Acesso à hierarquia superior.

N.º 4

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1967 

 

Arouca, ainda mal conhecida

Pelo Dr. A. Tavares de Almeida

 


AROUCA - A vila e o convento de Santa Mafalda

Como não sei que género de artigo sobre Arouca desejam de mim para a «Revista da Junta Distrital de Aveiro», nem sequer o espaço a que devo limitar o meu escrito, terei de superar o embaraço espraiando-me em algumas generalidades, tão desataviadas quanto mo consinta a Direcção da «Revista» e tão abreviadas quanto mo permita a extensão e a diversidade dos assuntos focáveis sobre a vetusta e monumental vila, mais a variada paisagem com que Deus dotou este recanto da boa terra portuguesa.

Receio, ainda que considere o âmbito dos possíveis leitores confinado à gente do distrito, que muitos haverá que talvez só de nome conheçam a terra da Rainha Santa Mafalda – onde a Beata Princesa quis repousar e jaz no seu belo leito tumular – e, assim, para esses, o que me ocorre pode ser novidade. Para os conhecedores será um reencontro fortuito que desejo não se torne enfadonho por pretensioso, ou indigesto por referido como o cansado chá do Tolentino.

*

* *

Situa-se na periferia serrana do distrito quase no extremo nordeste dos seus limites, larga área heterogénea, com seus vales fundos e macios como a mais verde alfombra, seus montes agrestes mais altivos como Senhores de baraço e cutelo e suas encostas, ora lisas e densamente povoadas de variadas e nobres essências, ora trabalhadas em socalcos onde medra a vinha em tachoeiras ou no enforcado e se amanha o pão nosso de cada dia para as gentes e os gados. A indústria é balbuciante.


AROUCA – Túmulo da Rainha Santa Mafalda no convento de Arouca – em ébano e prata –
onde se encontra o seu corpo incorrupto.

Da sua história não cabe falar em tão reduzido escorço. Tão velha que História e Lenda se confundem sem se destruírem em fantasias – ainda recentemente o douto investigador A. de Almeida Fernandes, em extenso trabalho publicado em vários números do «Arquivo do Distrito de Aveiro», se debruçou sobre um largo período em que a documentação, por escassa, mais obriga a inteligência a escogitar a verdade «Arouca na Idade Média Pré-Nacional» – chamando-lhe, apenas, uma introdução à história altimedieva dos Vales de Arouca e Moldes».

E, se de aí ascendermos nos séculos, veremos a gente de Arouca a bater-se em S. Mamede, nas hostes das Terras de Santa Maria; como no seu próprio vale, com Egas Moniz, contra as mesnadas mouras de Lamego; andar, esforçados, com os cavaleiros do Templo ou de Malta e, com a Cruz de Cristo, embarcar nas caravelas para as grandes aventuras do Infante D. Henrique; repelir, nas gargantas dos seus ribeiros, os invictos de Napoleão; sofrer os fluxos e refluxos de batalhões e guerrilhas nos confusos períodos do liberalismo vintista; ir, resignadamente, cumprir o dever militar nas guerras modernas ou, como hoje, virilmente lutar entre os melhores nas nossas terras de África contra os inimigos invisíveis que só se deixam identificar pela sua traição e cupidez.

 

E no foro civil, desbravar, afeiçoar, edificar, estudar, rezar, fazer cristandade e nobilitar a vida, ano após ano, dia após dia – e quantas vezes dia e noite – para transformar o seu agro e as suas famílias em courelas produtivas e elementos válidos para o progresso harmonioso que dignifica a Nação.

Terra impregnada, desde os primórdios, de profundo sentimento religioso, aqui até as outrora compartimentadas divisórias sociais de clero, nobreza e povo se amoleceram para serem, apenas, travejamentos hierarquizados de uma grande família cristã servindo, com devoção e gosto, as suas freiras e a sua Pátria.

Poderão, certamente, ser taxados de fatuidades os dizeres dos autóctones aludindo ao seu torrão natal. Mas tantos foram os estranhos, responsáveis e notáveis, que trataram, em páginas impregnadas do seu talento de consagrados, Arouca, sob vários aspectos, que melhor será remeter o leitor para o seu alvedrio, sem alongar o escol:

CAPELA DA CASA DE CELA (Urrô-Arouca). A frontaria dos meados do século XVIII é um dos destacados exemplares em capelas anexas a casas tradicionais que o distrito possui. Na empena, brasão de Moreiras, Melos, Magalhães, Pintos, com timbre dos primeiros (N. G.)

 

/ 10 / o sóbrio e íntegro Herculano comparou a descida para o vale à paradisíaca Sintra;

Ramalho, forte no físico e robusto no que escreveu, alçou-se desde o vedro Rêgo de Chave, que quase marca o limite do Concelho por poente, até às alturas da Senhora da Lage de peregrina tradição, Albergaria das Cabras e outras cumeadas até às vizinhas Caldas de Lafões, dando-nos uma formosa narrativa do viajar naqueles tempos;

Abel Botelho, entre o desenho e o romance, tratou a paisagem e a gente com tal engodo que, anos mais tarde, na infância da nossa cinematografia, os cineastas não se amedrontaram com as agruras dos caminhos e ousaram filmar «As Mulheres da Beira» no próprio local da Frecha da Mizarela, produzindo um dos poucos filmes «dos que ficam» para o êxito e a cinemateca nacional;

Camilo fez «penar» no Convento e fugir, despenhando-se das rancas de um medronheiro gigante (que ainda há pouco lá vegetava no Canto do Muro) para os braços do seu ardente sedutor, uma heroína dos seus imaginosos romances;

Aquilino andou a jornadear com o seu Malhadinhas pelos montes da orla oriental da comarca até ao centro do vale onde o pôs a contar as suas fantasiosas proezas;

Ferreira de Castro, nado na sua Ossela, a lindar com Arouca, por lá andou a abeberar os «Emigrantes»;

O violento Homem Cristo foi suave e admirativo para as terras do Arda;

Pinho Leal viveu e escreveu em e de Arouca;

Sant'Ana Dionísio deu-lhe páginas de percuciante análise e de recortada beleza formal;

Sousa Costa enamorou-se e namorou-a como um colegial com aptidões de post-graduado; et j'en passe...

Pois, apesar disso e em plena era turística, quantos codistritais terão considerado ínvios os caminhos que para lá conduzem ou distantes, se não «apenas» serrana esta terra que tanto tem para oferecer e nunca desapontará o visitante conhecedor ou, apenas, dotado de sensibilidade e sã curiosidade?!

O convento, monumentosa reconstrução ampliada de um dos mais vetustos cenóbios do País, rico na fábrica e nos adornos, belo na decoração, valioso e selecto no Museu anexo, justificaria, por si só, a viagem. Mas toda a vila e seu termo oferecem os mais variados motivos de interesse; o calvário, a capela da Misericórdia, velhas pedras patinadas pelos séculos, solares, / 11 / antigas casas de curiosa arquitectura, novas avenidas e rancias quelhas ostentando ainda, algumas, os velhos toponímicos...

Em contraste com as «velharias» para admirar, outras há que o visitante não desdenhará de gostar: os sempre saborosos doces conventuais – o pão de S. Bernardo ou Bola do Convento, o famoso Pão de Ló de Arouca, Melindres, Cavacas, Castanhas doces, Roscas de amêndoa, Manjar, Morcelas, etc., etc., que nobilitam qualquer chá e se deixam acompanhar, complacentemente, com o vinho verde local, com precedência para o Branco, de limitada produção mas ilimitadas virtudes.

   
 

CASA DA CELA (Urrô–Arouca) – Pertence aos Ex.mos Senhores Dr. Albano de Almeida Rebelo e D. Maria Angelina de Melo Pina Rebelo. Vindo-lhe a passar a um dos lados a moderna estrada de acesso à vila, enquanto que o antigo caminho lhe era perpendicular, pela frente da capela,  foi valorizada, na sua composição arquitectónica e com grande equilíbrio, com a renovação da parte do topo de poente. Define, de forma superior, a arquitectura domiciliária em que viveu a fidalguia arouquense setecentista (N. G.)

 

 

Caberiam ainda, com incontestável justiça, algumas linhas para as frutas – as castanhas, os melões e as cerejas, são já bem conhecidas da beira-mar – mas hoje, alargadas e mais cuidadas as culturas, abrangem seleccionada variedade de pomos.

Correria o risco de desmentir o que me propus no início deste escrito se me alongasse, cedendo ao natural deseja de mostrar a qualidade e variedade de paisagens que Arouca pode proporcionar; limitar-me-ei pois a enunciar alguns locais donde, mais vantajosamente, se pode contemplar em vastos horizontes a riqueza panorâmica de montes e vales.

Para quem venha da sede do distrito, ao entrar, em Chã d'Ave, na fronteira do concelho, logo se poderá extasiar, ao descer para o vale de Rôssas, com variada e bela paisagem. Depois é o vale, estrangulado na ciclópica garganta rochosa da Pedra-Má, até à vila.

Sobranceiro a esta levanta-se o monte da Senhora da Mó, que dedicada comissão de iniciativa vai preparando e será, no futuro, para além da beleza panorâmica natural, um Miradouro de alta cotação nacional.

As novas vias, para Alvarenga e para a Zona Florestal da Feira, recentemente abertas ao tráfego automóvel, trouxeram para a avidez admirativa dos que sabem e podem ver, paisagens de amplíssima extensão e raro encantamento, no dizer de cultos apreciadores que ali se têm extasiado.

 

Do perímetro florestal da Freita, pela Frecha da Mizarela, onde o Coima se despenha ao nascer, num salto magnífico que os geólogos consideram uma das maiores – se não a maior – fractura geológica na Península Ibérica, pode o viajante prosseguir até Vale de Cambra, num continuado desdobrar de emoções de beleza e – assim o esperamos – não tardará muito que a ligação a S. Pedro do Sul e Viseu mais venha ampliar a possibilidade de sentir o sortilégio noutros aspectos e pormenores, numa zona ainda vedada ao grande turismo, aparte o encurtamento e facilitação, como comodidades novas para o viajante que das altas Beiras queira atingir o Porto e terras do Norte do País.

CASA DA CELA (Urrô–Arouca)

 

As rodovias de Arouca ao Porto, por Cabeçais e Vila da Feira ou por Castelo de Paiva e marginal do Douro, oferecem outras vistas diferentes e igualmente acidentadas ou policrónicas que o viandante apreciará para seu gozo.

Deixo, apenas esboçado, um índice para os que já conhecem poderem recordar mais facilmente e que aos não iniciados sirva de sugestão para uma visita. Peca, o escrito, pelas insuficiências de toda a ordem, mas antes assim, para que os visitantes sintam desapontamento apenas no fim da leitura, a ser largamente compensada com o que não foi enunciado ou ficou mal apontado.

As empoladas propagandas, do tipo agência de viagens, trazem nos nossos dias os encómios tão enfestados que o viajante, por vezes, dificilmente reconhece o local que visita; não será igual desta feita, pois lhes posso assegurar que a verdade fica esquiçada em tão débil imagem que se surpreenderão, sim, no contraste entre a realidade e a previsão quando os olhos a venham contemplar e admirar na «nudez forte da verdade».

Parafraseando Camões, hão-de sentir bem, e confirmar que «mais vale experimentá-lo que julgá-lo».

Outubro de 1967.

 

páginas 9 a 13

Menu de opções

Página anterior

Página seguinte