir-se a pregação e onde as linhas geométricas dão lugar aos relevos. Utiliza na decoração festões engrossados de grande efeito e tem nas frontarias voluptas ligando a parte central às laterais. São também próprios deste estilo a assimetria, as curvas e contracurvas súbitas e – característica marcadamente barroca – usa-se a coluna salomónica em espiral ascendente, ornada de folhas de parra e na escultura das figuras um panejamento farto e envolvente, com lançamento revolto, largo, dinâmico.

Toda a combinação arquitectura-escultura é estabelecida em profundidade e não em plano, com aplicações fogosas, opulentas, com decoração plástica de talha predominantemente dourada, que aplicada conjuntamente com azulejo branco e azul dá uma policromia de efeito agradável, vistoso e muito característico.

Na pintura usam-se os contrastes de claro-escuro, que lhe dão uma constante de processos, inconfundível. Em Espanha e Itália, é curioso que a escultura precedeu a arquitectura na aplicação de caracteres barrocos, mas Portugal, que recebe acentuada influência de ambas, separa-se. individualiza-se sobretudo na talha, que toma carácter nacional definido.

Passemos então, ainda que sumariamente, a seguir, a esquematização de Robert Smith na sua obra: «A Talha em Portugal», para compreendermos essas notas tipicamente nacionais do Barroco português:

a) – Aplicam-se na talha colunas de fuste em espiral (salomónico) com pássaros (fénices) – símbolo da Ressurreição e pequenos anjos, contendo habitualmente cinco espirais. / 16 /

b) – O acanto em alto-relevo aparece no remate de arcos concêntricos, ou em combinação com meninos, pássaros e carrancas.

c) – No altar-mor, surge o trono de construção piramidal, em degraus, que é uma constante da arte eclesiástica portuguesa depois de 1680.

d) – A decoração alastra a todo o interior e aparece a igreja toda de ouro, realização – diz aquele erudito autor – sem paralelo no passado, e ideal nunca superado, nos estilos sucessivos da arte lusitana.

a) – Outra novidade é, na capela-mor, o tecto fingir em madeira dourada, a caixa e as nervuras de uma complexa abóbada geométrica mourisca, decorada com almofadas».

Cremos que este esquema nos habilita a olhar com outros olhos a arte barroca da talha dourada, que tão bem definida conhecemos na nossa terra. Mas vejamos / 17 / ainda com Reinaldo dos Santos na sua «Escultura em Portugal» os principais ciclos dessa escultura barroca:

1.º – Há o barroco seiscentista de D. Pedro II (1706-1750);

2.º – O barroco em parte italianizante de D. João V (1706-1750);

3.º – O rócócó de D. José (1750-1777) a quem em parte se sobrepõe o estilo pombalino da reconstrução de Lisboa.

 

Quereríamos transcrever mais, muito mais e fazer um estudo comparativo das opiniões dos grandes mestres, mas tiraríamos a este trabalho o carácter de síntese que o pretendeu orientar desde o início. / 19 /

Passaremos então agora a apontar alguns nomes grandes do Barroco português nas diferentes Artes, para daí seguirmos para as particularidades do Barroco Nortenho. E porque partimos do todo para a unidade, a última parte do nosso trabalho visará a centrar o papel do Barroco Aveirense na História da Arte, sua importância e razão do nosso orgulho.

O primeiro nome a que temos de nos reportar é o de Filipe Tércio que, usando na sua obra formas clássicas mas já com sentido de espaço, fundou uma escola de arquitectura, donde saiu a geração de arquitectos que deu à arte do séc. XVII as primeiras formas Barrocas Nacionais, com Baltazar Álvares, à frente, autor da igreja dos Grilos no Porto e considerado por Reinaldo dos Santos o primeiro mestre do Barroco Português. Surgem também os Tinocos e os Turrianos com bastantes obras no norte.

No fim deste séc. e começo do século XVIII, surge um mestre famoso – João Antunes (1683-1734). Há depois com D. João V, Ludovici, Nazzoni, Mardel e na segunda metade do séc. XVIII, Machado de Castro, entre outros grandes.


Aspecto abobadado da Igreja de Jesus.

Assinalam-se ainda na segunda metade do século XVIII Machado de Castro e António Ferreira, na arte dos presépios, de barro policromados. Isto para considerarmos a arquitectura e a escultura como marcos modelos, que às outras artes serviam de inspiração e onde não deixaram de revelar-se também artistas de maior mérito. Lembre-se, por exemplo, o já citado Ludovici, que era ourives em Roma e veio a ser arquitecto régio em Portugal.

Artistas ignorados muito mais haveria que citar, até porque em Braga, Guimarães, Aveiro e Barcelos se situaram grupos de entalhadores que estenderam a sua arte regional por capelinhas e santuários das aldeias, em tal profusão que «em 1788 passavam de 3000»!

Mas dizíamos que há um cunho especial de Barroco nortenho. E assim é de facto R. Smith apresenta-nos cinco pormenores característicos do barroco do Norte:

1.º – sanefas e enquadramentos de janelas;

2.º – púlpitos escultóricos;

3.º – arcos cruzeiros elaborados;

4.º – pilastras interrompidas por mísulas e imagens, conhecidas por «quarteirões»;

e finalmente,

5.º – retábulos de vários andares.

 

Isto é o bastante para compreendermos como o Norte imprimiu carácter a este estilo, como o Norte o acarinhou e desenvolveu, como o Norte é ainda hoje um livro aberto aos estudiosos do Barroco. Braga, Porto, Aveiro orgulham-se dos seus conjuntos, mas sem rivalidades. Também nós, pretendendo considerar o Barroco de Aveiro na sua originalidade, não o impomos a honras de primeiro centro, mas sim de importante centro, posição fundamentada não só no seu rico espólio, como nas referências elogiosíssimas dos mestres.

Para uma pormenorização dos valores artísticos da nossa terra, há que fazer apelo à obra mestra de mestre Nogueira Gonçalves – «Inventário Artístico de Portugal» da Academia Nacional de Belas Artes, onde no volume referido à Zona Sul vem a descrição pormenorizada dos nossos principais valores desta época. Assim, ressaltam na descrição: a igreja da Misericórdia, «Maneirista» que já Marques Gomes estudara, considerando em 1623 concluído o corpo da igreja, mas que é nos meados do século XVIII enriquecida por pinturas sobretudo na capela-mor. A Igreja do convento de S. Domingos – Sé actual com considerável ornato do século XVIII, sobretudo no coro alto, no tecto geral, na frontaria e decoração.

No Museu de Aveiro, antigo mosteiro de Jesus, com a fachada e a antiga casa do Lavor (onde morrera Santa Joana), transformada no século XVIII, com decoração de 1734, há ainda a igreja, de riquíssima talha de madeira dourada, caracterizada por uma decoração feita por fases, que vão do barroco inicial para o barroco pedrino típico e com uma terceira fase de estilo joanino – primeira metade do século XVIII. Completando o seu conjunto, há o órgão da segunda metade do século XVIII e finalmente o coro-de-baixo, onde se encontra o túmulo da Infanta, obra-prima de João Antunes, de 1711, com surpreendentes embutidos de mármores de Carrara.


Parte do muro frontal e entrada para a Igreja do Carmo.

Do mesmo edifício, destacam-se ainda a capela de Nossa Senhora do Rosário, alguns retábulos e altares, azulejos, peças de ourivesaria (custódias, galhetas e pixides), paramentos, pluviais, casulas, dalmátícas), e, finalmente, peças de mobiliário, com uma curiosa carruagem do 1.º bispo de Aveiro, D. António Gameiro de Sousa.

Temos ainda da época barroca inicial a igreja do convento do Carmo (1628-1643) com o seu muro frontal de 1711. Nesta data em que se completava o túmulo de Santa Joana, João Antunes, ou seus auxiliares, estavam então em Aveiro e talvez possa aventar-se a hipótese de ter sido nessa altura aproveitada a oportunidade da presença dos artistas para outras realizações. Não nos parece inverosímil.

De considerar também a igreja das Carmelitas, valorizada pela talha dourada que lhe reveste as paredes e que é da época que temos vindo a tratar / 21 / e a da Ordem Terceira de S. Francisco – 1677-1682 – barroco do fim do século XVII e transição, com arco cruzeiro revestido à século XVIII e unida a esta, a igreja do convento de Santo António, também de talha dourada, frontaria do século XVIII e sacristia, em que a decoração de talha do século se impõe ao conjunto arquitectónico.

Temos ainda como elemento assinalável a Igreja de Nossa Senhora da Apresentação, obra arquitectural de duas épocas – primeira metade do século XVII e segunda metade do século XVIII, mas revestida a talha dourada dos reinados de D. Pedro II e D. João V, com predomínio de sanefas posteriores.

Esta igreja conserva em barro uma linda Trindade e tem de prata ou talha, valores decorativos dignos de menção. Há ainda a capela de S. Gonçalo, com retábulos comuns da época, e, finalmente, para completar a série barroca de arte sacra, a capela do Senhor das Barrocas – 1722. Esta «ressalta por um valor arquitectónico de mestre (não regional) e pela abundante talha de que é revestida internamente». Estes os principais conjuntos assinalados na própria cidade, que Nogueira Gonçalves no seu trabalho exaustivamente assinala, tal como o faz para os concelhos e freguesias, numa sistematizada inventariação, que muito nos facilita hoje a consulta e localização. Vimos assim que há bons exemplares arquitectónicos de Maneirismo do século XVII e Barroco propriamente dito na cidade, sendo melhor, contudo, o núcleo de talha dourada. A igreja do Museu é sala de visitas dessa belíssima talha, que mantém todo o seu encanto, graças à obra perfeita de restauro a que foi sujeita. Há ainda, além da arte religiosa, na própria cidade, a assinalar uma série de edifícios da época, com referência especial para as construções do século XVII que ficam nas ruas Barbosa Magalhães, Manuel Firmino, alto da rua Larga e para o prédio da rua de Santa Joana do primeiro terço do século XVIII, bem como outros nas ruas do Carril e rua do Gravito, sendo nesta um deles da segunda metade do século XVIII. Muito mais poderíamos citar, sem dúvida, se a síntese a que nos propusemos não nos limitasse em cada capítulo o trabalho comparativo que seria interessante levar a cabo. Passaremos então a reunir as opiniões sobre o Barroco de Aveiro, que vindo de figuras ilustres, no domínio da História da Arte, nos dão a certeza de quanto a nossa terra conta e vale no estilo Barroco de que se honra.

*

*    *

Neste capítulo, repetimos um apelo, que nos veio de herança: urge dar à arte da nossa Aveiro a importância que merece, visto que temos pouco, sem dúvida, mas temos muito bom e muito digno de ser devidamente apreciado, dado que dos fins do século XVI aos fins do século XVIII, Aveiro teve a sua mais alta fase de enriquecimento artístico, que lhe marcou um lugar na História da Arte. Esse lugar foi oficialmente reconhecido já em 1949, no Congresso Internacional de História da Arte; desse congresso há que recordar o volume «L'Art Portugais» que a Academia Nacional de Belas Artes para ele editou, em que Reinaldo dos Santos, nessa síntese, exigentemente seleccionada, afirma: «...mas um dos focos mais fecundos, foi certamente o de Aveiro, centro principal do barroco do século XVII, a que pertencem a Misericórdia (1597-1622); Carmelitas (1628-1649); S. Gonçalo, de plano octogonal (1606); Carmo (1643); S. António (1693) e sobretudo a Igreja de Jesus, reconstituída depois de 1592 e que constitui um dos conjuntos mais belos da arte do século XVII no norte do país».

Nesse mesmo congresso o professor da Universidade de Filadélfia, Dr. Robert Smith, a quem já fizemos referência e a quem muito gratamente prestamos as nossas homenagens, apresentou uma comunicação em que apontou a Igreja das Barrocas como «um dos mais / 23 / interessantes exemplares da arte escultórica do Barroco Nacional», apresentando ali em projecção um pormenor do referido monumento.

Por este mestre foi feita uma valiosa colecção de diapositivos coloridos dos melhores valores do Barroco Aveirense, que enviou ao Director do Museu Regional de então, e que à altura do seu falecimento não apareceu. Aveiro espera poder contar com S. Ex.ª para lhe permitir a cedência de uma cópia desses diapositivos que tão útil se tornará à divulgação fotográfica do nosso património artístico. Considerando extra-congresso e em pormenor, as opiniões destes dois mestres sobre o núcleo aveirense, seleccionámos:

 

De Reinaldo dos Santos, na sua «Escultura em Portugal», edição de luxo, e cuja capa colorida apresenta uma figura escultórica do Museu Regional, o seguinte:

... «S. Miguel de Alfama, Arouca e Aveiro, oferecem-nos três espécies de carácter completamente diferente da estatuária portuguesa do reinado de D. João V»;

... «A Senhora da Piedade foi um dos temas mais repetidamente tratados pelos escultores do século XVII. Uma das mais belas é certamente a da Igreja de Jesus de Aveiro»; e finalmente sobre as figuras que lhe mereceram honras de capa: ... «modeladas e estofadas em madeira são as duas figuras de «ballet» do convento de Jesus de Aveiro, cujos corpos moços de bacantes se envolvem em túnicas que um sopro pagão agita em ritmo de dança. Destas figuras, particularmente encantadoras, podem aproximar-se os numerosos anjos candelários que acompanham com frequência os altares barrocos da primeira metade do século XVIII».


Pormenor do tecto da Igreja de Jesus, de abóbada geométrica.

R. Smith na sua obra «A Talha em Portugal» diz-nos entre outras afirmações: ... «Juan de Arfe e Villafãne ilustra a composição de acanto, formando oito, no terço interior duma coluna jónica com as folhas envolvendo uma figura humana, muito parecida com a dos famosos painéis da capela do convento de Jesus de Aveiro, do começo do século XVIII» e ainda: «a segunda campanha da talha de Jesus produziu o vistoso órgão de 1739» e pouco adiante: ...«O retábulo da capela-mor da igreja oitavada das Barrocas, cuja portada Barroca é atribuível a Laprade, fala uma linguagem em duas dimensões...».

 

Citações abundantes e honrosas de mestres. A alusão à capela das Barrocas reservámo-la propositadamente para o fim, porque ela tem merecido considerações da maior seriedade e tem sido objecto de opiniões diversas quanto ao problema do seu autor.

Aventaram-se os nomes de João Antunes, Ludovici e Laprade. O primeiro possível por ser o autor do túmulo de Santa Joana e pelas analogias das Barrocas com a Igreja de Santa Cruz de Barcelos, que é da sua autoria. O segundo, mestre com o seu nome ligado a Mafra e Coimbra, foi por Aarão de Lacerda e pelos aveirenses Marques Gomes, Ferreira Neves e Alberto Souto, apontado como possível arquitecto. Mas é Laprade, escultor do túmulo de D. Manuel de Moura Manuel, na Vista-Alegre, sua obra-prima, o mais apontado por Virgílio Correia, e também por Alberto Souto, para a parte escultórica.

Da mesma igreja se ocupou em 1936, no Arquivo do Distrito de Aveiro, o Dr. Ferreira Neves, como dissemos; e na mesma revista, o Dr. António Nascimento Leitão, em 1945, rebatendo com documentação fotográfica a opinião de Marcel Dieulafoy que a considera «uma transcrição em neo-manuelino muito elegante dos baptistérios de Florença e Pisa» e só lhe encontrando semelhança, e vaga, com Florença, por ser octogonal!

No Arquivo do Distrito de Aveiro n.º 10, de 1937, apresentada e comentada pelo Dr. Ferreira Neves, vem reproduzida uma memória sobre Aveiro, de Pinho Queimada, feita em 1687 que nos diz: ... «Em todo o reino não há igreja da Misericórdia que iguale a desta vila pela sua majestade e beleza: foi riscada por um arquitecto florentino».

Mais tarde a opinião de que o traçado pertenceu a Filipe Tércio foi apresentada por Marques Gomes e aceite pelo Dr. Reinaldo dos Santos e outros estudiosos. Todavia, a mais bem fundamentada documentação virá, quando, pelo senhor D. Domingos Pinho Brandão, forem trazidos a público os elementos preciosos de identificação que já expôs em comunicação apresentada na quinta reunião de Conservadores, levada a efeito no Museu de Aveiro. Ali Sua Ex.ª Reverendíssima, em trabalho intitulado: «A talha dourada em Aveiro – Subsídios para o seu estudo» – por enquanto só guardado em gravação – deu informações seguras, positivas e bem documentadas sobre o trabalho «dos entalhadores, escultores e douradores que enobreceram os monumentos da cidade e do seu termo», como se lê nas conclusões dessa reunião, apresentadas pelo actual director do Museu, Dr. António Manuel Gonçalves, que aí também nos dá conta de como «programou e realizou a primeira sessão de «Arte sacra Barroca», inaugurada no referido Museu pelo Chefe do Estado em 6 de Julho de 1959. Posteriormente (1962) foi enriquecida com a abertura ao público da secção de Pintura, no andar superior, em que o segundo compartimento da sala III e as salas IV e V, são também de Pintura Barroca. E neste recordar de nomes que no presente têm acarinhado a Arte da nossa Aveiro, abrimos um parêntesis para lembrarmos o entusiasmo de Joaquim de Mello Freitas e de Marques Gomes, organizando exposições / 24 / em 1882 e 1895 e publicando obras já de mentalização das massas, para descobrirem o interesse destes trabalhos. Voltando à obra actual, é aqui devida uma palavra às «Efemérides Aveirenses» que nos oferecem documentação preciosa para melhor conhecermos, através da síntese tão necessária à época actual, as condições sociais da época artística que referimos, entre outras, e que António Cristo compilou e estudou, através dos sumários de documentos fornecidos pelo infatigável estudioso Padre António Brásio; como há que lembrar Rocha Madail, que no esforço de leitura de documentos históricos preciosos (já publicado o 1.º volume da Colectânea por ocasião do Milenário de Aveiro – 1959) particularmente do Distrito de Aveiro, tem queimado a sua vida na fadiga duma busca incansável; e finalmente o Padre Domingos Maurício, que no seu volume 1/3 sobre o Mosteiro de Jesus de Aveiro apresenta, além dum trabalho de pesquisa e coordenação histórica de todos os elementos do referido mosteiro, um apêndice bibliográfico e iconográfico que, referindo-se em particular ao culto de Santa Joana de Portugal e no Estrangeiro, tem a virtude de fazer o registo exaustivo de publicações de carácter iconográfico, onde vêm obras e autores, que à Arte da nossa Aveiro muito deram e que estudados em pormenor, muitos mais elementos nos dão e muitas mais referências levam longe, sobre esta terra querida, que tanto queremos ver justamente apreciada.

Propriamente dos estudiosos do seu Barroco, assim fundamentado, quanto mais havia que dizer! Quanto havia que citar sobre os estudos dos barristas aveirenses do século XVIII, sobre a Ourivesaria, da mesma época, honrosamente divulgado pela «Ourivesaria em Portugal» de João Couto e António Gonçalves; sobre os maravilhosos paramentos, já divulgados também, ainda que de forma incipiente, cremos, mas que são obra a realizar. E quanto mais a arte dos séculos XVII e XVIII deixou em Aveiro para aprofundar e ajudar à sua história!

Síntese de divulgação, dissemos ser o carácter deste trabalho. Originalidade do Barroco de Aveiro, o título que para ele escolhemos. Chegando ao fim, não nos sentimos, de modo algum, com o propósito inicial realizado. A matéria é vasta, vastíssima, para situar num artigo só. Mas se, através dele, tivermos contribuído para que os novos e muitos interessados leitores, que a revista da Junta Distrital já hoje tem, tenham aproveitado para estudarem, compreenderem e apreciarem o Barroco da nossa Aveiro, – esse Barroco tão injustamente tratado outrora, – sentimos então, que apesar das lacunas que apresenta, valeu a pena. Servir a nossa terra e o nosso lema, o lema desta Junta e nesse espírito, todo o esforço conjugado é necessário.

 

páginas 14 a 24

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